7.Primeira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Assistência judiciária".
A repercussão das idéias de CAPPELLETTI tem estimulado o acesso à Justiça, nas modalidades da segunda e terceira ondas, na medida em que a primeira (assistência judiciária) adquiriu consistência jurídica entre nós com a Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, incumbindo aos poderes públicos federal e estadual, independentemente da colaboração que possam receber dos municípios e da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, a concessão da assistência judiciária aos necessitados nos termos desta Lei (art. 1º).
A Lei n. 1.060/50 facilita de tal forma o acesso à Justiça que considera necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família (art. 2º, parágrafo único).
A assistência judiciária compreende a isenção de taxas judiciárias e selos; de emolumentos e custas devidos aos juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça; das despesas com as publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais; das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo contra o poder público federal, no Distrito Federal, ou contra o poder público estadual, nos Estados; dos honorários de advogado e peritos; e das despesas com a realização do exame de código genético - DNA que for requisitado pela autoridade judiciária nas ações de investigação de paternidade e maternidade (art. 3º, I a VI).
Para gozar dos benefícios da assistência judiciária, basta que a parte afirme, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família (art. 4º, caput), presumindo-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos da Lei, sob a pena cominada de pagamento até o décuplo das custas judiciais, e sem prejuízo de que o pedido possa ser impugnado (art. 4º, §§ 1º e 2º) e até revogado (art. 7º).
No Brasil, quem tem condições de pagar advogado, paga e ingressa em juízo; quem não tem, pode fazê-lo mediante o patrocínio de defensorias públicas, de assistências judiciárias, de escritórios-modelo, ou de advogado por ele escolhido, ou designado pela OAB. (17) Até os acadêmicos de direito, a partir da 4ª série, podem ser indicados pela assistência judiciária, ou nomeados pelo juiz para auxiliar o patrocínio das causas dos necessitados, ficando sujeitos às mesmas obrigações impostas pela Lei n. 1.060/50 aos advogados (art. 18).
8. Segunda onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Ações coletivas".
A segunda onda chegou até nós por influência das idéias de CAPPELLETTI, embora CHIOVENDA, no início do século passado, já fizesse referência a direitos difusos, nestes termos:
"Há normas que regulam a atividade pública para a consecução de um bem público, ou seja, próprio de todos os cidadãos em conjunto, da coletividade (tal é o interesse de haver uma boa administração, um bom exército, boas fortificações; o interesse pela manutenção das estradas, e semelhantes). Dessas normas derivam direitos coletivos (ou direitos cívicos gerais), em tal maneira difusos sobre um número indeterminado de pessoas, que não se individualizam em nenhuma delas em particular: o indivíduo não os pode fazer valer, a menos que a lei lhe conceda converter-se em órgão da coletividade. O indivíduo como tal só dispõe de um direito para com o Estado ou outra administração pública no caso em que a lei reguladora da atividade pública haja tido em mira seu interesse pessoal, imediato, direto. (18)
As ações coletivas foram previstas pela Constituição de 1988 em diversos dispositivos, ora permitindo que as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, tenham legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente (art. 5º, XXI); ora concedendo mandado de segurança coletivo a partido político com representação no Congresso Nacional, ou a organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (art. 5º, LXX, "a" e "b"); ora dispondo que ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; ora reconhecendo ser função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III), e defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas (art. 129, V).
Além disso, diversas leis ordinárias, como a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, dispondo sobre a ação civil pública, e a Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990, sobre a proteção do consumidor, disciplinam as ações coletivas, que compreendem inclusive os direitos e interesses difusos, projetando no direito brasileiro a segunda onda de acesso à Justiça.
9.Terceira onda no ordenamento jurídico brasileiro: "Nova estrutura do Poder Judiciário e os novos procedimentos".
Não se consegue reformar a Justiça sem se reformar a estrutura do Poder Judiciário, pois a simples alteração de leis processuais, mesmo com a intenção deliberada de desfazer os pontos de estrangulamento, não produz por si só os almejados efeitos.
Sob este aspecto, merece relevo a instituição dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, pela Lei n. 7.244/84, que vieram a ser substituídos pelos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, pela Lei n. 9.099/95, embora tivessem podido conviver, por não existir entre ambos qualquer incompatibilidade. Recentemente, foram instituídos os Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, pela Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001, facilitando o acesso à Justiça, em face dos entes públicos.
Também por força dessa onda, tiveram lugar as minirreformas processuais, na última década do século passado, quando foram promulgadas diversas leis, buscando acelerar os procedimentos. (19)
A conciliação foi igualmente prestigiada pelas minirreformas, tendo a recente Lei n. 10.444, de 7 de maio de 2002, instituído a audiência preliminar (art. 331, CPC), com o deliberado propósito de estimular a composição das partes, abortando, por essa forma, o litígio.
Como solução alternativa, foi promulgada a Lei n. 9.307/96, disciplinando a arbitragem, com o que se espera que as partes prefiram solucionar os seus litígios através da justiça privada, em que todos sabem quando a demanda começa e quando termina, em vez da justiça pública, em que todos sabem quando começa, mas ninguém sabe quando termina.
Num País que tem grande dificuldade em prover seus órgãos judiciais, mesmo os já existentes, com juízes togados, porquanto, nos concursos públicos, infelizmente, são as vagas que acabam disputando os candidatos, não vejo alternativa melhor do que os juizados especiais, especialmente os estaduais, que contam, na sua estrutura, com as figuras do juiz leigo e do árbitro; e, mesmo a arbitragem, que é excelente modalidade de se fazer justiça privada. (20)
10.Obstáculos ao acesso à Justiça brasileira: "A estrutura judiciária, a morosidade dos procedimentos, e o uso indiscriminado de recursos".
No Brasil, os obstáculos de acesso à Justiça não se ligam ao problema da assistência judiciária aos necessitados, configuradora da primeira onda de acesso, e nem à defesa dos interesses da coletividade, notadamente os interesses difusos, configuradora da segunda onda, mas à estrutura judiciária, à inadequação dos processos e dos procedimentos, e, basicamente, à dimensão que se dá ao princípio do duplo grau de jurisdição, para atender à ânsia recursal do jurisdicionado brasileiro.
A nossa estrutura judiciária é sabidamente arcaica, montada no modelo francês, de inspiração napoleônica, e cujo objetivo era fazer dos órgãos superiores, constituídos pela vontade dos poderes executivo e legislativo, verdadeiros órgãos de dominação dos órgãos inferiores do Poder Judiciário. Não é por acaso que essa estrutura tem a forma piramidal. Ademais, embora tenha o Brasil importado um modelo francês de estrutura judiciária, infelizmente não pôde importar a cultura francesa, de forma que aquele modelo concebido para um país de primeiro mundo não funciona num mundo periférico.
Os processos e procedimentos adotados pelo Código de Processo Civil desconhecem a geografia brasileira, sendo concebidos com as vistas voltadas para regiões desenvolvidas, como a sul e a sudeste, pelo que não se adequam a regiões de parco desenvolvimento econômico, como a norte e nordeste, sendo idênticos os prazos para a prática de atos numa região metropolitana, servida por metrô, e naquelas em que o transporte ainda se faz em canoa, movida a remo, ou em lombo de jegue, movido a chibata; embora o art. 182 outorgue ao juiz, nas comarcas onde for difícil o transporte, prorrogar quaisquer prazos, mas nunca por mais de sessenta (60) dias.
Por isso, essa terceira onda só cumprirá o seu objetivo quando, além de um sistema processual uniforme para todo o País, tivermos uma diversidade procedimental que atenda a essa diversidade geográfica, deixando a cargo de cada Estado-membro normatizar os procedimentos judiciais, de acordo com os seus padrões sociais, econômicos e culturais. Não se pode pretender, por exemplo, que os juizados especiais funcionem com a colaboração de estagiários (conciliadores) e advogados (juízes leigos) em localidades situadas a centenas de quilômetros de uma Faculdade de Direito.
No que tange aos recursos, parte-se da falsa suposição de que a Constituição, ao elencar os diversos órgãos que compõem o Poder Judiciário (art. 92, I a VII), teria consagrado de forma inarredável o duplo grau de jurisdição, o que não é, no entanto, verdadeiro. Os recursos são a grande praga que não permite que a Justiça produza bons frutos, contaminando a esperança de tantos quantos a ela recorrem, que só vêem satisfeito o seu direito material quando já exaustos de tanto demandar.
Mesmo quando se criam juizados especiais para determinadas causas, ou causas simples até determinado valor, ou sem nenhuma complexidade, que podem ser resolvidas pelo critério de eqüidade, por qualquer juiz leigo, o culto ao recurso faz com que, mesmo sem admitir o acesso à Justiça em segundo grau, se criem turmas recursais, espécie de segundo grau dentro do próprio primeiro grau, integrado por juízes de inferior instância, para reexaminar as sentenças proferidas por juízes de igual hierarquia. No fundo, o recurso ordinário, nos juizados especiais, não passa de uma malquista modalidade de embargos infringentes do julgado, na inferior instância, só que, em vez de serem julgados pelo mesmo juiz que proferiu a decisão recorrida, o é por uma turma recursal, composta de juízes de primeiro grau.
Ainda quando a lei processual estabelece que o recurso não impede a execução da sentença, como na previsão do art. 497, primeira parte, (21)ou que o recurso será recebido apenas no efeito devolutivo, como na previsão do art. 542, § 2º, (22) ambos do CPC, o STJ e o STF admitem ação cautelar para dar aos recursos extraordinário e especial um efeito que ex vi legis eles não têm, obstaculizando a execução da sentença antes de passar materialmente em julgado. Mesmo quando não tem cabimento nenhum recurso, ou mesmo correição parcial, ou reclamação, entra em cena a tolerância dos pretórios, admitindo, para se corrigir decisões que se convencionou denominar "teratológicas", o uso do mandado de segurança contra ato judicial, a mais inusitada teratologia que se poderia conceber para esse fim.
Não é que os recursos não sejam necessários, porque são, mas deveriam ser disciplinados conforme a importância da matéria decidida, de forma que nem toda causa subisse aos tribunais de segundo grau; muito menos, aos tribunais superiores, que deveriam ser os guardiães da lei infraconstitucional naquilo em que tivesse transcendência sobre a pretensão individual das partes. O mesmo se diga do STF que, sendo o guardião da Constituição, deveria proceder ao reexame apenas de matérias (questões), que pudessem, pelo fenômeno da transcendência, interessar à Nação como um todo. As brigas de vizinhos devem ficar confinadas aos juizados especiais, com direito ao arremedo recursal para as turmas recursais.
As decisões interlocutórias, no processo civil, à exceção daquelas que antecipam a tutela ou decidem sobre a tutela cautelar, deveriam ser irrecorríveis, reservando-se ao recorrente o direito de vê-las reexaminadas por ocasião do julgamento da apelação; justo como acontece no juízo arbitral e na Justiça do Trabalho.
Mas, mesmo quando o Código de Processo Civil restringe o alcance dos recursos, por ato do relator, no tribunal, sob o pretexto de que se trata de uma decisão singular, concede, geralmente, outro recurso para o colegiado, mediante a interposição de agravo interno, tornando quase etérea a restrição.
No que tange ao processo de conhecimento, deve-se admitir apenas a apelação, para corrigir eventual erro ou injustiça da sentença, e, no âmbito dos tribunais, apenas os embargos infringentes, desde que na sua função de uniformizar a jurisprudência das turmas ou câmaras isoladas, com a das turmas ou câmaras reunidas, ou seções, conforme a organização do tribunal. É um equívoco supor que os embargos infringentes se destinam a dar ao sucumbente mais um recurso, em função do voto vencido, porque a finalidade desses embargos é possibilitar que um órgão superior às turmas ou câmaras isoladas uniformize a jurisprudência no âmbito interno da corte, fazendo com que o voto vencido na turma ou câmara --, mas ajustado à jurisprudência do grupo de turmas ou câmaras --, prevaleça sobre os votos vencedores, o que, de outro modo, só seria possível por decisão dos tribunais superiores. (23)
Neste particular, as minirreformas introduziram modificações importantes, limitando as hipóteses de cabimento de embargos infringentes nos tribunais, de modo que só cabem tais embargos quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente a ação rescisória, sendo que, se o acordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência (art. 530, CPC). Desta forma, tornaram-se irrecorríveis mediante embargos infringentes as decisões sobre questões processuais, mesmo havendo voto vencido, nem as sentenças de mérito que vierem a ser confirmadas pelo tribunal. (24)
Um dos grandes obstáculos ao gozo do direito tem sido a interposição de embargos de declaração, para os fins do art. 535 do CPC, que, apesar de cabíveis apenas para dissipar obscuridade ou contradição (inciso I) ou suprir omissão do julgado (inciso II), vêm sendo utilizados em doses homeopáticas, às vezes quatro ou cinco vezes seguidas (embargos de embargos de embargos de embargos, etc.), chegando-se até a admitir efeitos modificativos ao último dos embargos de declaração interpostos, que funcionam como uma verdadeira superapelação. Poder-se-ia até admitir os embargos de declaração nos legítimos casos em que se fizerem necessários para integrar o julgado, mas dever-se-ia, também, punir os embargos improcedentes com uma multa em favor do embargado, pelo tempo de espera de julgamento desse recurso que, a final, revelou-se sem fundamento; isso, independentemente da existência de dolo ou culpa do embargante.
Os recursos extraordinário e especial foram também alcançados pelas minirreformas, de modo a possibilitar a sua retenção quando interpostos contra decisão interlocutória em processo de conhecimento, cautelar ou embargos à execução, sendo processados apenas se reiterado pela parte, no prazo para a interposição do recurso contra a decisão final, ou para as contra-razões (art. 542, § 3º). No entanto, as interlocutórias de mérito, que decidem sobre pedido de tutela antecipada, ficaram, por construção pretoriana, fora do âmbito da retenção, bem assim aquelas que, não sendo decididas desde logo (versando sobre a penhora de bens, por exemplo), possam causar à parte prejuízo grave e de difícil reparação. Aqui tem-se quase sempre uma "solução de Pirro", (25) pois uma vez retido o recurso, enseja sempre o agravo interno, para o órgão do tribunal competente para o julgamento do agravo, não fosse a retenção. Esse é o grande problema dos recursos, pois, em vez de se vedar agravo da decisão singular do relator, que só seria objeto de exame por ocasião do julgamento do recurso principal, concede-se novo agravo contra tal decisão (agravo interno), apenas postergando o julgamento colegiado para um momento posterior.