8. PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA E OS IMPOSTOS REAIS QUE ONERAM O CONSUMO – IMPOSTOS INDIRETOS – IPI E ICMS – PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE
Existe uma categoria de impostos dentro daqueles previstos na Constituição Federal, que são chamados pela melhor doutrina de impostos indiretos. Esta categoria de tributos comportam, por sua natureza, a transferência do respectivo encargo financeiro, conforme definição dada pelo próprio Código Tributário Nacional, no art. 166.
No Direito Tributário Brasileiro, os impostos que comportam esta transferência são, especificamente, o Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, de competência privativa da União Federal, nos termos do art. 153, inciso IV da Constituição Federal, e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, de competência privativa dos Estados, nos termos do art. 155, inciso II, do mesmo diploma legal.
O que ocorre, na realidade, é que existe um ciclo de industrialização e de circulação dos produtos, concretizando-se vários fatos geradores, criando, consequentemente, várias obrigações tributárias com os respectivos Entes Federados constitucionalmente competentes para exigir o tributo. Somente a título de ilustração, cumpre esclarecer que, para evitar a cobrança de imposto sobre imposto, aplicou-se a técnica de arrecadação do Princípio da Não cumulatividade, e por motivos de praticidade, aplica-se a substituição tributária como forma de arrecadação.
Nesta seguidas etapas, o produtor ou vendedor da mercadoria, que efetivamente realiza o fato gerador, chamado contribuinte legal, embute no valor da mercadoria o imposto que seria devido por ele, e assim, sucessivamente. Desta forma, todos os participantes da cadeia de industrialização ou circulação da mercadoria, impõem ao próximo, a compra da mercadoria no valor de mercado, mais o valor correspondente ao imposto devido, valor este que vai sendo acrescido até a chegada da mercadoria ao consumidor final, chamado de contribuinte de fato, uma vez que ao adquirir a mercadoria ou o serviço paga o valor do bem ou do serviço, mais todos os impostos que seriam devidos pelos produtores, ou vendedores nas etapas de industrialização ou circulação.
Nota-se, portanto, que no caso destes impostos plurifásicos e não cumulativos que oneram o consumo, não existe forma de mensurar a capacidade econômica do contribuinte uma vez que não se sabe quem será o destinatário final do produto ou do serviço.
Como forma de minimizar os efeitos desta transferência do ônus tributário, sem qualquer observância ao Princípio Constitucional da Capacidade Contributiva, o legislador constituinte impôs, somente no que tange a tributação do IPI, a observância do Princípio da Seletividade, que determina que a tributação seja inversamente proporcional à essencialidade do produto que onera.
Assim, quanto mais essencial o produto para a sociedade, menos deverá ser a sua alíquota, e vice-versa.
Cumpre ressaltar que o referido princípio é imperativo somente no que se refere à tributação do IPI, o que não obsta, todavia, que o mesmo seja aplicado quanto ao ICMS, como uma orientação.
Trata-se de uma forma, ainda que precária ou imperfeita, de se aplicar o Princípio da Capacidade Contributiva quanto aos impostos indiretos. Nada mais certo do que impor uma alíquota menor aos produtos que compõem a cesta básica, e uma alíquota bem maior a produtos supérfluos, de segunda necessidade, como perfumes, cosméticos, cigarros, bebidas, etc.
Não se sabe, de fato, que será o verdadeiro contribuinte, mas presume-se que aquele que compra produtos da cesta básica tem menor condições de contribuir com o Fisco do que aquele que compra diversos perfumes e cosméticos variados. O que é aferido é a capacidade para o consumo.
Entretanto, conforme já observado neste estudo, na prática, a capacidade contributiva do contribuinte de fato não poderá ser atingida, pois no momento da aquisição do produto, todos suportam o mesmo imposto, pois o preço é o mesmo. É uma maneira de se amenizar os efeitos de uma tributação arbitrária.
A conhecida obra do saudoso mestre Aliomar Baleeiro, brilhantemente atualizada pela Professora Misabel M. Derzi, traz um techo digno de ser relembrado:
O fenômeno, que estamos referindo, da translação ou da repercussão ocorrente nos impostos ditos ‘indiretos’, exigirá um tratamento especial frente aos dois princípios que estamos pondo em contato e resolver-se-á, exclusivamente, na seletividade de alíquotas ou na isenção dos gêneros de primeira necessidade. É que a capacidade econômica demonstrada por quem tem aptidão para o consumo, somente está disponível para o pagamento de tributos, em se tratamento de consumo de gêneros e produtos de necessidade média, de luxo ou supérfluos. 35
Ainda sob a análise desta questão, merecem destaque os ensinamentos do Professor Paulo Roberto Coimbra, constantes de sua recente obra:
Quanto à capacidade contributiva, abra-se neste ponto necessário parêntesis para frisar, desde logo, que nos impostos plurifásicos incidentes sobre o consumo, busca-se tributar a renda gasta no consumo. Nestes casos, a capacidade contributiva a ser atingida é a do consumidor final, não se podendo onerar o agente intermediário obrigado a recolher o tributo, seja ele contribuinte de jure ou responsável. O industrial, o comerciante e o prestador de serviços, juridicamente obrigados a recolhê-los, não suportam o seu ônus econômico, mas se esquivam de seu encargo financeiro, repassando-o ao consumidor – contribuinte de facto. 36
A tributação sob a renda consumida é um alvo da incidência da tributação e a forma de atingir-se a capacidade contributiva do consumidor final é a aplicação da essencialidade, onde tributa-se mais gravosamente bens e serviços mais comumente consumidos por contribuintes de mais alta capacidade contributiva.
Desta forma, não existe razão para desconsiderar-se, no caso dos impostos indiretos, como o IPI e o ICMS, os valores que os princípios constitucionais buscam preservar, a pretexto de que a capacidade contributiva deva ser a do contribuinte legal, ignorando-se o contribuinte de fato. Como forma subsidiária, aplica-se a técnica da seletividade, já que impossível a aplicação direta do Princípio da Capacidade Contributiva.
CONCLUSÃO
O Princípio da Capacidade Contributiva é orientação fundamental do Estado Democrático de Direito, e imprescindível para o exercício da igualdade no Direito Tributário pátrio.
É cediço que a carga tributária total dos brasileiros vem se tornando insuportável, acima dos limites admissíveis dos contribuintes. E como se não bastasse, a maior parte do dinheiro arrecadado não é revestido em serviços, melhorias e benefícios para a população, o que torna a arrecadação ainda mais injusta.
Em que pese ser o objeto do presente estudo uma orientação eminentemente teórica, tornou-se importante ressaltar a importância da aplicação deste princípio na prática jurídica, bem como a possibilidade, ainda que em tese, de promover a sua aplicação em todos os níveis de tributação.
Nos dizeres de Baleeiro, a capacidade contributiva é princípio que serve de critério ou de instrumento à concretização dos direitos fundamentais individuais, quais sejam, a igualdade e o direito de propriedade ou vedação do confisco. 37
É uma concretização do Princípio geral da Igualdade, no âmbito da tributação nacional, impondo ao legislador a observância da referida orientação, e ao Poder Judiciário, através de métodos diretos e indiretos, o dever de rechaçar práticas abusivas dos Entes Federados competentes para instituir a referida tributação, enquanto poder de controle de constitucionalidade das leis e da legalidade dos atos administrativo.
Vale frisar que se trata de orientação na busca de uma tributação mais igualitária, mais justa, impondo o ônus da tributação nos limites da capacidade contributiva do contribuinte, sem prejuízo deste comprometer seu sustento e de sua família.
Nada mais justo do que impor uma tributação maior àqueles que tem mais condições de contribuir, respeitando, também, os limites destes, sem inviabilizar a atividade econômica de ninguém.
Ao final, todos suportarão o mesmo sacrifício, resultado fundamental ao bom exercício de um sistema jurídico igualitário.
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Notas
1 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1999.p.38
2 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de Direito Tributário. 15ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.12
3 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 19ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p.32
4 NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Op. cit. p. 12
5 MORAES. Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p.118
6 COELHO, Sacha Calmon. Comentários à Constituição de 1988 – Sistema Tributário. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1999. p.39
7 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder Tributar. Atual. Mizabel Abreu Machado Derzi. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p.693
8 BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p.689
9 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 9ª ed. rev. ampliada. São Paulo, Malheiros Editores, 1997. p.65.
10 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p.136.
11 BALEEIRO, Aliomar. Op cit. p. 546.
12 Martins, Ives Gandra da Silva. Caderno de Pesquisas Tributárias Vol. 14. – Capacidade Contributiva. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1989. p. 34.
13 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Op. Cit. p. 35
14 Conti, José Maurício. Princípio Tributários da Capacidade Contributiva e da Progressividade. São Paulo: Dialética, 1997. p. 25
15 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 62
16 CONTI, José Maurício. Op. Cit. p. 26
17 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 116/117.
18 GODOI, Marciano Seabra de. Justiça, igualdade e Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 1999. p. 191/192
19 AMARO, Luciano. Op. Cit. p. 139
20 CONTI, José Maurício. Op. Cit. p. 75
21 CONTI, José Maurício. Op. Cit. p. 78
22 CARRAZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. São Paulo: Malheiros Editores, 1997. p. 65
23 AMARO, Luciano. Op. cit. p.138.
24 MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípios Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. São Paulo: Dialética, 2001. p. 68.
25 BALEEIRO, Aliomar. Op. cit. p. 695
26 CONTI, José Maurício. Sistema Constitucional Tributário – Interpretado pelos Tribunais. São Paulo: Ed. Oliveira Mendes, 1998. p.26
27 CARRAZZA, Roque Antônio. Op. Cit. p.
28 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Caderno de Pesquisas Tributárias Vol. 14: Capacidade Contributiva. São Paulo: Ed. Resenha Tributária, 1989.p. 42
29 MACHADO, Hugo de Brito. Os Princípio Jurídicos da Tributação na Constituição de 1988. São Paulo: Dialética, 2001. p. 70.
30 BALEEIRO, Aliomar. Op. Cit. p. 695.
31 CONTI, José Maurício. Sistema Constitucional Tributário – Interpretado pelos tribunais. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998. p.26
32 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. Rio de Janeiro, Forens:2002. p. 356.
33 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo, Malheiros Editores, 2001. p. 332.
34 BARRETO, Aires F. IPTU: Progressividade e Diferenciação. São Paulo: Revista Dialética de Direito Tributário n.º76: 2002. p. 7-11.
35 BALEEIRO, Aliomar. Op. Cit. p. 694
36 Silva, Paulo Roberto Coimbra. A Substituição Tributária Progressiva nos Impostos Plurifásicos e Não-cumulativos. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 23
37 BALEEIRO, Aliomar, Op. Cit. p. 689.