1. Introdução
Como corolário do Princípio da Supremacia do Interesse Público, nossa legislação prevê a possibilidade da existência de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. Tais cláusulas são prerrogativas da Administração que normalmente não são encontradas ou seriam abusivas nos contratos entre os particulares. Dessa forma, a possibilidade de aplicação de sanções aos que mantêm contratos administrativos com o Estado é uma das modalidades de cláusulas exorbitantes[1]. Nesse contexto, Di Pietro assim define tais cláusulas:
São cláusulas exorbitantes aquelas que não seriam comuns ou que seriam ilícitas em contrato celebrado entre particulares, por conferirem prerrogativas a uma das partes (Administração) em relação à outra; elas colocam a Administração em posição de supremacia sobre o contratado[2].
Assim, ocorrendo a inexecução total ou parcial do contrato, a Administração Pública, garantida a prévia defesa, passa a ter a prerrogativa de aplicar ao contratado as sanções de advertência, multa, suspensão temporária ou declaração de inidoneidade.
Dentre essas sanções, a extensão dos efeitos da suspensão temporária de participar de licitação e impedimento de contratar com a Administração tem gerado divergências tanto na doutrina especializada como na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ e do Tribunal de Contas da União – TCU.
Em apertada síntese, o STJ tem se posicionado pela interpretação ampliativa do inciso III do art. 87 da Lei 8.666/93, afirmando que os efeitos da suspensão temporária alcançam os demais órgãos da administração pública, senão vejamos:
Não há como o município, órgão da Administração Pública, aceitar a participação em licitação da empresa suspensa temporariamente por órgão fundacional estadual[3].
Em sentido contrário, o TCU, em regra, adota interpretação restritiva dos efeitos dessa sanção administrativa, entendendo que tem abrangência restrita ao órgão ou pessoa estatal que aplicar a sanção.
A controvérsia destes autos diz respeito ao alcance da sanção de suspensão temporária (inciso III do art. 87 da Lei 8.666/93) e à possibilidade de editais proibirem a participação, em licitações, de sociedades cujos diretores, sócios e dirigentes façam parte do ato constitutivo de pessoas jurídicas suspensas ou declaradas inidôneas para contratar com a Administração. (...)
Esta Corte, em consonância com grande parte da doutrina, vem considerando que a "suspensão temporária para participação em licitação e impedimento para contratar com a Administração", prevista no inciso III do art. 87 da Lei 8.666/93, tem abrangência restrita ao órgão ou pessoa estatal que aplicar a sanção[4].
Assim, a controvérsia jurídica que se pretende analisar neste trabalho restringe-se à repercussão, nas diferentes esferas de governo, da emissão de declaração de suspensão temporária de participar de licitação e impedimento de contratar com a Administração, prevista no inciso III do art. 87 da Lei 8.666/93. Em outras palavras, busca-se responder à seguinte questão: uma empresa sancionada com fundamento no art. 87, III da Lei de Licitações e Contratos pode participar de uma licitação em órgão público diverso do que aplicou a sanção?
2. O que dispõe a Lei de Licitações e Contratos
Inicialmente, é importante lembrar que a aplicação de sanções administrativas deve observar o Princípio da Estrita Legalidade, ou seja, a autoridade administrativa tem a obrigação de levar em consideração os limites legais de aplicação, não podendo, por exemplo, aplicar uma penalidade não prevista expressamente em lei.
Além disso, o administrador público não tem a faculdade de aplicar ou não a sanção. Ocorrendo o fato ensejador de punição, ele tem o dever de fazê-lo. Por outro lado, pode-se dizer que há situações em que existe certa discricionariedade no aspecto quantitativo da pena. Todavia, essa discricionariedade não deve ser confundida com arbitrariedade, pois deve ser exercida de acordo com os Princípios da Razoabilidade e da Proporcionalidade. Do contrário, o contratado deverá contra elas se insurgir, como nos ensina Zanotello:
A aplicação dessas sanções, além de devidamente motivada, deverá ser pautada pelos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, efetuando-se a justa compatibilização entre a situação fática no caso concreto e a penalidade a ser aplicada. Sanções desarrazoadas ou desproporcionais deverão ser objeto de questionamento por parte do contratado[5].
Logo, se a legalidade estrita impõe limites à autoridade pública definindo quais as sanções passíveis de aplicação e quando penalizar, a proporcionalidade dá conformidade ao quantum de pena a ser utilizado.
Isso posto, para o escopo principal deste trabalho, tem-se por necessário analisar o disposto no art. 87 da Lei nº 8.666/93.
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: (...)
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Da leitura desse dispositivo legal infere-se que o legislador adotou terminologia distinta nos incisos III e IV, pois na suspensão temporária de participar de licitação ou contratar com o Poder Público utilizou o termo “Administração” e na declaração de inidoneidade lançou mão da expressão “Administração Pública”.
Tal distinção ganha interessante relevância quando interpretada em conjunto com o contido no art. 6º da mesma Lei Geral de Licitações:
Art. 6º Para os fins desta Lei, considera-se: (...)
XI - Administração Pública - a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas;
XII - Administração - órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente;
Niebuhr[6], ao analisar essa distinção, assim se posiciona:
Esses dois termos – Administração e Administração Pública – são utilizados no linguajar coloquial e até mesmo em livros técnicos (como este) como sinônimos. Isso, sem dúvida, contribui decisivamente para que muitos não se apercebam da diferença entre eles. Sem embargo, para a sistemática da Lei nº 8.666/93, Administração e Administração Pública são expressões bastante diferentes, conforme se depreende dos incisos XI e XII do seu art. 6º. (...)
É de clareza solar que a expressão Administração Pública refere-se ao conjunto de todos os órgãos e entidades que integram o aparato administrativo do Estado. Já o vocábulo Administração diz respeito somente ao órgão ou entidade pelo qual a Administração Pública opera, isto é, aquele que realiza a licitação, que firma o contrato. (com destaques no original)
Do acima exposto, depreende-se que a “Administração” está contida na “Administração Pública”, para fins da Lei 8.666/93, mas o inverso não é verdadeiro. Ou seja, pela interpretação literal do dispositivo legal, os efeitos da suspensão temporária teriam como limite a jurisdição administrativa do órgão sancionador e, por sua vez, a declaração de inidoneidade alcançaria toda a administração pública direta e indireta, independentemente de quem sancionou o contratado.
Todavia, como se verá a seguir, o STJ e o TCU divergem quanto à interpretação dessas expressões, acarretando insegurança jurídica tanto para a Administração Pública quanto para os que têm interesse em contratar com o poder público.
3. A sanção de suspensão temporária na ótica do Superior Tribunal de Justiça
O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento consolidado no sentido de não diferenciar “Administração” de “Administração Pública” e, por consequência, estende os efeitos da sanção de suspensão de licitar e contratar com a Administração a qualquer órgão da Administração Pública. Nesse sentido, transcrevemos a seguinte ementa[7]:
ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – LICITAÇÃO – SUSPENSÃO TEMPORÁRIA – DISTINÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - INEXISTÊNCIA – IMPOSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE LICITAÇÃO PÚBLICA – LEGALIDADE – LEI 8.666/93, ART. 87, INC. III.
- É irrelevante a distinção entre os termos Administração Pública e Administração, por isso que ambas as figuras (suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) e declaração de inidoneidade (inc. IV) acarretam ao licitante a não-participação em licitações e contratações futuras.
- A Administração Pública é una, sendo descentralizadas as suas funções, para melhor atender ao bem comum.
- A limitação dos efeitos da “suspensão de participação de licitação” não pode ficar restrita a um órgão do poder público, pois os efeitos do desvio de conduta que inabilita o sujeito para contratar com a Administração se estendem a qualquer órgão da Administração Pública.
O STJ e a doutrina[8] minoritária que se filia a esta corrente argumentam que se um contratado é punido por um ente federativo e tal sanção não é extensível aos demais entes da federação, ele poderia contratar com outros órgãos públicos, o que pode acarretar riscos para as demais entidades federativas e redundaria em ineficácia da sanção, como se vê neste julgado:
ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES. MANDADO DE SEGURANÇA. ENTES OU ÓRGÃOS DIVERSOS. EXTENSÃO DA PUNIÇÃO PARA TODA A ADMINISTRAÇÃO.
1. A punição prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93 não produz efeitos somente em relação ao órgão ou ente federado que determinou a punição, mas a toda a Administração Pública, pois, caso contrário, permitir-se-ia que empresa suspensa contratasse novamente durante o período de suspensão, tirando desta a eficácia necessária[9].
No mesmo caminho, afirma Justen Filho[10]:
(...) Se o agente apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com um determinado sujeito administrativo, os efeitos dessa ilicitude teriam de se estender a toda a Administração Pública. Assim se passa porque a prática do ato reprovável, que fundamentou a imposição da sanção de suspensão do direito de licitar e contratar, evidencia que o infrator não é merecedor de confiança.
Além disso, sustentam[11], resumidamente, que “administração” e “administração pública” são sinônimos; que a Administração Pública é una, sendo apenas descentralizado o exercício de suas funções; que a exegese adequada do preceito perpassa pela intelecção dos princípios fundamentais da Administração Pública, destacando-se o princípio da moralidade; que as sanções previstas no art. 87 da Lei 8.666/93 buscam impelir o particular a executar o contrato administrativo; e, por fim, que a Administração Pública tem o dever incontornável de agir para evitar dano injusto em razão do princípio da prevenção.
4. A sanção de suspensão temporária na ótica do Tribunal de Contas da União
A jurisprudência do TCU tem apresentado oscilações sobre a extensão dos efeitos da sanção do art. 87, III. Até 2010, verifica-se que a Corte de Contas adotava o entendimento que essa penalidade ficaria restrita ao próprio órgão que a aplicou[12].
Em 2011, a 1ª Câmara entendeu que os efeitos da suspensão temporária alcançavam todos os órgãos e entidades de qualquer ente da federação, adotando entendimento semelhante ao do Superior Tribunal de Justiça[13]. Ilustrando o entendimento desse órgão fracionário da Corte de Contas, transcreve-se trecho do Acórdão 3.757/2011 – 1ª Câmara:
Quanto ao ponto que discute o alcance dos efeitos da penalidade de suspensão do direito de licitar e contratar com a administração pública, trago ao conhecimento do responsável que, posteriormente à instrução da Secex/AC, foi proferido o Acórdão nº 2218/2011 - TCU - 1ª Câmara, de 12.4.2011, no qual esta Corte reviu seu posicionamento sobre o alcance dessa penalidade, ante o nobre propósito de dar proteção à Administração Pública e ao interesse público, e considerando decisões do Superior Tribunal de Justiça. O novo entendimento dado à questão foi "de que a vedação à participação em licitações e à contratação de particular incurso na sanção prevista no inciso III do art. 87 da Lei 8.666/1993 estende-se a toda a Administração direta e indireta”.
Já em 2012, o Tribunal de Contas parece ter sedimentado seu entendimento pela restrição dos efeitos dessa penalidade ao órgão ou entidade sancionadora, como se constata no voto do Relator no Acórdão 3.439/2012 – Plenário, no qual foi rejeitado o pedido de instauração de incidente de uniformização jurisprudencial:
No que se refere à sugestão da representante do Ministério Público de suscitar incidente de uniformização de jurisprudência, na forma do art. 91 do Regimento Interno, entendo não ser o caso, visto que as deliberações do Plenário são praticamente uniformes no sentido de que "a suspensão do direito de licitar abrange apenas o órgão ou a entidade contratante que aplicou a penalidade, conferindo, portanto, interpretação restritiva aos ditames legais previstos na Lei de Licitações e Contratos (v. g. Decisão n.º 352/1998-Plenário, sessão de 10/6/1998; Decisão n.º 36/2001-Plenário, sessão de 7/2/2001; Acórdão n.º 296/2003-Plenário, in Ata n.º 11".
Ao examinar o dissenso, o Relator desse Acórdão, Min. Valmir Campelo, argumentou nestes termos:
Ora, com as devidas vênias por discordar do entendimento da Unidade Técnica às fls. 6/7 da peça n.º 26, e na mesma linha deste último posicionamento, não nos parece medida de justiça rescindir o contrato prorrogado com base no entendimento jurisprudencial do STJ e em um julgado da 1.ª Câmara do TCU, que segue a orientação daquele Tribunal Superior, bem como na posição doutrinária minoritária de Marçal Justen Filho e Juarez Freitas. Em que pesem os argumentos coerentes em favor da defesa e do resguardo do interesse público, é forçoso admitir que o legislador ordinário não distinguiu os termos Administração e Administração Pública no art. 6.º, do Estatuto de Licitações e Contratos, sem um objetivo bem definido (na lei não há palavras inúteis). Não se pode atribuir ao acaso tal esforço, pois se fosse despicienda essa distinção, bastaria conceituar o termo mais abrangente.
Em verdade, verifica-se que as sanções administrativas, previstas no art. 87 do Estatuto de Licitações e Contratos, foram cominadas de forma a obedecer certa gradação, permitindo assim à autoridade competente proceder à dosimetria da pena de acordo com a gravidade da falta praticada pela contratada. Portanto, não se pode confundir a sanção de suspensão com a de declaração de inidoneidade para licitar, sob pena de se punir desproporcionalmente aqueles que não deram causa para tanto. Fazer tábula rasa dessa distinção significa tornar inócua a sanção de declaração de inidoneidade para licitar, que restaria diferenciada apenas quanto ao quantum da pena. (...)
Além disso, se no § 3º do referido dispositivo o legislador destacou procedimento especial e rito diferenciado para a declaração de inidoneidade, manifestamente mais rigoroso e com maior amplitude de defesa, fica claro que o fez por se tratar de sanção evidentemente mais gravosa.
No conceito hermenêutico da inexistência de letra morta na lei, a mera interpretação literal seria suficiente. Em análise holística da legislação, a única interpretação sustentável é a de que a diferença entre as penalidades vai além da duração de cada uma, abrangendo também a esfera administrativa de poder: a Administração ou a Administração Pública.
Mais recentemente, no ano de 2013, o Tribunal de Contas da União reiterou que a sanção de suspensão temporária alcança apenas o órgão ou entidade que a aplicou[14].
Coerentemente com esse entendimento, afirmou que não permitir que empresas suspensas por órgãos estaduais ou municipais participem de licitações promovidas pela união não está em consonância com a legislação de regência e restringe a competitividade.
Dentro dessa linha, recomendou que, ao prever a sanção de suspensão temporária nos editais de licitação, se faça constar expressamente o nome do órgão público que a promove, ao invés de “Administração”, com intuito de dar interpretação adequada ao dispositivo legal, bem como informar ao licitante o alcance da sanção constante do inciso III do art. 87.
Além disso, ainda em 2013, o Plenário do TCU reiterou expressamente que pacificou a sua jurisprudência de que a sanção de suspensão temporária da Lei 8.666/93 tem aplicação restrita ao órgão que a aplicou. Por sua relevância, transcreve-se a ementa do Acórdão 1017/2013-Plenário:
A sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993 (suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração) tem aplicação restrita ao órgão ou entidade que a cominou.
Agravo interposto pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) contra decisão cautelar que determinara a correção do edital do Pregão Eletrônico 122/ADCO/SRCO/2012 de modo a ajustá-lo ao disposto no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993, ou seja, para que a penalidade ali prevista alcance apenas as empresas suspensas por aquela estatal, consoante o entendimento do Acórdão 3.243/2012-Plenário. Argumentou a recorrente que: (i) a jurisprudência do TCU não estaria pacificada nos termos da citada decisão; (ii) diante da dúvida objetiva, seria tecnicamente impróprio falar-se em fummus boni iuris; (iii) a aplicação retroativa do novel entendimento atentaria contra o princípio da segurança jurídica consubstanciado no art. 2º, caput, da Lei 9.784/1999. O relator refutou todos os argumentos, esclarecendo que “o Tribunal pacificou a sua jurisprudência em considerar que a sanção prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993, que impõe a ‘suspensão temporária para participar em licitação e impedimento para contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos’, tem aplicação restrita ao órgão ou entidade que a aplicou” e restabeleceu “o entendimento já consolidado na sua jurisprudência, no sentido de fazer a distinção nítida entre as sanções previstas nos aludidos incisos III e IV do art. 87 da Lei 8.666/1993, conforme Acórdão 3.243/2012 – TCU – Plenário”. Quanto à suposta aplicação retroativa, o relator contra-argumentou que, além de o acórdão em questão não ter criado novo entendimento, mas restabelecido a jurisprudência antes consolidada, “a Infraero teve oportunidade de corrigir o instrumento convocatório logo após tomar conhecimento da edição da mencionada deliberação e, também, ao receber a impugnação apresentada... , o que, entretanto, preferiu não fazer, mesmo após ter sido comunicada da Cautelar concedida no mesmo sentido pelo Tribunal”. “Em segundo lugar, as jurisprudências deste Tribunal e do Supremo Tribunal Federal são firmes no sentido de que o disposto na Lei 9.784/1999 não se aplica aos processos de controle externo apreciados por esta Corte de Contas.” O Plenário acompanhou o relator e negou provimento ao Agravo.
Ademais, cumpre ressaltar que a doutrina majoritária trilha o mesmo caminho, como esclarece Di Pietro:
Os incisos III e IV do artigo 87 adotam terminologia diversa ao se referirem à Administração Pública, o que permite inferir que é diferente o alcance das duas penalidades. O inciso III, ao prever a pena de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos, refere-se à Administração, remetendo o intérprete ao conceito contido no artigo 6º, XII, da Lei, que define como “órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente”. O inciso IV do artigo 87, ao falar da inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública, parece estar querendo dar maior amplitude a essa penalidade, já que remete o intérprete, automaticamente ao artigo 6º, XI, que define Administração Pública de forma a abranger “a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade de direito privado sob o controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas”[15]. (grifos no original)
Para Pereira Junior[16], há notória distinção entre as sanções cominadas no art. 87 do Estatuto de Licitações e Contratos a evidenciar gradação das penalidades a serem impostas de acordo com a gravidade das infrações administrativas praticadas. Acrescenta ainda que o art. 97 da mesma lei considera crime admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional inidôneo, não existindo tipificação equivalente em relação à empresa ou profissional suspenso. Para ele, a razão é clara e se funda no fato de a norma penal, por ser nacional, projetar seu alcance em todo o território brasileiro, em qualquer esfera da Federação. Assim, o fato de a suspensão constituir sanção local afasta a sua configuração penal.
Por fim, em 2014, a Corte de Contas prolatou interessante acórdão excepcionando a interpretação consolidada sobre o alcance da penalidade de suspensão prevista no art. 87, III.
Analisando o caso concreto, o Tribunal não anulou procedimento licitatório no qual uma empresa foi impedida de participar, por força de interpretação errônea do alcance da sanção de suspensão temporária. Adotou como fundamentos dessa decisão a observância do Princípio da Supremacia do Interesse Público, a baixa materialidade do objeto, a não restrição à competitividade e o fato de não haver indício de conluio entre licitantes e gestores. Pela importância, transcreve-se o seguinte trecho do Acórdão 1457/2014-Plenário:
Representação de licitante relativa a pregão presencial promovido pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo – Cremesp, tendo por objeto a contratação de empresa especializada em serviços de vigilância desarmada e segurança patrimonial, apontara a utilização irregular da suspensão para licitar prevista no art. 87, inciso III, da Lei 8.666/1993. O Cremesp, em sede de oitiva, reconheceu que “o item 4.1.3 do instrumento convocatório do certame em tela vedou a participação de empresa que houvesse recebido, de qualquer órgão ou entidade da Administração Federal, a penalidade de suspensão prevista no inc. III do art. 87 da Lei 8.666/1993, situação que contrariaria o disposto naquele dispositivo, de acordo com o entendimento prevalente no âmbito deste Tribunal (...), no sentido de que referida sanção produziria efeito apenas em relação ao órgão ou entidade contratante que a aplicou”. Ao analisar pedido de suspensão cautelar do certame ou da execução do contrato firmado, o relator mencionou que a medida acautelatória a ser adotada pelo Tribunal tem como embasamento o fundado receio de grave lesão ao erário ou ao interesse público, situação que não pode ser confundida com a defesa de interesses particulares eventualmente contrariados pelo ato administrativo questionado. No caso concreto, o relator se convenceu de que houve ampla participação no pregão, intensa disputa de lances e indícios de efetiva economia aos cofres públicos diante do valor arrematado. Assim, consignou que “ainda que se possa vir a argumentar que a representante foi prejudicada pela interpretação extensiva aplicada pelo Cremesp ao disposto no inc. III do art. 87 da Lei 8.666/1993, ao ser impedida indevidamente de participar do Pregão Presencial 90/2013, não há indicativos de que a falha de procedimento haja conduzido à restrição da competitividade do certame”. Nesse passo, em linha com precedentes do TCU, concluiu o condutor do processo não estar configurada a hipótese de anulação do procedimento licitatório ou do contrato firmado, “tendo em vista, além do que já se observou a respeito da ausência de restrição à competitividade do certame, a não identificação de indícios de conluio entre as licitantes e os gestores das unidades jurisdicionadas, bem como do risco reduzido de a falha em questão acarretar lesão significativa ao Erário, em face da baixa materialidade do objeto”. O Plenário, à vista dos argumentos do relator, considerou parcialmente procedente a representação e indeferiu o pedido de cautelar formulado pela representante.
5. Conclusão
Portanto, ao nosso sentir, a doutrina majoritária e a Corte de Contas da União parecem estar com a razão, pois a Lei de Licitações e Contratos conceituou de forma diversa os termos “Administração” e “Administração Pública” e, de acordo com as lições de hermenêutica, a lei não tem palavras inúteis. Acrescente-se ainda que se o âmbito de alcance das sanções existentes nos incisos III e IV do art. 87 fosse o mesmo (restrito ao órgão ou entidade que a aplicou), elas seriam idênticas, o que contraria a regra de hermenêutica segundo a qual devem ser afastadas as interpretações desarrazoadas.
Além disso, ao analisar o art. 87 da Lei 8.666/93, fica evidente que as sanções elencadas obedecem a uma gradação, permitindo ao administrador público realizar a dosimetria da pena de acordo com a gravidade do fato. Tal gradação dá conformidade ao Princípio da Proporcionalidade, incidente nas sanções administrativas por expressa determinação legal[17].
Também corroborando a correção do entendimento do Tribunal de Contas da União, vê-se que o §3º do art. 87 prevê procedimento especial e mais rigoroso para a declaração de inidoneidade, franqueando maior amplitude de defesa ao contratado, deixando evidente se tratar de sanção administrativa mais gravosa do que a de suspensão temporária.
Não bastasse isso, toda norma que impõe restrição de direitos deve ser interpretada de forma restritiva. Dessa feita, a interpretação tecnicamente correta é a de que as penalidades de suspensão temporária e de declaração de inidoneidade são diversas não só em relação à duração de cada uma, mas também em razão da gravidade do fato ensejador da sanção e do alcance dos efeitos de cada uma.
Por todo o exposto, não cabe ao intérprete inovar quando a mera interpretação literal é suficiente, sendo que, “para os fins”[18] da Lei de Licitações e Contratos, “Administração” e “Administração Pública” são expressões diversas, fazendo com que os efeitos da penalidade de suspensão de licitar e impedimento de contratar com o poder público sejam restritos ao órgão ou ente público que a aplicou.
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