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Os efeitos da maconha e a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas

10/08/2015 às 13:38
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O uso do direito penal para inibir o uso de drogas somente seria legítimo — do ponto de vista do sistema constitucional pátrio — se justificado pela necessidade de proteger algum bem jurídico imprescindível à garantia da dignidade humana.

I – ESTUDOS CIENTIFICOS NA MATÉRIA E LEGISLAÇÃO APLICADA

No relatório da Comissão Schafer(Drug use in America: problem in perspective, 1973, 139), tem-se que  “a dependência de drogas é um fenômeno dinâmico, e a formulação da política social deve refletir sua complexidade e relatividade. A base primária da dependência de todo uso de drogas é o reforço psicológico baseado na recompensa. Essa recompensa é composta de dois elementos: ela deriva de quaisquer efeitos cerebrais, alguns dos quais o usuário pode experimentar subjetivamente, e das complicadas sequências de variáveis psicossociais que formam as necessidades satisfeitas pelas experiências da droga e pelo comportamento que a procura. Quando a dependência física é uma parte da administração crônica de drogas, o temor dos efeitos adversos resultantes da abstinência serve como poderoso reforçador secundário do uso da droga”. Nos Estados Unidos, a legislação federal e a de muitos Estados definiam como dependente de drogas “a pessoa que usa uma substância controlada e que está em estado de dependência física ou psíquica,  ou ambas, decorrente do uso de tal substância de forma contínua.  A dependência de drogas se caracteriza por respostas de comportamento e outras que incluem forte compulsão a tomar a substância em base contínua,de modo a experimentar seus efeitos psíquicos e para evitar o desconforto causado por sua ausência.”.

De há muito várias  convenções internacionais sobre a matéria foram editadas. A primeira de tais convenções é a de Haia, de 1912(ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 11.481, de 1915), tendo-se seguido outras, em Genebra, em 1925 e 1931(ratificadas pelos Decretos nº 22.950, de 1933 e 113, de 1934). Destaca-se ainda outra convenção realizada em Genebra, em 1936, sob o patrocínio da Sociedade das Nações, tendo como objeto um acordo internacional para a repressão penal, por parte de vários Estados. Essa convenção foi ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 2.994, de 1938. Em 1946, elaborou-se, na ONU, em Lake Success, um protocolo modificando acordos e convenções anteriores, havendo, naquela organização, comissão especial sobre o assunto(United Nations Comission  of Narcotic Drugs).

Em 1961, elaborou-se em Nova York uma Convenção Única, tratado internacional que anulou os anteriores, inclusive o protocolo de Lake Success. A Convenção Única foi ratificada pelo Brasil, tendo sido promulgada pelo Decreto nº 54.216, 27 de agosto de 1964. A Convenção classifica as drogas perigosas em quatro listas, anexas ao texto. Esta classificação é feita para regular as medidas de fiscalização. Na lista IV estão as drogas que exigem medidas especiais de fiscalização, que, a nível internacional, foi atribuída à ONU(artigo 5º) e se exerce através da Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social e do Órgão Internacional de Fiscalização de Entorpecentes, criado pela Convenção, que estabeleceu mecanismos de cooperação internacional e medidas repressivas de natureza penal a serem adotadas. Para as pessoas envolvidas com abuso de drogas estabeleceu-se  a obrigação de tratamento para reabilitação e reintegração social. 

Em 1971, foi celebrada, em Viena, Convenção sobre substâncias psicotrópicas, em vigor desde 16 de agosto de 1976.

Em 1972, foi aprovado protocolo que modificou a Convenção Única de 1961, introduzindo alterações  no Órgão Internacional de Controle de Drogas, referindo-se também às informações a serem prestadas pelos Estados, no sistema de Controle Internacional, bem como ao tratamento de viciados. Tal protocolo foi promulgado pelo Decreto nº 76.248, 12 de setembro de 1975.

O Código Penal de 1890, no artigo 159, punia com pena de multa, “expor à venda ou ministrar substâncias venenosas, sem legítima autorização e sem formalidades prescritas nos regulamentos sanitários”. O Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921, cominava pena de prisão celular de um a quatro anos, “se a substância venenosa tiver qualidade entorpecente, como ópio e seus derivados, cocaína e seus derivados”. Na matéria ainda foi editado o Decreto nº 14.969, de 3 de setembro de 1921, punindo os droguistas, farmacêuticos ou comerciantes, referindo-se ainda a ação de ministrar mesmo praticada por qualquer pessoa. Foram ainda promulgados os Decretos nº 20.930, de 11 de janeiro de 1932; 24.505, de 29 de junho de 1934, o Decreto-Lei nº 891, de 25 de novembro de 1938, que constituiu fonte imediata da legislação brasileira na matéria. , estando revogado. A parte criminal do Decreto-lei nº 891, passou ao Código Penal de 1940(artigo 281), que veio a sofrer diversas e sucessivas alterações.

A Lei nº 4.451, de 4 de novembro de 1964, introduziu na enumeração prevista no Código Penal a ação de plantar. As normas gerais para cultivo de plantas entorpecentes e sua utilização foram fixadas pelo Decreto-lei nº 4.720, de 21 de setembro de 1942.

O artigo 281 do Código Penal foi novamente alterado pelo Decreto-lei nº 385, de 26 de dezembro de 1968,  e,  ainda,  pela Lei nº 5.726, de 29 de outubro de 1971, de cunho repressivo, introduzindo rito especial para esses crimes.

Posteriormente, em 1976, foi promulgada a Lei nº  6.368/1976, que passou a dar maior amplitude ao tema, mas cujo procedimento instituído foi considerado defasado.

Em 2002, foi editada a Lei 10.409/2002, com a intenção de revogar a Lei nº 6.368/1976, mas o título de crimes foi vetado pela Presidência da República.

Veio a Lei 11.343/2006 que revogou as normas anteriores, mas obedecendo ao princípio da irretroatividade da lei mais severa. Seu objetivo é prevenir o uso indevido de drogas e reprimir a produção não autorizada e o tráfico ilícito. Vale salientar que a citada norma jurídica foi publicada em 23 de agosto de 2006 e teve um período de vacatio legis de 45 dias, entrando em vigor em 8 de outubro do mesmo ano.

De toda sorte, as drogas psicoativas são hoje numerosas. Podem ser assim classificadas:

a) Ópio e seus derivados, naturais ou sintéticos(heroína, morfina, codeína, dionina etc);

b) Cocaína e seus derivados;

c) Maconha(cannabis sativa);

d) Anfetaminas(pervitin, benzedrina etc);

e) Barbitúricos(derivados de ácido barbitúrico);

f) Tranqüilizantes(drogas com efeito sedativo);

g) Alucinógenos(LSD, mescalina, psilocibina etc).

Ópio é um suco espesso que se extrai de frutos imaturos(cápsulas) de várias espécies de papoulas soníferas, que é utilizada como narcótico. Os opiáceos são perigosos analgésicos, utilizados para eliminar ansiedade e tensão. O mais importante é a heroína, descoberta em 1898, e que se revela de quatro a oito vezes mais poderosa que a morfina. Os opiáceos provocam dependência física e tolerância. Os especialistas disseram que a dependência física causada pelos opiáceos faz com que o problema seja extremamente mais grave, não faltando quem queira limitar a esses casos exclusivamente o conceito de toxicomania. Diante dos opiáceos, a cocaína e, sobretudo, a maconha, passam a um plano inteiramente secundário, como lecionava Heleno Cláudio Fragoso(obra citada, pág. 244).

Cocaína benzoilmetilecgonina ou éster do ácido benzóico é um alcalóide usado como droga, derivado do arbusto erythroxylum coca, com efeitos anestésicos e cujo uso continuado pode causar efeitos indesejados como dependência, hipertensão arterial e distúrbios psíquicos.

A cannabis refere-se a várias drogas psicoativas e medicamentos derivados de plantas do gênero cannabis. Como tal causa alguns efeitos psicoativos e fisiológicos quando é consumida. Entre esses efeitos estão o relaxamento e a leve utopia enquanto que  alguns efeitos colaterais indesejáveis são a diminuição passageira da memória de curto prazo, boca seca, habilidades motoras levemente debilitadas e vermelhidão dos olhos. Tecnicamente a maconha é um alucinógeno, não produzindo dependência física. Os usuários crônicos tornam-se psiquicamente dependentes. Os usuários de qualquer droga psicoativa têm sempre maior probabilidade de usar outras drogas. A maconha é prejudicial à saúde. Já houve entendimento de que dificilmente a maconha provoca tolerância e que as pessoas que a usam tendem a um comportamento passivo. 

Anfetaminas são substâncias simpatomiméticas que têm a estrutura química básica da beta-fenetilamina. Sob esta designação, existem três categorias de drogas sintéticas que diferem entre si do ponto de vista químico. As anfetaminas, propriamente ditas, são a dextroanfetamina e a metanfetamina. A anfetamina é uma droga estimulante do sistema nervoso central, que provoca o aumento das capacidades físicas e psíquicas. As anfetaminas são drogas sintéticas  com ação estimulante sobre o sistema nervoso central. As afetaminas afastam o sono e aumentam a atenção e o vigor, sendo utilizadas comumente por atletas. Viciam de forma mais branda que os barbitúricos e os opiáceos. Doses elevadas produzem, contudo, perda de consciência, colapso e morte.

O barbitúrico é a substância chamada de "malonilureia ou hidropirimidina". Esta substância resulta da união do ácido malônico com a ureia de onde se podem derivar substâncias com uso terapêutico. É um grupo de substâncias depressoras do sistema nervoso  central. São usados como antiepilépticos, sedativos e hipnóticos. Os barbitúricos têm uma pequena margem de segurança entre a dosagem terapêutica e tóxica. São compostos que, em doses adequadas, podem produzir sono ou ação sedativa. Viciam com dependência física, e a superdosagem pode causar a morte, pela ausência de oxigênio e outras complicações provocadas pelo longo período de depressão. Os barbitúricos, mais do que qualquer outra droga, apresentam grande perigo de superdosagem, agravado quando há uso concomitante de álcool. O álcool potencializa o efeito da droga, e vice-versa.

Os tranqüilizantes são medicamentos que têm a propriedade de atuar sobre a ansiedade e a tensão. São ainda utilizados no tratamento da insônia e nesse caso recebem o nome de drogas hipnóticas. Os tranqüilizantes são drogas com efeito sedativo, empregadas para eliminar a ansiedade e as tensões emocionais. Utilizados no tratamento de doenças mentais, os tranquilizantes são largamente vendidos em todo o mundo. São compostos químicos de diferentes categorias: a) alcalólides, destacando-se a reserpina; b) fenotiazinas, das quais a mais conhecida é a clorpromazina; c) difenilmetanas, inclusive a benctizina; d) propanediols, especialmente  o meprobamato.  Essas drogas ora atuam sobre o sistema nervoso central ora atuam sobre o sistema nervoso visceral.

Alucinógeno denomina-se um conjunto de substâncias naturais ou sintéticas capazes de atuar sobre o sistema nervoso. A utilização dessas drogas com fins recreativos oferecem sérios riscos. Distorcem os sentidos e confundem o cérebro e afetam a concentração, os pensamentos e a comunicação.

O que é dependência de droga? A Organização Mundial de Saúde, em 1965, definia nos seguintes termos: “Dependência de drogas e um estado de dependência física ou psíquica(ou ambas) em relação a uma droga, resultante da administração de tal droga em base contínua ou periódica. As características desse estado variarão conforme o agente de que se teste, e essas características devem ser sempre esclarecidas, designando-se o tipo particular de dependência de droga do tipo de morfina, do  tipo de barbitúrico, do tipo de anfetamina, etc”.

A natureza da droga que constitui objeto material da ação deve ser estabelecida através da pericia.

 A partir de 1964, estudos se desenvolveram partindo  de síntese do princípio ativo da Cannabis, realizada em 1964, por Raphael  Mechoulam. Esse princípio é o 9-Delta tretrahidro canabinol (THC), com o qual numerosas experiências têm sido realizadas. O THC é rapidamente desativado quando exposto ao oxigênio, à luz, à umidade e a temperaturas elevadas. Fala-se que a maior quantidade de THC encontra-se nas sumidades flóridas da planta. O caule e as sementes contêm pouco ou nenhum THC. A maconha geralmente consumida tem reduzido conteúdo de substância ativa, em regra menos de 1% de THC. O haxixe é a resina pura da planta feminina, e é de cinco a dez vez mais potente que a maconha.

Fala-se que tecnicamente a maconha é um alucinógeno. Não produz dependência física. Os usuários crônicos tornam-se psicologicamente dependentes. O conceito de dependência psicológica, que foi   adotado pela lei brasileira, tem sido muito questionado por vários estudiosos.

Os especialistas têm dito que não há necessidade de submeter a tratamento alguém pelo só fato de usar maconha, a menos que tais pessoas apresentem desvios de personalidade.

Pergunta-se: A cannaabis conduz ao uso de substâncias perigosas? Ela produz dano considerável à saúde, particularmente às funções cerebrais? A maconha está associada à criminalidade?

Pois o Relatório Schafer já afirmava que, se alguma droga está associada ao uso de outra, tal droga é o tabaco, seguida de perto pelo álcool. Nas pesquisas feitas pela Comissão, apenas 4% dos usuários da maconha teriam usado heroína. Entre os usuários de opiáceos, é grande o número dos que antes usaram maconha, mas nenhuma relação causal pôde ser estabelecida entre o uso de uma e outra espécie de droga, parecendo que o fato se relaciona com fatores de outra ordem.

Por sua vez um estudo elaborado por comissão especial do legislativo do Estado de Nova York concluiu que a maconha não conduz a comportamento agressivo, nem é causa de gradual passagem de heroína ou a outros tóxicos. Por sua vez, a comissão canadense concluiu que a relação de causalidade entre maconha e outras drogas é difícil de verificar.

Como toda droga a cannabis traz prejuízos à saúde. Mas já se disse que a maconha é menos prejudicial que o álcool. Acresça-se que nenhuma das pesquisas revelou efeitos da maconha trazendo lesões cerebrais ou outros efeitos graves. Aliás, em 1971, estudo elaborado pelo Instituto Nacional de Saúde Mental, nos Estados Unidos, afirmou que para a maior parte das pessoas a droga não parece perigosa.

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Com relação a criminalidade já se  observaram resultado das pesquisas concluindo  que as pessoas que a usam têm um comportamento passivo. A comissão Schafer concluiu que “o peso da prova é no sentido de que a maconha não causa comportamento agressivo ou violento, mas ela pode servir para inibir a expressão de tal comportamento”. Ainda a Conferência dos Diretores de Institutos de Pesquisa, promovida em 1974 pelo Conselho da Europa, concluiu que não há relação de causa e efeito direta entre drogas e crime, salvo no caso de certas drogas específicas como a anfetamina. Todavia, drogas e criminalidade frequentemente aparecem juntas, pois as mesmas causas psicológicas e sociais conduzem a uma ou outra de tais formas de comportamento desviante.

Há não menos de cinco mil anos a Humanidade conhece as aplicações terapêuticas da maconha(cannabis sativa) e seus derivados. Os chineses, aliás, já a empregavam na medicina há milênios.

Vasta literatura surgiu de modo que se pôde observar alguns efeitos da maconha:

a)      Alivia dores em geral especificamente as relacionadas a nervos, enxaquecas e menstruações;

b)      No tratamento da síndrome da emaciação  por infecção do HIV, reduziu sintomas como náusea, perda de apetite, cansaço extremo, ansiedade e dores;

c)      No tratamento do glaucoma, diminui a pressão intraocular causada pela doença;

d)      No tratamento da esclerose múltipla, alivia sintomas como espasmos musculares, dores e mau funcionamento de órgãos como intestino e bexiga;

e)      No tratamento da epilepsia, contém compostos canabinóides com propriedades anticonvulsivas;

f)       Com relação ao sistema imunológico, diminui a capacidade das cédulas T(de defesa) de lutar contra as infecções, prejudicando soropositivos como o organismo já comprometido. A inalação de THC diminui as defesas do pulmão, aumentando os riscos de infecções no órgão;

g)      O uso recreativo da maconha traz problemas para o aprendizado, a memória de curto prazo; as funções executivas, como a capacidade de se concentrar, prejudicando, principalmente, adolescentes, cujo cérebro está em construção;

h)      Um em cada nove fumantes de maconha se torna dependente;

i)        Há estudos que apontam o risco de câncer no pulmão causados pelo fumo;

j)        A maconha prejudica o desempenho psicomotor em várias tarefas, tais como a coordenação motora, a atenção no uso de máquinas complexas, com aumento de risco de acidentes de pessoas.

Acreditava-se que o sistema do corpo humano sensível aos compostos da maconha agia primordialmente no cérebro.

Recentemente cientistas brasileiros descobriram que o chamado sistema endocanabinoide atua sobre os rins, possibilitando estudos que levem a desenvolvimento de remédios contra a hipertensão e curar lesões renais, estas sem tratamento da diálise e do transplante de rins.

Um grupo de professores do Instituto de Biofísica da UFRJ trabalhou com versões sintéticas de endocanabinoides, substâncias produzidas pelo próprio corpo.

Noticia-se que um estudo iniciado com a tese de doutorado de Luzia Sampaio, hoje pós-doutoranda na UFRJ, levou a uma descoberta, resolvendo questão importante no sentido de que se era possível tratar lesões renais ao ativar o sistema endocanabinoide. Esse estudo está publicado na edição on line da revista “British Journal of Pharmacology”.

Mais um capítulo da história “maconha e medicina”, de forma a relatar que professores descobrem que sistema sensível aos compostos da “cannabis” atua também nos rins.
A medicação historiada no combate à hipertensão é uma notícia impactante.

Essa descoberta é formidável e aguça a discussão com relação à constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas e a questão da criminalização do uso da droga.


II – A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 28 DA LEI DE DROGAS

Necessário discutir o artigo 28 da Lei de drogas.

Anteriormente a Lei incriminava o usuário como aquele que adquiria drogas, guardava drogas e ou trazia consigo drogas para consumo pessoal. A Lei nº 11.343/2006 configura usuário como aquele que adquiri, guarda, traz consigo, tem em depósito e transporta drogas.
O artigo 28 caput da Lei promoveu um alargamento na incriminação do usuário de drogas. Quanto as condutas de ter em depósito e transportar o tipo penal apresenta a hipótese de novatio legis incriminadora, de forma que somente deverão ser punidos aqueles que praticarem tais condutas a partir de 8 de outubro de 2006.

Adquirir é comprar mediante pagamento. Guardar é armazenar para consumir em curto período de tempo, tomar conta de algo, proteger.

Na modalidade trazer consigo, entende-se o transporte pessoal do tóxico. É conservar a coisa junto à própria pessoa, oculta no corpo, nas vestes, ou de qualquer outro modo ligada ao sujeito. Ter em depósito é ter armazenado suprimento que traga uma ideia de mais perpetuidade, maior quantidade. Transportar é levar de um lugar para outro, em malas, veículos etc.

Insista-se no fato de que o artigo 28 da Lei 11.343/06 não afastou o crime de trazer consigo ou adquirir para uso pessoal(antes, uso próprio) da esfera do crime de drogas. Não se afastou a criminalidade no fato de adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização legal ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Está assim redigido o artigo 28:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

§ 1o  Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

§ 2o  Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

§ 3o  As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco) meses.

§ 4o  Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 10 (dez) meses.

§ 5o  A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.

§ 6o  Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:

I - admoestação verbal;

II - multa.

§ 7o  O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

No passado, frente à legislação anterior a Lei nº  6.368/1976, Nelson Hungria(Comentários ao código penal, volume IX, 139) entendia que o viciado não pratica o crime, sendo antes vítima dele.
Com o devido respeito, a posição de Luiz Flávio Gomes, primeiro doutrinador a discutir a questão, não se trata de discriminalização, mas de não utilização de penas privativas de liberdade, servindo-se o Estado-Acusação do mecanismo da transação penal: multa e penas restritivas de direito.

A sentença que homologa a transação penal tem eficácia declaratória-constitutiva(RT 753/449). Não há falar em condenação penal. Aplicam-se penas alternativas, com medidas restritivas(artigo 28, incisos I, II e III).

Não será caso de aplicação do princípio da insignificância, afastando-se o crime, para os casos de condutas envolvendo consumo pessoal, cultivo, semeadura e coleta de plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.

É o que ocorre nos chamados crimes de porte de drogas para uso pessoal, linha esta que deve ser mantida no novo Código Penal. Será hipótese de lavrar um termo circunstanciado, providenciando-se as requisições.

Registre-se que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento de Questão de ordem suscitada nos autos do RE 430.105 QO/RJ, rejeitou as teses de abolitio criminis e infração penal sui generis para o crime previsto no artigo 28 da Lei 11.343/06, afirmando a natureza de crime da conduta perpetrada pelo usuário de drogas, não obstante a despenalização. 

Não importa que o acusado não chegue a vender o tóxico, pois trazer consigo já é delito consumado, segundo uma das normas múltiplas contidas no artigo 33 da Lei de Drogas No HC 241.376/SC, Relator Ministro Jorge Mussi, DJe de 5 de setembro de 2012, o Superior Tribunal de Justiça assentou que ¨trazer consigo¨ ou fornecer ainda que gratuitamente substância entorpecente ilícita são núcleos do tipo do delito de tráfico de drogas, crimes de perigo abstrato, de ação múltipla, de conteúdo variado, que se consuma com a prática das hipóteses já referenciadas.

Embora o artigo 28 da Lei 11.323, que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, tenha alterado o tratamento penal para o porte de drogas ilícitas para consumo pessoal, substituindo a prisão de seis meses a dois anos pelas penas de advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa obrigatória, a nova legislação manteve o desvalor penal do comportamento, não retirando a natureza delitiva da conduta.

A matéria voltou a ordem do dia com o posicionamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro que considera inconstitucionais todas as prisões de usuários de drogas, matéria que poderá ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal em breve, no RE 635659, que tem como Relator o ministro Gilmar Ferreira Mendes.

Em 2013, o defensor público de são Paulo, Leandro de Castro Gomes, recorreu ao Supremo Tribunal Federal da decisão do Colégio Recursal do Juizado Especial de Diadema/SP que condenou réu, naquele processo, a dois meses de prestação de serviço à comunidade, por guardar 3(três) gramas de maconha num único invólucro para consumo próprio.

Para Pier Paolo Bottini, a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afronta não só a norma constitucional que protege a intimidade e a vida privada, mas, sobretudo, a que prevê as bases sobre as quais se sustenta todo o modelo político e jurídico nacional; a dignidade da pessoa humana e a pluralidade.

Disse o Professor Bottini:

“Ao criminalizar o porte de droga para uso pessoal, a lei parece afrontar a ideia de dignidade da pessoa humana e de pluralidade, ambas previstas na Constituição Federal (artigo 1º, III e V). A primeira pode ser definida como a capacidade de autodeterminação do ser humano para o desenvolvimento de um mundo de vida autônomo, onde seja possível a reciprocidade. Pluralidade significa a tolerância no mesmo corpo social de diferentes mundos de vida,estilos, ideologias e preferências morais, respeitadas as fronteiras do mundo de vida dos outros.

Os princípios da dignidade e da pluralidade limitam o uso do direito penal como instrumento de controle social ou de promoção de valores funcionais. Em sendo esta a faceta mais grave e violenta da manifestação estatal, sua incidência se restringe à punição de comportamentos que violem esta liberdade de autodeterminação do indivíduo, que maculem este espaço de criação do mundo de vida..

Nesse sentido, a definição do espaço de legitimidade do direito penal exige do intérprete da Constituição o reconhecimento de que comportamentos praticados dentro do espaço de autodeterminação do indivíduo, sem repercussão para terceiros — ou seja, que não afetem a dignidade de outros membros do corpo social — não têm relevância penal.

Com base nessa assertiva, são estranhos ao direito penal comportamentos religiosos, sexuais, ideológicos, ínsitos à liberdade individual, que possam ser praticados com reciprocidade, ou seja, cujo exercício mútuo seja possível por todos os demais membros da sociedade. Em suma, que não afetem a autodeterminação de outros componentes do corpo social. Não por acaso, a criminalização do homossexualismo, da opção religiosa, do incesto, são rechaçadas pelo direito penal brasileiro, e duramente criticadas — quando presentes — nas legislações estrangeiras.

Como ensina ROXIN, “la protección de normas morales, religiosas o ideológicas, cuya vulneración no tenga repercusiones sociales, no pertenece em absoluto a los cometidos del Estado democrático de Derecho, que por el contrario también debe proteger las concepciones discrepantes de las minorias y su puesta em práctica”.

Válida aqui a lição de PAWLIK, professor da Universidade de Regensburg (Alemanha), para quem a função do direito penal é “respetar y garantizar el deseo de que cada uno pueda conducir su vida de acuerdo con su próprio entendimento”, sempre observando evidentemente uma condição de reciprocidade dos espaços de autodeterminação entre os membros da sociedade, em condições de igualdade..

Como ensina ROXIN: “Impedir que as pessoas se despojem da própria dignidade não é problema do direito penal. Mesmo que se quisesse, por ex. considerar o suicídio um desprezo à própria dignidade – o que eu não julgo correto – este argumento não poderia ser trazido para fundamentar a punibilidade do suicídio tentado”

Diante do exposto, que pode ser sintetizado na assertiva de que a Constituição Federal — ao consagrar a dignidade humana e a pluralidade como vértices do sistema jurídico — limita materialmente a produção da lei penal àqueles comportamentos que afetem — ou tenham potencial de afetar — bens jurídicos relevantes para a autodeterminação do indivíduo, e rechaça a criminalização da autolesão ou da autocolocação em perigo, voltemos à questão central: a inconstitucionalidade da criminalização do porte de entorpecentes para consumo próprio.

O uso do direito penal para inibir o uso de drogas somente seria legítimo — do ponto de vista do sistema constitucional pátrio — se justificado pela necessidade de proteger algum bem jurídico imprescindível à garantia da dignidade humana.

Nessa seara, a defesa da constitucionalidade da norma em discussão costuma buscar sua legitimidade em três pilares: (i) a incriminação do consumidor visa proteger a saúde do usuário; (ii) é estratégica para a inibição do tráfico de drogas, garantindo a saúde pública e (contribui para a segurança pública, uma vez que o usuário contumaz é propenso à prática de crimes patrimoniais (ou outros) para financiar o consumo de drogas. Em suma, indica-se que a criminalização do consumo de drogas protege a (i) saúde individual, a (ii) saúde publica e (iii) o patrimônio, integridade física e vida de terceiros.

Tratemos do primeiro e deixemos os subsequentes para outro artigo.

ii) Proteção da saúde individual

No que concerne à saúde individual, não há duvidas de que impedir o acesso do usuário à droga é relevante para a preservação de sua integridade física e psíquica, ou seja, para a preservação de seu espaço de dignidade.

No entanto, como já exposto, a proteção de um bem jurídico não pode passar pela criminalização de seu próprio titular. A incidência da sanção penal sobre alguém retira uma parcela de sua autodeterminação, em operação apenas autorizada para assegurar um patamar de dignidade de terceiros, afetado pelo crime. Não parece fazer qualquer sentido a subtração da liberdade de alguém com o objetivo de proteger esta mesma liberdade sob outro prisma.

Por isso, o uso do direito penal contra o usuário de drogas com a justificativa de protegê-lo carece de legitimidade. Não é outro o entendimento de inúmeros juristas que se dedicaram ao estudo do tema, como HASSEMER, RIPOLLES, REALE JR. NILO BATISTA, LUIS GRECO,  SALO DE CARVALHO, ABRAMOVAY, SILVEIRA, BOITEUX, KARAM, TORON, CAVALIERE, dentre muitos outros. No mesmo sentido, decisões judiciais pátrias e de outros países apontam a incompatibilidade entre o tipo penal em discussão e a dignidade humana.

Vale destacar, dentre os últimos, a Colômbia, onde a Corte Constitucional afastou a constitucionalidade da criminalização do uso de drogas, com o seguinte fundamento: “Si a la persona se le reconece esa autonomia (esfera de liberdade individual) no puede limitárse sino en la medida en que entra en conflito com la autonomia ajena. El considerar a la persona como autónoma tiene sus consecuencias inevitables e inexorables, y la primera y más importante de todas consiste em que los assuntos que sólo a la persona atañen, sólo por ella deben ser decididos. Decidir por ella es arrebatarle brutalmente su condición ética, reducirla a la condición de objeto, cosificarla, convertirla em médio para los fines que por fuera de ella se eligen. Cuando el Estado resuelve reconocer la autonomía de la persona, lo que ha decidido, no más ni menos, es constatar el ámbito que le corresponde como sujeto ético: dejarla que decida sobre lo más radicalmente humano, sobre lo bueno y lo malo, sobre el sentido de su existencia”

O paternalismo penal, caracterizado pela criminalização de comportamentos inerentes ao espaço de autonomia do indivíduo é incompatível com um sistema pautado pela dignidade humana, elemento que — como dito — norteia a aplicação do direito penal e fundamenta os princípios da intervenção mínima, da subsidiariedade e da fragmentariedade, que indicam seu uso apenas em situações intoleráveis de agressão a bens jurídicos que não possam ser inibidos por meios menos gravosos

A supracitada Corte Constitucional colombiana, em interessante passagem, aproxima o Estado paternalista do Estado totalitário, apontando que o primeiro, ao tentar proteger o cidadão de si mesmo pela via do direito penal, chega ao mesmo resultado do segundo, qual seja: “la negación de la liberdad individual, en aquel âmbito que no interfiera con esfera de la liberdad ajena”

Mas não é só.

A proteção à dignidade humana e ao pluralismo irradia-se pela Constituição e se manifesta em outros preceitos, como no artigo 5º, X, que protege a intimidade e a vida privada do indivíduo, também afetado pelo dispositivo legal em discussão.

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JR. diferencia intimidade da vida privada, indicando o primeiro como “o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social” e o segundo como “formas exclusivas de convivência (...) em que a comunicação é inevitável”. Parece-nos que o consumo de drogas, enquanto comportamento exclusivo do indivíduo, sem afetação de terceiros, encontra-se no campo da intimidade, daquilo que é exclusivo, que “passa pelas opções pessoais, afetadas pela subjetividade do indivíduo e que não é guiada nem por normas nem por padrões objetivos”. Por isso, esse espaço é indevassável. Assegurar esse campo de intimidade é, nas palavras de HANNAH ARENDT, garantir “ao indivíduo a sua identidade diante dos riscos proporcionados pela niveladora pressão social e pela incontrastável impositividade do poder político”. JAKOBS reconhece que “sem um âmbito de privacidade não existe o cidadão”

Esse círculo dentro do qual o cidadão exerce sua liberdade de pensamento e de ação não pode sofrer qualquer ingerência do Poder Público ou de terceiros. Sendo o “conjunto de modo de ser e viver, o direito de o indivíduo viver sua própria vida” a intimidade não é outra coisa que não a concretização de uma parcela da dignidade, como ensina GILMAR MENDES:

“(...) a proteção do indivíduo contra interferências que se estimem indevidas por parte do estado podem ser atalhadas com a invocação do princípio da proporcionalidade, do princípio da liberdade em geral (que não tolera restrições à autonomia da vontade que não sejam necessárias para alguma finalidade de raiz constitucional) e mesmo pelo apelo ao princípio da proteção da dignidade da pessoa humana, que pressupõe o reconhecimento de uma margem de autonomia do indivíduo tão larga quanto possível no quadro dos diversos valores constitucionais”

O consumo de drogas encontra-se nesse círculo íntimo do indivíduo, protegido contra a ingerência do Estado, ao menos no que se refere à repressão criminal.

Há quem diga que a intimidade não é absolutaA necessidade de resguardar terceiros de riscos ou lesões decorrentes de crimes permite – em casos previstos expressamente na Constituição – o afastamento temporário e limitado do direito. Trata-se de um conflito de princípios que admite a limitação recíproca e aponderação .

É bem verdade que em situações limite é possível relativizar uma parcela do espaço privado do indivíduo. Mas não é esse o caso do consumo de drogas,porque o ato se limita à esfera individual, ao já indicado âmbito de autonomia do usuário.  Pode-se considerar a intimidade pelo aspecto positivo, como um comportamento cuja prática não exclui que outros indivíduos também o pratiquem[ ou pelo aspecto negativo, como ato de exercício de liberdade individual incapaz de afetar bens jurídicos alheiosUse-se a primeira ou a segunda definição e o resultado, para os fins almejados na presente discussão, será o mesmo: oconsumo individual de drogas integra-se no círculo de privacidade do indivíduo, intangível pelo ius puniendi – a não ser que se entenda que o comportamentoincentiva o tráfico ou outros crimes, argumento enfrentado a seguir.

Merece transcrição trecho do voto do e. Ministro ENRIQUE SANTIAGO PETRACCHI, da Corte Constitucional argentina, por ocasião da prolação da sentença noRecurso de Hecho A. 891. XLIV (25.08.09) (doc.1), que declarou inconstitucional a criminalização do porte de drogas para consumo pessoal com base – dentre outros argumentos – no princípio da intimidade (artigo19 da Constituição argentina):

“En este cometido, corresponde reiterar que el artículo 19 de la Constitución Nacional ha ordenado la convivencia humana sobre la base de atribuir al individuo una esfera de señorío sujeta a su voluntad y esta facultad de obrar  válidamente libre de impedimentos, conlleva la de reaccionar u oponerse a todo propósito de enervar los límites de aquella. En este contexto vital, puede afirmarse que en una sociedad horizontal de hombres verticales, en la que la dignidad es un valor entendido para todo individuo por su sola condición de tal, está vedada toda medida que menoscabe aquella prerrogativa (artículo 19 de la Constitución Nacional) (doc.1).

Pode-se atacar o raciocínio exposto apontando que é legítimo ao Estado também afastar a intimidade quando o bem jurídico do próprio titular deste direito está exposto a risco de lesão. Seria o caso da invasão de domicílio para salvar a vida de alguém que tenta o suicídio, autorizado pelo artigo 5º, XI, da Constituição Federal.

No entanto, retornamos ao raciocínio anterior. A violação da intimidade representa uma afetação da dignidade, possível de ser usada diante de casos extremos de autolesões à vida ou à integridade física em determinados níveis. Assim, é possível a intervenção na intimidade diante do uso de drogas em situações de risco de morte ou de lesão corporal grave. E, evidentemente, que tal atuação do Estado pode se dar pela violação do domicílio (por ex. para salvar alguém em overdose) ou por outras condutas similares, mas jamais através da imposição de sanção criminal àquele que se expôs ao risco pelo uso da droga.

Assim, fica afastada a legitimidade do uso do direito penal para inibir o consumo de drogas, pela perspectiva da saúde individual, pela violação ao artigo 1º, III e V e do artigo 5º, X. Isso não significa autorizar o entorpecente ou legalizar sua posse. É função do Poder Público desenvolver programas para proteger a saúde dos cidadãos, alertando-os para o risco do uso de drogas, criminalizando do tráfico de drogas (CF, art.5º, XLIII), promovendo atividades pedagógicas, oferecendo estruturas de tratamento— e mesmo adotando medidas de proteção diante dos efeitos colaterais do consumo de entorpecentes para a saúde, como a distribuição de seringas descartáveis para usuários de drogas injetáveis, com o escopo de reduzir contaminações por HIV.”

No texto que foi encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, onde a Viva Rio, no processo, figura como “amicus curiae”, se diz que o propósito do texto apresentado “não é discutir os efeitos prejudiciais das substâncias entorpecentes, nem minimizar as preocupações de amplos setores da sociedade civil e do governo com problemas inerentes ao tráfico e a consumo de drogas, mas identificar a inconstitucionalidade de uma politica de combate ao tráfico de drogas apoiada na criminalização de uma das vítimas de tais organizações, o usuário”.

Em Portugal, nessa linha de raciocínio, a partir de 2000, o consumo,  a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações caracterizadas como drogas deixam de ser crimes e passam a ser ilícito administrativo.

Nessa mesma linha, Áustria, França, México, Noruega e Alemanha dispõem que o porte só tem relevância penal quando destinado ao tráfico ilícito.

No Chile, o parlamento debate a descriminalização de consumo da maconha.

Na Colômbia e na Argentina foram as Cortes Constitucionais que decidiram pela inconstitucionalidade de criminalizar o consumo de drogas.

Nessa polêmica há estudos científicos que afirmam que a maconha é menos mortal nos efeitos entre sete drogas recreativas usadas nos seres humanos, de morte que ela é menos mortal, letal, que o álcool e o tabaco, como se lê em estudo publicado na revista Scientific Reports.

De acordo com o relatório intitulado “Drogas e Democracia: rumo a uma mudança de paradigma”, apresentado ontem pela comissão, as políticas repressivas de combate às drogas na América Latina fracassaram. “É preciso falar com todas as letras: a guerra às drogas é fracassada”, afirma o membro da comissão e diretor executivo da organização não governamental Viva Rio, Rubem César Fernandes.

Segundo Fernandes, na última década o Brasil deixou de ser um país apenas de trânsito para se transformar em um consumidor.

De acordo com ele, ainda, a produção e o preço das drogas não diminuíram ao mesmo tempo em que aumentou a variedade delas. “O mercado de consumo funciona à revelia da repressão. Os lucros são tão altos que os traficantes conseguem absorver qualquer tipo de perda com apreensão”, afirma.

O grupo formado por 17 personalidades e liderado por Fernando Henrique Cardoso e pelos ex-presidentes César Gaviria (Colômbia) e Ernesto Zedillo (México) sugere ainda que a saída está em enfocar o consumo de drogas como um tema de saúde pública e em trabalhar na redução do uso. De acordo com o estudo, isso ajudaria a diminuir a produção e a desmantelar redes de traficantes.

Neste caminho, a nova lei anti-drogas (11.343/2006), que abrandou a punição para os usuários de drogas no Brasil, é apontada por Fernandes como um avanço. Segundo ele, entretanto, é necessário mais. “É um bom começo, mas tem de avançar mais”, diz.

O problema será o combate ao tráfico, a venda, outras formas perniciosas à sociedade nesse entendimento.

Roberto Flores, conselheiro em dependência química e um dos idealizadores do Narcóticos Anônimos no Brasil, acredita que as drogas atrasam o desenvolvimento sócio-cultural dos indivíduos e da sociedade como um todo, mas que se trata de um problema de saúde pública.

— Quando a gente pega os dados do Ministério da Saúde, sobre o tratamento de pessoas que tiveram as suas vidas comprometidas e até eliminadas pelo consumo de álcool e de outras drogas, a gente fica estarrecido. Sem contar com as vidas que são cessadas em acidentes de trânsito, crimes passionais, em tragédias domésticas. Entre os jovens e adolescentes e até entre as crianças agora tem essa questão do crack, que anula as possibilidades dessas pessoas se tornarem adulto com condições de assumir responsabilidades. Sendo assim, em uma sociedade que estimula o consumo, onde você vê o álcool na televisão o tempo todo, na internet ‘compre isso’ e ‘compre aquilo’, todos passam a crer que as pessoas normais, até na formação do seu caráter, têm que consumir álcool ou qualquer outro tipo de substância. Esses jovens estão sendo criados em uma cultura na qual a droga é muito presente e isso vem para diminuir o seu potencial — explica.

Para Flores, o consumo e o tráfico de drogas, assim como a sua criminalização são empecilhos ao tratamento e, em hipótese alguma, a política de extermínio empregada pelo Estado nos bairros pobres do país, principalmente no Rio de Janeiro, pode fazer avançar o debate sobre dependência química.

— A principal deficiência é essa política de confronto em favelas, que provoca muita violência, muita morte, não reduz o tráfico, não reduz a demanda, não reduz nada. A polícia não vai atrás dos grandes produtores de droga. Isso só acontece no varejo. Assim como eu não vejo "os viciados", como afirmou o governador Sérgio Cabral, como os principais responsáveis pela demanda do tráfico de drogas — afirma.

Sendo assim a saúde e a educação deveriam ser as prioridades, já que a dependência química deve ser vista e tratada como doença.

Tratada a dependência química como uma questão de saúde pública, oferece o Estado um importante instrumento de combate ao tráfico de drogas, aumentando-se o investimento no combate e repressão do tráfico de drogas, na venda de drogas, que, sim, se comporta como grande problema a ser resolvido.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Os efeitos da maconha e a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4422, 10 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41143. Acesso em: 18 abr. 2024.

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