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A crise do sistema penitenciário:

fator de introdução, no Brasil, do modelo consensual de Justiça Penal

01/05/2003 às 00:00
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1.O fenômeno crescente da criminalidade e a escassez de vagas nos presídios

A sociedade brasileira vive momentos de perplexidade em face do paradoxo que é o atual sistema penal. De um lado, tem-se o avanço desenfreado da violência, a exigir como forma de combate o aumento das penas e, de outro, a superpopulação carcerária e as conseqüentes rebeliões, a impor ao Governo a adoção de penas cada vez menores, que desafoguem as prisões. Em relação ao incremento da violência, a Revista Veja, de 8/12/1999, publicou uma estatística segundo a qual a média de assassinatos por dia em São Paulo atingiu a marca de 24 homicídios (esta é, diga-se, de dois meses em Londres, na Inglaterra, e um mês, em Tóquio, no Japão).

Quanto à superpopulação, o então secretário de Administração Penitenciária do referido Estado, João Benedito de Azevedo Marques, escreveu que

o sistema carcerário brasileiro, por sua vez, vive uma crise material. O Censo Penitenciário Nacional (1995) registra uma população carcerária de 148.760 detentos. O sistema padece de um problema fundamental, que é a superpopulação. Há, hoje, um déficit de 72.514 vagas nos sistemas estaduais. Isso sem contar os mais de 250 mil mandados de prisão que aguardam execução. Do total de encarcerados, 61,4% cumprem pena nas penitenciárias estaduais, enquanto 38,6% encontram-se em Distritos Policiais ou em outros estabelecimentos prisionais provisórios, sem as mínimas condições materiais de segurança. Essa superlotação agrava ainda mais as condições de encarceramento, com fortes repercussões na esfera da saúde, educação e trabalho dos presos.

De 1995 para cá, esse número praticamente dobrou, já que, em abril de 2002, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), havia 235.085 presos. Destes, 155 mil cumprem pena definida, enquanto 80 mil esperam julgamento pelos tribunais, sem mencionar o déficit, atual, de 58.055 vagas.

Ademais, o agravamento da violência urbana gerou, dentre outras, a edição da Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90), a superpopulação carcerária proporcionou o advento da Lei dos Juizados Especiais (9.099/95) e a alteração da parte geral do Código Penal possibilitou aos condenados a penas iguais ou inferiores a quatro ou menos anos o cumprimento de penas restritivas de direitos e não só privativas da liberdade (Lei 9.714/98). Eis o paradoxo: diante do aumento da violência, a sociedade clama pela agravação da pena, ao mesmo tempo em que, premido pela situação carcerária, o governo e boa parte dos juristas advogam o direito penal mínimo.

Isto tem gerado controvérsias e grandes debates. O jornal O Estado de São Paulo, por exemplo, em editorial de 3/10/1999, criticou duramente a proposta do então ministro da Justiça, José Carlos Dias, que era revogar a Lei dos Crimes Hediondos.

As modificações sugeridas pelo ministro deixam transparecer resquícios de fidelidade àquela corrente ideológica para a qual a natureza humana é perfeita e todos os delitos são produtos de uma sociedade mal estruturada e injusta, sendo os criminosos, portanto, vítimas desta sociedade. A prevalecer essa visão de mundo, a justiça se faria prendendo-se a sociedade e soltando-se os bandidos.

O fundamento da crítica do jornal foi a de que não é a soltura dos presos que solucionará a crise do sistema prisional, mas a construção de presídios e uma maior disciplina nesses estabelecimentos. Não restam dúvidas do acerto do editorial quanto à necessidade da construção de novos presídios, que atendam à demanda crescente da criminalidade, em especial à custa da União, uma vez que hoje há apenas um desse tipo, em funcionamento no Estado do Acre. Não se pode, porém, conceber isto como solução de todos os males da criminalidade, porque outras causas há a produção constante de um exército de indivíduos para quem a única saída é a prática delituosa.

Ademais, está comprovado estatisticamente que a Lei dos Crimes Hediondos não diminuiu o número de delitos, basta ver o resultado do Censo Penitenciário de 1995, quando havia 148.760 presos, e o censo de 2002 registrou 235.085 presos. Ao contrário, tudo indica que uma das causas para as constantes rebeliões seja a desesperança dos condenados que não têm direito à progressão do regime prisional, obrigados que são a cumprir pena em regime integralmente fechado.


2.A ilusão do aumento da pena no combate ao crime

Pode-se afirmar, sem nenhuma hesitação, que se não for tomada uma atitude séria e corajosa agora, mais grave a situação se tornará. É que se estão construindo, nos dias atuais, à custa da estabilidade monetária, uma legião de futuros marginais, os chamados menores de rua.

Têm-se, nesse sentido, sérias dúvidas se esse custo vale a pena. Na verdade, cidades pequenas, outrora pacatas, vivem cheias de mendigos e crianças, abandonados à própria sorte, o que obriga o Judiciário, sem recursos e sem meios, a ocupar o lugar do Executivo na proteção dos direitos da criança e do adolescente. Que, aliás, essas crianças aprendem atualmente? Os meninos começam com pequenos furtos, os viciados em cola de sapateiro passam ao assalto a mão armada e o tráfico de drogas pesadas. Para as meninas, resta o caminho sombrio da prostituição, não havendo salvação, pelo menos na atual conjuntura.

Vê-se, com perplexidade, que em relação a essas crianças fracassaram a família, a escola e o Executivo, instituições extrajudiciais de combate ao crime, sobrando para o Judiciário, detentor do jus puniendi estatal, a tarefa de, com a sua espada, conter a criminalidade, condenando o criminoso e atirando-o às masmorras. Daí surgem as idéias legislativas de conter-se o delito com a elevação das penas, sem se levar em conta que somente a ameaça de punições mais graves não previne a prática delituosa, pois que a segurança da população reside, no âmago, no enfretamento dos problemas sociais e da impunidade.

Ora, de acordo com o Censo 2000 do IBGE, publicado no sítio do órgão na internet, 15% da população economicamente ativa (PEA) está desempregada, o que representa 11,4 milhões de brasileiros. Dos que trabalham, 24,4% sobrevivem com menos de um salário mínimo por mês, sendo que 51,9% ganham, no máximo, dois salários. Somente em São Paulo vivem 1,077 milhão de pessoas em condições subnormais, ou seja, moram em favelas, cortiços ou domicílios improvisados (estes, pelo conceito do IBGE, são quaisquer instalações fixas que não deveria, em tese, servir de moradia, como prédios em construção, postos de saúde, vagões de trem, buracos, carroças, tendas, grutas, etc).

O analfabetismo não é, no Brasil, menos alarmante. Segundo o IBGE, 13,63% da população com mais de 15 anos é ágrafa, enquanto na Argentina esse percentual é de 3%, no Chile, 4%, na Venezuela, 7%, e na Colômbia, 8%. Assim, tomando como base a população acima de 10 anos, tem-se, no Brasil, 17,6 milhões de pessoas analfabetas, sendo que da população total, 34,7% dos chefes de família não completaram sequer quatro anos de estudo. Por outro lado, após a ocorrência do crime o aparelho judicial não atende às exigências, cada vez maiores, de um julgamento rápido, eficaz e gerador da certeza da punição aos infratores.

A idéia da impunidade como um mal social remonta, no entanto, a longas datas. Tanto que o grande penalista italiano Romagnosi, em Gênesis do Direito Penal (1956, 105), afirma que a sociedade possui a necessidade e mesmo o direito de eliminar a impunidade, por mais que a consideremos algo posterior ao delito. [1]


3.A evolução, no Brasil, das idéias penais

Vieira da Silva (1999, 22) afirma que "toda vez que ocorre um fato político de relevo, acarretando a alteração da estrutura constitucional do país, necessariamente as mudanças legislativas se fazem sentir, especialmente na esfera das leis penais". Diz, ainda, o citado jurista que, com a proclamação da Independência, surgiu a Constituição de 1824, que traçou as linhas mestras do Código Criminal do Império. Este, originado do Projeto de Bernardo Pereira de Vasconcelos, após aprovado pela Câmara e pelo Senado, mereceu a sanção de D. Pedro I, em 16 de dezembro de 1830.

As idéias liberais apregoadas por Beccaria influenciaram sobremaneira o legislador pátrio, que abrandou o terrífico retributivismo insculpido nas Ordenações Filipinas. A respeito, diz Jimenez de Asúa que a tendência do Direito Penal, desde sempre, é tornar-se público, ou seja, objetivo e imparcial, para alcançar a dignidade de ser chamado liberal. [2] Apesar desse avanço, segundo os ditames legais, a pena capital era cumprida na forca, devendo o réu ser conduzido preso pelas ruas mais freqüentadas até o patíbulo, acompanhado, inclusive, do Juiz Criminal e do Porteiro, que lia, em voz alta, a sentença.

Com a proclamação da República, edita-se um novo Código Penal, desta feita promulgado pelo Decreto 847, de 11 de outubro de 1890. E, depois do Golpe de 1937, na chamada Era Vargas, emerge um outro Estatuto Penal repressivo, o de 1940, reformado, em sua parte geral, em 1984, pela Lei 7.209. Essa época é marcada por forte tradição do chamado formalismo jurídico, quando, no dizer de Krell (2002, 71-72), os juízes eram racionais, imparciais e neutros, aplicando o direito legislado de maneira lógico-dedutiva e não criativa.


4.A Lei 9.099/95

A Lei 9.099/95 significou uma verdadeira revolução no sistema processual-penal brasileiro. Com efeito, seu surgimento implicou a possibilidade de se pôr fim aos processos judiciais, sem a necessidade de um procedimento moroso e penoso, com a dispensa da oitiva desmesurada de testemunhas e da reiteração da prática de atos repetitivos. Sobre esta Lei, diz Grinover (2002, 41) que:

"O modelo político-criminal brasileiro, particularmente desde 1990, quer dizer, desde que foi editada a Lei dos Crimes Hediondos, caracteriza-se inequivocamente pela tendência paleorrepressiva. Suas notas marcantes são: aumento das penas, corte de direitos e garantias fundamentais, tipificações novas, sanções desproporcionais e endurecimento da execução penal."

Na verdade, a Lei 9.099/95 não descriminalizou, isto é, não retirou o caráter ilícito de nenhuma infração penal. Ela trouxe, porém, quatro novas medidas despenalizadoras, que evitam a aplicação da pena privativa da liberdade: a) nas infrações de menor potencial ofensivo, cuja ação requer iniciativa privada ou pública condicionada à representação, havendo composição civil, resulta extinta a punibilidade (art. 74, parágrafo único); b) não havendo composição civil ou tratando-se de ação pública incondicionada, pode ocorrer a aplicação imediata de pena alternativa restritiva de direitos ou de multa (transação penal, art. 76); c) as lesões corporais culposas ou leves passaram a exigir representação da vítima (art. 88); d) os crimes cuja pena mínima não seja superior a um ano permitem a suspensão condicional do processo (art. 89). Isto segundo Krell (2002, 72), coincide com a exigência de alterações nas funções clássicas dos juízes, que se tornarem co-responsáveis pelas políticas dos outros poderes estatais.

As medidas despenalizadoras da Lei 9.099/95 significam a adoção do consenso como solução para os conflitos penais. Em última análise, é a aplicação da linguagem em toda a sua plenitude em contraposição à força. Hassemer (1998, 13) diz que a lei, sua concretização na dogmática jurídica, sua interpretação e aplicação pelos tribunais e a crítica a estas decisões, tudo isso é linguagem. Para ele onde termina a linguagem começa a força.

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5.Conclusão

A idéia da pena privativa de liberdade como panacéia perdeu força no Brasil e no mundo, tendo sido muito feliz o constituinte brasileiro de 1988, ao estabelecer no art. 98, I, da CF, a criação dos Juizados Especiais. Ademais, que o legislador ordinário, ao editar a Lei 9.099/95, substituiu o já ultrapassado modelo prisional pelo modelo consensual de justiça penal, pelo menos em relação ao que conceituou de infrações de menor potencial ofensivo. Assim, com a introdução, na Justiça Penal brasileira, dos institutos da transação penal, composição civil dos danos e suspensão condicional do processo oportuniza-se uma solução aos problemas da superpopulação carcerária e da morosidade do processo tradicional, tão cheio de incidentes e que, em última análise, constitui-se, ele mesmo, em verdadeira pena.


Notas

01. §251. – Si contemplamos, pues, la impunidad en las circunstancias del porvenir y dentro del seno de la sociedad, nos daremos cuenta de que será radicalmente destructora del cuerpo social.

§ 252. – Por lo tanto, com el fin de defenderse, la sociedad estará en la necesidad y por lo mismo en el derecho (§ 227) de eliminar la impunidad, por más que se considere como cosa posterior al delito (§§ 46 y 47). O, hablando más exactamente, la sociedad tiene derecho de hacer que la pena siga al delito, como medio necesario para la conservación de sus miembros y del estado de agregación en que se encuentra, ya que ella tiene pleno e inviolable derecho a estas cosas (§ 212). Y así surge el momento en que nace el derecho penal, el cual no es en el fondo sino un derecho de defensa habitual contra una amenaza permanente, nacida de ela intemperancia ingénita." (ROMAGNOSI, 1956, 105)

02. "La tendencia desde la antigüedad del derecho penal es hacerse público, es decir, objetivo, imparcial. En último término, para lograr ese rango que andando el tiempo se titulara liberal. La lucha entre la venganza de sangre o la expulsión de la comunidad de la paz, reacciones de las tribus contra el delincuente, sin medida ni objeto, y el poder del Estado para convertir en públicos los castigos, es un combate por la imparcialidad (y por ende, por el liberalismo) de nuestra rama jurídica. Com el tálion, que da al instinto de venganza una medida y un fin, se abre el periodo de la pena tasada. Así, se transforma en derecho penal público el poder ilimitado del Estado." (JUAN JIMENEZ DE ASÚA, 1995, 12)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRANDAMENTO DAS PENAS. O Estado de São Paulo, São Paulo, 3 out. 1999. Primeiro Caderno, Editorial, p. 2.

ASÚA, Juan Jiménez de. Lecciones de Derecho penal. México: Universidad Nacional Autónoma, 1995.

BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Censo penitenciário de 1995. Brasília: Imprensa Nacional, 1997.

BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Censo penitenciário de 2002. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/depen>. Acesso em: 14 nov. 2002.

GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES, Luís Flávio. Juizados Especiais Criminais: comentários à Lei 9.099/95. São Paulo: RT, 2000.

HASSEMER, Winfried. Crítica del Derecho penal de hoy. Colômbia: Universidad Externato de Colombia, 1998.

HOMICÍDIO: hora de dar um basta. Veja, São Paulo, n. 1967, p. 34, 8 dez. 1999.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2000. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 6 nov. 2002.

KRELL, Andreas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2002.

ROMAGNOSI, Giandomenico. Génesis del Derecho penal. Buenos Aires: Temis Bogotá, 1956.

SILVA, Alberto José Tavares Vieira da. A pena de morte e a codificação penal brasileira. Brasília: Tribunal Regional Federal da 1ª Região, 1992, (Cartilha Jurídica, n. 5).

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Sobre o autor
Roberto Carvalho Veloso

Juiz Federal no Maranhão. Professor Adjunto da UFMA. Mestre e Doutor em Direito Penal pela UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VELOSO, Roberto Carvalho. A crise do sistema penitenciário:: fator de introdução, no Brasil, do modelo consensual de Justiça Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 mai. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4088. Acesso em: 26 abr. 2024.

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