Art. 5°, XLIII, da CF e política de drogas: mandado de criminalização ou reserva legal qualificada?

14/07/2015 às 13:50
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Um debate suscitado pelo ensaio: “Descriminalização das drogas: possibilidade” (Carta Forense, edição de julho/2015. Matéria de capa, publicado em 02/07/2015).

Em relação ao meu ensaio sobre a inconstitucionalidade da política de drogas, tendo em vista sua dimensão estritamente jurídico-constitucional (cf.http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/descriminalizacao-das-drogas-possibilidade/15503), questionou-se (por e-mail a mim direcionado), com toda propriedade e conveniência, o papel do possivelmente concorrente ou até colidente parâmetro normativo-constitucional do art. 5°, XLIII da CF. Aparentemente, trata-se de uma ordem de criminalização, que faria com que a legalização propugnada no referido ensaio dependesse de prévia Emenda Constitucional.

1. O disposto no art. 5°, XLIII da CF deve ser entendido como uma espécie de reserva legal. Não como um dever de criminalização substantivo, tal qual a ordem de criminalizar o racismo, estipulada, no inciso anterior; ou das atividades paramilitares contra a ordem constitucional ou o Estado de direito do art. 5°, XLIV da CF. Seu uso faz parte, como qualquer reserva legal, da livre discricionariedade legislativa. Pressupondo, assim, para fazer sentido, a criminalização, i.e., a definição prévia do tipo penal pelo legislador penal material (interpretação sistemática). Isso porque se trata da possibilidade prevista pelo constituinte de restringir certas garantias constitucionais do processo (basicamente inafiançabilidade e eventuais restrições perpetradas pela lei de crimes hediondos) para crimes tidos por “hediondos” ou equivalentes (tortura e terrorismo) pelo legislador penal material.

2. Também o teor do dispositivo viabiliza a presente interpretação liberal (conjunta, portanto, com outra interpretação sistemática e teleológica do sistema de direitos fundamentais da CF), segundo a qual a classificação de efeitos processuais do caráter hediondo ou equivalente do “tráfico ilícito de drogas” (grifos meus) pressupõe, que a ilicitude em sentido estrito seja, primeiro, definida pelo legislador penal. Com isso, a decisão legislativa sobre a tipificação recai, novamente, na esfera discricionária do legislador penal material. O dispositivo constitucional em pauta não ordena ao legislador ordinário criminalizar a conduta. Há uma significativa diferença de teor entre os incisos XLII e XLIV, de um lado; e inc. LXIII, de outro: câmbio de “constitui” para “a lei considerará”. Graças à sistemática e à teleologia, o disposto no inc. XLIII pode ser interpretado como: “a lei considerará – ou poderá considerar – desde que o comércio/tráfico de substâncias relacionadas como drogas seja ilícito, e na exata extensao de sua ilicitude previamente definida”.

3. De resto, também segundo a interpretação literal-sistemático-teleológica, o rol de drogas ilícitas (definido nem mesmo pelo próprio legislador ordinário, como se sabe) não teria como ser definido pelo constituinte. Isto é: Logicamente, o legislador poderia esvaziar, paulatinamente, a lista das drogas ilícitas ou modificá-la de acordo com seu livre critério, comprovando minha teoria de se tratar de uma mera reserva legal e não de um mandamento de criminalização, tal qual firmado pelo constituinte no art. 5°, XLII e no art. 5°, XLIV da CF.

4. Contra esse meu entendimento, poderia ser oposta uma interpretação mais literal/gramatical do inciso XLIII, desconsiderando-se seu contexto normativo. Segundo esta, a expressão “a lei considerará” teria de ser traduzida, no máximo, como a lei “deve”, ou mesmo, a lei “deverá”.

4.1 Concessivamente, trata-se de uma comezinha técnica legislativa, mesmo legislativo-constitucional, essa técnica de revestir ordens legislativas (i.e., ordens de legislação destinadas ao competente órgão constitucional legislativo), no caso de criminalização, com verbos conjugados no futuro do presente do modo indicativo. No direito comparado, o constituinte alemão revestiu a mais relevante ordem, concomitantemente de abstenção e prestação, na abertura do texto constitucional da Grundgesetz, com uma sentença, cujo verbo e sua conjugação são muito significativos: “A dignidade humana é intocável. Observá-la e protegê-la é dever de todo órgão estatal” (cf. art. 1, I GG, grifo meu). Como obviamente o constituinte não está descrevendo nenhum atributo da dignidade humana (seria algo totalmente estranho à sua missão), traduz-se normalmente a sentença como: “a dignidade humana deve ser intocável”; ou: “a dignidade humana não pode ser violada” ou outras fórmulas, que se revistam de caráter normativo (dever ser) e não descritivo (ser).

4.2 Contudo, tal interpretação não é cogente, mesmo considerando-se apenas o teor.

4.2.1 Com efeito, o verbo “considerar”, conjugado no futuro do presente do indicativo, sugere até mesmo que o legislador apresentará seu crivo sobre a oportunidade e conveniência de se criminalizar, que, todavia, diriam novamente os divergentes, poderia estar sendo relativizado; melhor: sua margem discricionária poderia estar sendo reduzida a zero, graças a esse teor. Em todo caso, o teor em pauta não exclui (Wortlautgrenze, limite do teor) nossa interpretação de tendência restritiva implícita na supra aventada gramática do verbo com o efeito ordenado principal da inafiançabilidade e com as locuções “tráfico ilícito” e “entorpecentes e drogas afins”.

4.2.2 Mesmo em se admitindo uma natureza de específico mandado de criminalização (decisão axiológica do constituinte a ser, no mais, demonstrada) ao inc. LXIII, a necessária interposição normativa pelo legislador penal tem consequências ligeiramente diferentes, quando comparadas às consequências dos mandados relativos aos demais objetos a serem criminalizados dos inc. LXII e LXIV (racismo, ataque à ordem constitucional e ao Estado de direito) ou do próprio inc. LXIII (tortura, terrorismo, crimes hediondos). Com efeito, não basta definir a conduta do “tráfico ilícito”, mas também o rol das substâncias ilícitas. Em relação a este, tem-se, portanto, no máximo, uma reserva legal qualificada.

4.2.3 Como o teor não exclui nossa interpretação, o sistema normativo e a teleologia que parte da prevalência das liberdades em face da raison d’etat; e, mais importante, como não se pode pressupor competências estatais em detrimento dos direitos fundamentais (in dubio pro libertate), a teoria de que se trata, no inciso XLIII, com um todo, de uma notória ordem de criminalização, tal qual ocorre nos incisos imediatamente anterior e posterior, resta, definitivamente, refutada.

4.3 No que tange a essa reserva legal, tem-se um caso de reserva legal qualificada, a qual, a exemplo de reservas legais simples, podem ou não ser usadas pelo legislador ordinário. O legislador, no caso da reserva legal simples do art. 5°, XIII da CF (“... atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”), pode ou não restringir um direito fundamental, no caso a liberdade profissional de uma determinada categoria (mencione-se o caso da decisão do STF sobre a exigibilidade do diploma de jornalista). E isso ocorre a despeito de o teor do dispositivo ter o condão de sugerir, que a liberdade profissional será exercida “desde que...”, ou “na medida de sua regulamentação legislativa”, o que levaria na prática à dispensa do legislador de seu vínculo à liberdade profissional. Assim também, no caso em tela, cabe ao legislador penal material decidir pela criminalização ou não “do tráfico” das substâncias; de resto, por ele mesmo, definidas como drogas. Optando pela criminalização do tráfico da droga “x”, cogente seria então a atribuição pela legislação pertinente do efeito da inafiançabilidade.

5. Assim, em termos normativo-sistemáticos, não há uma relação lex generalis – lex specialis entre a garantia do caput (“liberdade”) e o disposto no inciso XLIII: Não há, portanto, de se falar em exclusão da área de proteção do art. 5°, caput da CF, do direito fundamental à autodeterminação verificada em nosso ensaio. Do ponto de vista jurídico-dogmático, trata-se apenas de uma reserva legal qualificada por meios e propósitos de intervenção legislativa, predeterminados pelo constituinte.

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6. Tais normas autorizam o legislador a atuar em determinado sentido. Não lhes prescreve certa e determinada legiferação. Por isso, ao contrário de outra comum objeção, o inciso XLIII não tem seu objeto roubado pela presente via hermenêutica, nem mesmo no que tange à política de drogas (pois ele trata de outros objetos também): Como autorização, reserva legal contra garantias constitucionais do processo e pelo menos um direito fundamental material (liberdade do caput), ele tem um efeito latente em relação a certas matérias, tais como à política de drogas. Uma vez usada tal reserva, o legislador carrega o ônus de justificar sua intervenção nos direitos e garantias fundamentais atingidos, como de praxe na dogmática, explicitada em linhas muito gerais no meu ensaio.

7. Questionável é se semelhante raciocínio poderia ser estendido às demais menções feitas pelo texto constitucional ao tráfico ilícito de drogas. Segundo o art. 5°, LI da CF, o brasileiro naturalizado poderá ser extraditado se “comprovado seu envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins”; segundo o art. 144, II da CF, cabe à Polícia Federal “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes ou drogas afins”; e, conforme o art. 243, § único da CF, “todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência de tráfico ilícito (...)” deverá ser confiscado. Também em tais casos – com mais propriedade, no entanto, nos casos dos art. 144, II e 243, § único da CF – pressupõe-se a ilicitude, a ser necessariamente definida pelo legislador penal ordinário (extensão do/s verbo/s na definição do tipo e definição do rol de drogas ilícitas). No que tange ao inc. LI do art. 5°, tem-se a mesma consequência. Nada obstante, podem e devem ser classificadas aqui três categorias jurídico-dogmáticas:

7.1 No art. 5°, LXIII da CF, com sua já apresentada reserva legal qualificada pela fixação de um dever de criminalização sui generis pela questão da fixação do rol de substâncias. Fala-se, aqui, em dever de criminalização “sui generis”, porque ele, diferentemente da criminalização do racismo, terrorismo, tortura, atentado contra a ordem constitucional ou o Estado de direito e demais “crimes hediondos” (este último revelando por sua vez mais peculiaridades dogmáticas que podem ser deixadas aqui em aberto), pode ser aperfeiçoado tão somente mediante decisões legislativas pertinentes à referida margem discricionária. Com efeito, definir, por exemplo, o que é racismo é tarefa do legislador penal material, mas no caso em pauta além do verbo, têm de ser definidas quais substâncias são proibidas e sob quais circunstâncias.

7.2 No art. 5°, LI e no art. 243, § único da CF, têm-se limites constitucionais a, ou exclusões a priori de proteção de outros direitos fundamentais (respectivamente garantia contra extradição, propriedade contra expropriação), a depender de aprofundamentos jurídico-dogmáticos.

7.3 No art. 144, II da CF, tem-se apenas uma definição de competência em favor da PF, dependendo, de novo, da predefinição de legislador penal.

8. Por fim, politicamente falando, não há porque acabar, em geral, com o tipo penal do tráfico ilícito de drogas (ou denominá-lo então como contrabando ou qualquer outro seria uma questão quase meramente cosmética). Ou seja, é possível manter boa parte da política repressiva sem violar a liberdade do art. 5°, caput da CF.

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Sobre o autor
Leonardo Martins

Bacharel em direito pela Universidade de São Paulo (USP)<br>Mestre (LL.M.) e doutor (doctor iuris - Dr. iur.) em Direito Constitucional pela Humboldt-Universität zu Berlin, Alemanha<br>Pós-doutorados pelo Hans-Bredow-Institut para a Pesquisa da Comunicação Social da Universidade de Hamburg e pelo Erich Pommer Institut - Economia e Direito da Comunicação Social da Universidade de Potsdam (fellow da Fundação Alexander von Humboldt) e, novamente, pela Humboldt-Universität zu Berlin<br><br>Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)<br>Foi Professor visitante da Humboldt-Universität zu Berlin (2001-2012); diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais (IBEC); autor e coautor de diversos artigos, ensaios e obras monográficas na área do direito constitucional brasileiro e comparado. Destaque para as obras: Teoria geral dos direitos fundamentais (em coautoria com Dimitri Dimoulis, 5. ed., 2014), ganhadora do 50º Prêmio Jabuti de Literatura na categoria “Melhor Livro de Direito” (2008); Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais (2012); Direito processual constitucional alemão (2011), publicados pela Atlas<br>Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional federal alemão (Montevideu: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2005).

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