Sumário: I- Introdução. II- Posicionamento do STF sobre o tema. III- Natureza da liminar. IV- Medida cautela em ADC. V- Alcance da liminar em ADC. VI- Conseqüências do efeito vinculante e eficácia erga omnes da liminar. VII- Conclusões.
I.INTRODUÇÃO
O cabimento, eficácia e conseqüências práticas da concessão de medida liminar em Ação Declaratória de Constitucionalidade são temas merecedores de breves linhas, que se propõem a levantar a discussão. A doutrina constitucional brasileira não é uníssona em admitir a concessão de liminar em ADC, tampouco conferir-lhe efeitos vinculantes e erga omnes, como vem entendendo a Corte Suprema, haja vista a inexistência de previsão expressa na Carta Maior nesse sentido. Ademais, os efeitos vinculantes em um provimento jurisdicional provisório podem trazer inúmeras conseqüências de ordem prática na órbita do controle difuso de constitucionalidade, mormente se a liminar for posteriormente revogada pelo STF, com o julgamento de mérito da ação.
II- POSICIONAMENTO DO STF SOBRE O TEMA
A controvérsia sobre a quaestio juris nasce no próprio Supremo Tribunal Federal, a partir da decisão tomada por maioria na ADC nº 04-6, cujo entendimento consolidado é questionada por boa parte da doutrina, e pelos Ministros Marco Aurélio de Mello e Ilmar Galvão, que votaram vencidos.
Convém transcrever o entendimento da Suprema Corte que se manifestou favorável à possibilidade de medida cautelar em ADC, conferindo-lhe efeitos vinculantes e erga omnes, a saber:
O Tribunal, por votação majoritária, deferiu, em parte, o pedido de medida cautelar, para suspender, com eficácia ex nunc e com efeito vinculante, até o final julgamento da ação, a prolação de qualquer decisão sobre pedido de tutela antecipada, contra a Fazenda Pública, que tenha por pressuposto a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do art. 1º da Lei nº 9.494, de 10-09-97, suspendendo, ainda, com a mesma eficácia, os efeitos futuros dessas decisões antecipatórias de tutela proferida contra a Fazenda pública, vencidos, em parte, o Ministro Néri da Silveira, que deferia a medida cautelar em menor extensão, e, integralmente, os Ministros Ilmar Galvão e Marco Aurélio, que a indeferiam.
(STF – Pleno – Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 04-6 – medida liminar – Rel. Min. Sydney Sanches, Diário da Justiça, seção I, 13 de fev. 1998)
A problemática surge pela previsão constitucional de medida cautelar apenas para a ação direta de inconstitucionalidade, conforme dispõe o art. 102, I, "p" da CF. Entretanto, conforme visto, é assente no STF a possibilidade de medida cautelar também na ação declaratória de constitucionalidade, hipótese atualmente disciplinada pela lei 9.868/99. Questiona-se, todavia, se tal entendimento é fruto de uma exegese afinada com o sistema de controle de normas do ordenamento jurídico brasileiro.
Ademais, com a Emenda Constitucional nº 03/1993, que introduziu a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC - na ordem jurídica brasileira, passa a existir a previsão de eficácia erga omnes e efeitos vinculantes, em relação aos demais órgãos do Judiciário e Executivo, para a decisão definitiva de mérito proferida pelo STF em ADC – art. 102, § 3º da CF. Malgrado expressa disposição de que tais efeitos só surgem com o trânsito em julgado da sentença, o STF firmou posição no sentido de concedê-los também em medida cautelar, entendimento este merecedor de críticas doutrinárias, e das vozes dissidentes dos Ministros Marco Aurélio de Mello e Ilmar Galvão.
Registre-se, por oportuno, o entendimento dos Ministros Marco Aurélio de Mello, que interpreta restritivamente as disposições constitucionais, no sentido de não admitir o conhecimento do pedido cautelar em sede de ADC, bem como de não ter a liminar, efeito vinculante, conforme segue:
No citado parágrafo tem-se o efeito vinculante relativamente às decisões definitivas de mérito e com ela são inconfundíveis as liminares, sempre precárias e efêmeras, sempre submetidas à condição resolutiva, ou seja, à possibilidade de, no julgamento de fundo, vir-se a concluir de forma diametralmente oposta.
(STF – Pleno – Reclamação nº 1.197-6/PB – medida liminar – diário da justiça, Seção I, 22 novembro 1999, p.02)
Contrapondo-se à tese supracitada, que restou vencida, o Ministro Sidney Sanches, em seu voto de relator, sustentou que a função cautelar, considerada como a adoção de providências indispensáveis ao resultado útil do processo, é inerente à atividade jurisdicional, lembrando, ainda, que, no passado, quando a Constituição era silente sobre a concessão de liminar na ação direta, o STF a considerou cabível.
III – QUESTÃO PRELIMINAR: MEDIDA CAUTELAR OU ANTECIPATÓRIA DE TUTELA?
A título de esclarecimento cabem algumas considerações sobre a natureza jurídica da liminar concedida em sede de controle de constitucionalidade de normas, na forma concentrada.
Malgrado a Constituição Federal em seu art. 102, I, "p", referir-se a medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade, da mesma forma o fazendo a Lei 9.868/99, a natureza jurídica da liminar concedida em controle concentrado é de antecipação da tutela. Isto porque, segundo a jurisprudência do STF, o provimento liminar em ADIN é o de suspender, até julgamento da ação, a eficácia da norma atacada, renascendo a disposição legal anteriormente existente. Tratando-se de liminar em ADC, cujo cabimento é admitido pelo STF, a medida tem o escopo de confirmar a eficácia da norma, até decisão final da Corte.
Percebe-se, destarte, a relação de congruência entre o provimento provisório e a tutela final almejada, restando inconteste a sua natureza de antecipação de tutela, inclusive com fulcro na jurisprudência do STF que dispõe nesse sentido.
Feita tal observação de natureza dogmática, no desenvolvimento do tema utilizar-se-á da expressão empregada pelo constituinte originário e pelo legislador (Lei 9.868/99), qual seja, "medida cautelar", com a restrição já exposta.
IV – MEDIDA CAUTELAR EM ADC
Deve-se registrar, de logo, que o Brasil adota o sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade, haja vista que cabe ao Poder Judiciário a função de guarda da Constituição, que deve agir expurgando do ordenamento normas maculadas pela eiva da inconstitucionalidade. O referido sistema é alvo de acirradas críticas, entretanto pode-se dizer que o Judiciário é o poder que oferece menos perigo aos direitos fundamentais.
Neste cenário, a tutela jurisdicional a cargo do Estado, como garantia social, há de ser não apenas formalmente assegurada, mas, sobretudo, plena e efetiva, consubstanciada nos princípios do devido processo legal e da inafastabilidade da jurisdição, sendo que para tal mister o sistema jurídico vale-se de certas medidas, a exemplo do poder geral de cautela do juiz. Assim apresenta-se a jurisdição comum, e com maior razão a jurisdição constitucional, haja vista a função precípua da Corte, qual seja, resguardar a ordem constitucional.
Vale salientar que o fundamento legal do poder geral de cautela nasce, conforme ensinamentos do ilustre jurista Teori Albino Zavascky, "não propriamente do art. 5º, XXXV da Constituição, como tutela preventiva, mas do sistema constitucional organicamente considerado: configurados, como se configuram na realidade prática, fenômenos de colisão entre segurança jurídica e efetividade da jurisdição, torna-se-á inafastável a necessidade de formular solução harmonizadora, tarefa que, na omissão da lei, deve, por imposição do sistema constitucional, ser assumida necessariamente pelo juiz" (in ZAVASCKY, Teori Albino. Antecipação da Tutela. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.p. 58).
Levando-se em consideração que a ADC consiste em um processo objetivo, que visa resguardar a ordem jurídica constitucional, transformando a presunção relativa de constitucionalidade das normas em presunção absoluta, resta inequívoca a necessidade de que seja assegurada a possibilidade de medida cautelar no seu processamento. Isto porque a existência de controvérsias jurisprudenciais em controle difuso da norma acabaria por comprometer a ordem jurídica constitucional, haja vista a possibilidade de grande insegurança jurídica para os jurisdionados.
Pelo mesmo fundamento, uma vez que o poder geral de cautela encontra guarida no sistema constitucional organicamente considerado (segundo ensinamentos de Teori Albino Zavasky), há de ser registrado que não poderá o legislador ordinário suprimir tal garantia constitucional, sendo questionável qualquer tentativa de restrições não razoáveis e injustificáveis.
V – ALCANCE DA LIMINAR EM ADC
Como já exposto, a questão controvertida versa também sobre o alcance da liminar em ADC, uma vez que o art. 102, § 3º da CF prevê a existência de efeitos vinculantes e eficácia erga omnes apenas em decisões definitivas de mérito.
Para parte da doutrina, que pode ser ilustrada pelos ensinamentos de Alexandre de Moraes (em sua obra Direito Constitucional, 9ª edição, ed. Atlas), apenas as decisões definitivas de mérito terão os referidos efeitos, com regulamentação expressa da Magna Carta nesse sentido, configurando a jurisprudência do STF em posicionamento contra legem. Esta posição também é adotada pelos Ministros Marco Aurélio de Mello e Ilmar Galvão, conforme já explanado.
Entretanto, deve-se considerar que a restrição do alcance da liminar não se justifica, eis que os efeitos vinculantes e a eficácia erga omnes são deferidos pelo STF em ADIN, e tendo em vista a natureza dúplice dessas ações, no dizer do Ministro Sepúlveda Pertence seria "kafkiniano" restringir as virtualidades da liminar a uma e não a outra.
Como bem salientado pelo jurista Gilmar Ferreira Mendes, as ações de controle de constitucionalidade tem a mesma função, apenas devem ser olhadas sob ângulos distintos, apresentando-se como coisas semelhantes, apenas com o "sinal trocado". Como conceber então a existência de efeitos vinculantes na liminar concedida em sede de ADIN e não o fazê-lo em ADC?
A interpretação sistemática não poderia levar a conclusão diversa, eis que a eficácia erga omnes e os efeitos vinculantes da liminar derivam do próprio sistema de controle de constitucionalidade. A efetividade da medida cautelar depende exatamente da imposição obrigatória do cumprimento da decisão, sobretudo para os órgãos jurisdicionais e autoridades administrativas encarregadas de aplicar a lei. Se assim não fosse, poderia se dizer que a medida liminar não teria como alcançar o seu desiderato, tornando-se inútil na prática, sem qualquer repercussão no sistema de controle concentrado de normas. Isto porque o controle difuso continuaria a trazer entendimentos discordantes acerca da norma impugnada, o que é prejudicial à segurança das relações jurídicas.
VI- CONSEQUÊNCIAS DO EFEITO VINCULANTE E EFICÁCIA ERGA OMNES DA LIMINAR
Pois bem. Consolidado o entendimento do STF no sentido de conferir efeitos vinculantes e erga omnes em liminar concedida em sede de controle concentrado de constitucionalidade, resta analisar o ponto fulcral da questão: quais as conseqüências práticas que poderão advir de tal sistema, haja vista que as decisões proferidas em sede de controle difuso estarão adstritas a um provimento judicial provisório? Como ajustar as situações jurídicas nascidas na vigência e por influência da liminar posteriormente revogada?
Como já demonstrado, incidentalmente o julgador estará obrigado a dar cumprimento ao quanto decidido em liminar pelo STF, em controle concentrado, na hipótese da constitucionalidade de uma norma estar sendo impugnada na forma difusa. Em tal situação, caso entenda inconveniente prosseguir no julgamento da causa, poderá o juiz suspender o seu regular processamento até decisão definitiva do STF, com base no 265, IV, a do CPC, uma vez que existe a possibilidade de revogação da liminar quando da sentença definitiva em controle concentrado.
Assim, acatando o juiz incidentalmente o entendimento esposado pelo STF liminarmente em controle concentrado, algumas situações poderão advir da natureza precária da decisão, quais sejam:
a)o SFT consolidar a sua posição liminarmente adotada, com a procedência da ação em controle concentrado, confirmando as relações jurídicas nascidas sobre a égide da liminar;
b)revogação da liminar, o que acarretará a necessidade de ajustamento das situações jurídicas resultantes do seu cumprimento.
A primeira situação não traz maiores questões a serem discutidas, tendo em vista que confirmando o STF seu juízo provisório, as relações estabelecidas por força do efeito vinculante da liminar continuarão por ela regidas.
Maiores problemas advirão na ocorrência da segunda hipótese apresentada, uma vez que a força imperativa do provimento liminar não pode, em caso da sua revogação, resultar em prejuízo a quem a ela foi compulsoriamente submetido. Pela possibilidade de ocorrência desta situação, o sistema jurídico de controle de constitucionalidade de normas deve fornecer remédios eficazes.
Caso a revogação da liminar tenha sido originada por extinção do processo sem julgamento de mérito, tal decisão não impedirá controle difuso sobre a norma. Em sentido contrário, havendo rejeição do pedido, com o conseqüente pronunciamento de mérito de STF sobre a constitucionalidade da norma, haverá efeito vinculante na decisão da Suprema Corte, que deverá prevalecer.
Segundo os ensinamentos do jurista Teori Albino Zavasky, em sua obra Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, Ed. RT, 2001, a decisão que revoga a liminar opera efeitos ex tunc. Na hipótese de revogação de liminar pelo STF em controle concentrado, com julgamento de mérito, a parte que foi submetida aos seus comandos em controle difuso deverá ingressar com ação rescisória do julgado, a fim de que se restaurem as relações jurídicas anteriormente impostas.
É possível, porém, que entre a data da concessão da liminar e a sua revogação já tenha sido ultrapassado o prazo de dois anos para o ajuizamento da rescisória. Nesse cenário, merece destaque a lição do mestre Teori Albino Zavasky, na sua obra citada, a saber:
Esta questão há de ser examinada e resolvida à luz do princípio, acima anotado, do não prejuízo a quem obedeceu à liminar, por força do qual devem ser assegurados ao jurisdicionado, integralmente, todas as faculdades e pretensões que poderia ter exercido não fosse o comando impeditivo da medida judicial. À luz de tal princípio, deve-se entender que o prazo para o ajuizamento da ação rescisória, terá como termo inicial a data do trânsito em julgado, não da sentença do caso concreto, mas do acórdão ou da decisão que, na ação de controle concentrado, revogou a liminar. (grifos não constam no original).
Como se observa, com respaldo na melhor doutrina, visando sanar a situação de prejuízo em virtude de comando imperativo provisório, posteriormente revogado, e objetivando o restabelecimento do status quo ante, o trânsito em julgado da sentença em sede de controle concentrado deverá ser tido como termo inicial para contagem do prazo para ajuizamento de ação rescisória, eventualmente cabível.
Portanto, não se deve computar no prazo decadencial da ação rescisória o período de vigência da liminar deferida, quer seja em sede de ADIN ou ADC, a fim de que não consolide-se um prejuízo imposto por um pronunciamento judicial provisório, efetuado em cognição sumária.
VI- CONCLUSÕES
Ante o esposado, retira-se da controvérsia jurídica as seguintes conclusões lógicas;
a)O entendimento consolidado na Corte Suprema, que considera cabível a concessão de medida cautelar em sede de ADC, encontra respaldo jurídico no sistema constitucional de controle de constitucionalidade, haja vista o poder geral de cautela do juiz e a natureza dúplice da ADC e da ADIN;
b)Não deve prevalecer a interpretação restrita da Constituição Federal, no sentido de só admitir medida cautelar em ADIN, haja vista previsão expressa apenas nessa espécie de ação, eis que tal posicionamento não conforma-se com a melhor exegese dogmática;
c)Os efeitos vinculantes e erga omnes em sede de liminar em ADC constituem conseqüência lógica da sua plena efetividade, levando-se em conta que o STF não é órgão de consulta, e suas decisões devem ser respeitadas, visando à garantia da ordem jurídica;
d)Não se deve classificar o entendimento do STF como contra legem, haja vista que o mesmo deriva de uma interpretação sistemática e coerente com a função da Corte Suprema de guardiã da Carta Maior;
e)Com fundamento no não prejuízo para o jurisdicionado atingido pelo âmbito de incidência da liminar imperativa em controle concentrado de normas, posteriormente revogada, caberá o ajuizamento de ação rescisória para a desconstituição do julgado a que está submetido;
f)O termo inicial para contagem do prazo de rescisória deve ser considerado o trânsito em julgado da sentença em sede de controle concentrado, em que há a revogação da liminar, com o julgamento de mérito da demanda.
Bibliografia
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2001;
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
ZAVASCKY, Teori Albino. Antecipação da Tutela. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999;
ZAVASCKY, Teori Albino. Eficácia das Sentenças na Jurisdição Constitucional, 1. ed. São Paulo: RT, 2001;