Noções gerais sobre a responsabilidade extracontratual do Estado

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03/08/2015 às 18:09
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Este trabalho objetiva analisar a responsabilidade extracontratual do Estado. As fontes utilizadas foram doutrina, jurisprudência, artigos científicos, bem como legislação pátria e internacional.

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende demonstrar uma síntese da evolução histórica da responsabilidade do Estado, bem como os principais aspectos concernentes às suas funções sociais: administrativa, judicial e legislativa.

Inicialmente virá a conceituação da responsabilidade extracontratual do Estado, na linha de pensamento da melhor doutrina.

Em seguida, será abordada a evolução histórica que se encontrará subdivida em: período da irresponsabilidade ou regaliana; b) fase civilista e c) teorias publicísticas.

Posteriormente, serão examinadas as causas excludentes e atenuantes da responsabilidade extracontratual do Estado, sendo elas: o fato da vítima, fato de terceiro e força maior.

Logo após, será explicitado como se deu a evolução desta matéria no ordenamento jurídico brasileiro, desde a primeira Constituição Imperial. Sendo o ponto forte, o comentário de cada expressão presente no art. 37,§ 6º da Constituição Federal de 1988.

Depois, tratar-se-á sobre a responsabilidade por omissão estatal, sendo o seu ponto nodal, a verificação se ela é subjetiva ou objetiva.

Adiante, perscrutará a respeito da responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, sendo fundamental entender o que se entende pela expressão “erro judiciário” inserida no inciso LXXV do artigo 5º da Carta Magna de 1988.

Por último, cuidar-se-á das minúcias sobre a responsabilidade do Estado pelas funções legislativas, em especial sobre os atos legislativos inconstitucionais e de efeitos concretos, como também em caso de omissão legislativa.

1. Conceito

A responsabilidade extracontratual do Estado[1] é uma conseqüência lógica inarredável da concepção de Estado de Direito[2], tendo em vista que, sujeitando-se todas as pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, ao ordenamento jurídico, impõe-se o dever de responder por comportamento do sujeito ativo estatal que atinja a esfera de proteção jurídica alheia.

O magistral professor Celso Antônio Bandeira de Mello define a responsabilidade patrimonial extracontratual do Estado como sendo "a obrigação que lhe incumbe de reparar economicamente os danos lesivos à esfera juridicamente garantida de outrem e que lhe sejam imputáveis em decorrência de comportamentos unilaterais, lícitos ou ilícitos, comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos".[3]

Por sua vez, o nobre Hely Lopes Meirelles entende ser a "imposição à Fazenda Pública da obrigação de compor o dano causado a terceiros por agentes públicos, no desempenho de suas atribuições ou a pretexto de exercê-las".[4]

Deve ficar bem assentado que não se trata de responsabilidade oriunda de ajustes celebrados pelo Estado com terceiros, denominada responsabilidade contratual (nesta, a responsabilidade está fixada e se resolve com base nas cláusulas do contrato) ou de responsabilidade criminal (as pessoas jurídicas, públicas ou privadas, não cometem contravenções ou crimes, embora seus agentes, causadores direto do dano, possam cometê-los). Também não diz respeito à obrigação de indenizar, que cabe ao Estado pelo legítimo exercício de poderes contra direitos de terceiros, como ocorre na desapropriação e, algumas vezes, na servidão. [5]

Não menos importante, é mencionar que o embasamento para que o Estado se responsabilize pelos danos causados por seus comportamentos lícitos relaciona-se com a repartição igualitária dos ônus das atividades estatais[6], pois como estas almejam beneficiar a todos, sendo desenvolvidas no interesse comum, não é correto que uma pessoa seja lesada isoladamente naquilo que visa ao favor de todos.

Por último, cumpre exarar que na atualidade, todos os povos, todas as legislações, doutrina e jurisprudência universais, reconhecem em consenso pacífico, o dever estatal de ressarcir as vítimas de seus comportamentos danosos.[7]

2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA RESPONSABILIDADE DO ESTADO

A doutrina, em regra, tem identificado a existência de três sistemas principais no tocante à evolução histórica da responsabilidade do Estado, são elas: a) teoria da irresponsabilidade ou regaliana; b) teorias civilísticas ou mistas; e c) teorias publicísticas.

Hely Lopes Meirelles, ao cuidar deste tema, assinalou que “a doutrina da responsabilidade civil da Administração Pública evolveu do conceito de irresponsabilidade para o da responsabilidade com culpa, e deste para o da responsabilidade civilística e desta para a fase da responsabilidade pública em que nos encontramos”. [8]

Nas linhas abaixo debuxadas serão examinadas as referidas teorias.

2.1 PERÍODO DA IRRESPONSABILIDADE DO ESTADO

Na origem vigorava a era da irresponsabilidade do Estado, este que se apresentava despótico e absolutista, consagrado pelas máximas “o rei não erra” (the king can do no wrong), “o Estado sou eu” (L’État c’est moi) e “o que agradou ao príncipe tem força de lei” (quod principi placuit habet legis vigorem).[9]

O ilustre jurista e professor, Yussef Said Cahali, enumera os princípios que sustentaram esta fase, que podem ser sintetizados do seguinte modo:

a) quando o Estado exige a obediência de seus súditos, não o faz para fins próprios, mas, justamente, para o bem destes; b) não se justifica a ficção de que os funcionários administrativos sejam órgãos imediatos do Estado e que, em conseqüência, os atos destes devam ser tidos como atos do Estado; este só é representado pelo chefe de governo; c) as relações jurídicas do mandato não podem ser, por analogia, aplicáveis aos servidores do Estado; d) a obrigação de indenizar tira, em regra, a sua razão de uma culpa, pois da escolha do funcionário só pode ser culpa do Estado, quando a pessoa nomeada for, sabidamente, indigna ou incapaz; semelhante culpa não pode ser absolutamente derivada do caráter representativo que tem o funcionário em relação ao Estado – Estado e funcionário são sujeitos diferentes e por isto a culpa do funcionário não é a culpa do Estado; e) o funcionário, seja agindo fora do limite de seus poderes, ou sem a forma legal imposta à sua ação, ou mesmo abusando dela, não obriga com seu ato o Estado, porque não o representa; f) o Estado não pode prestar contra a sua própria autoridade.[10]

Os administrados, todavia, não estavam completamente desprotegidos frente aos comportamentos unilaterais do Estado. Admitia-se, pois, a responsabilização do Estado quando leis específicas a previssem expressamente[11] e também do funcionário público, quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado a um comportamento pessoal seu.[12]

No início do século XX esta teoria passou a ser veementemente combatida, sucumbindo aos argumentos que podem ser assim enunciados: [13]

1º) a teoria da irresponsabilidade representava forte injustiça, constituindo verdadeira negação ao direito. Se o Estado busca a tutela do direito, não tem sentido que ele próprio o viole impunemente; 2º) O Estado, como realidade técnica e jurídica, é dotado de personalidade, sendo sujeito de direitos e obrigações em face do indivíduo, devendo a ordem jurídica dispensar igual proteção a ambos, sem sentido, pois, o privilégio da irresponsabilidade concedido ao Estado, na hipótese de lesar direitos individuais; 3º) A responsabilidade resulta da garantia que o Estado assume, pelo ato de nomeação do funcionário, e ao dever consequente de obediência, que o Estado impõe aos particulares para com o funcionário nomeado; 4º) a responsabilidade advém do caráter representativo do funcionário, cujos atos devem ser considerados atos do Estado, este representado por aquele; 5º) o princípio da culpa in eligendo ou in vigilando aplica-se ao Estado, em relação ao funcionário por ele nomeado; 6º) finalmente, a responsabilidade justifica-se pelo dever jurídico de proteção, que incumbe ao Estado, em relação aos indivíduos, estruturado este dever geral nos deveres específicos de obediência e fidelidade e aos ônus e encargos públicos, aos quais os indivíduos se sujeitam para com o Estado, obrigando este a proceder conforme o direito.

Na atualidade ela está completamente ultrapassada, uma vez que, os dois últimos países que a sustentavam, passaram a admitir que demandas indenizatórias, provocadas por atos de agentes públicos, possam ser dirigidas diretamente contra a Administração – Estados Unidos[14] (Federal Tort Claims Act, de 1946) e Inglaterra[15] (Crown Proceeding Act, de 1947).[16]

2.2 Da Fase Civilista

O período da irresponsabilidade estatal é sobrepujado gradativamente pela fase civilística, isto é, a responsabilidade baseada na idéia de culpa. Inicialmente, existia a diferenciação entre atos de império e atos de gestão, os quais são muito bem delineados pela brilhante Maria Sylvia Zanella Di Pietro, que assim leciona:

Numa primeira fase, distinguia-se, para fins de responsabilidade, os atos de império e os atos de gestão. Os primeiros seriam os praticados pela Administração com todas as prerrogativas e privilégios de autoridade e impostos unilateral e coercitivamente ao particular independentemente de autorização judicial, sendo regidos por um direito especial, exorbitante do direito comum, porque os particulares não podem praticar atos semelhantes; os segundos seriam praticados pela Administração em situação de igualdade com os particulares, para a conservação e desenvolvimento do patrimônio público e para a gestão de seus serviços; como não difere a posição da Administração e a do particular, aplica-se a ambos o direito comum[17]. (negrito e sublinho nosso)

Sendo assim, na prática de atos de império, o Estado jamais poderia ser responsabilizado, enquanto que nos casos de atos de gestão, o Estado poderia vir a ser responsabilizado pelos atos de seus representantes ou prepostos, lesivos a direitos de terceiros, quando provada a culpa. [18]

Apesar do progresso obtido, muitos doutrinadores consideravam esta tese um verdadeiro artifício jurídico perpetrado para livrar o Estado do pagamento de indenizações, uma vez que havia sérias dificuldades em diferençar, na prática, o que era ato de império e gestão, e, principalmente, pela constatação da injustiça gerada pela ausência de reparação de danos provocados pelo Estado no manejo abusivo de suas prerrogativas do poder público.[19]

Eis que surge a segunda etapa da fase civilista[20], com o advento do artigo 1.382 do Código Francês (1804) que assim postulava: “todo fato, qualquer do homem que cause dano a outrem, obriga aquele por cuja culpa ocorreu, a repará-lo”. A partir de então, ocorrido o dano em razão de ato do Estado, o particular podia suscitar a responsabilidade, desde que evidenciada a culpa do funcionário, agente, ou representante da pessoa jurídica de direito público.[21]

Como se vê trata-se da culpa projetada indiretamente na escolha do funcionário administrativo e na vigilância que o Estado deveria ter em relação ao exercício da atividade do funcionário nomeado, vale dizer, culpa in vigilando ou culpa in eligendo. [22]

Colhe-se, então, que rechaçada a época da irresponsabilidade do Estado, predominaram as teorias civilistas, de início distinguindo os atos de império e de gestão, somente estes considerados na questão da responsabilidade estatal. Posteriormente fora abandonada tal dicotomia (independia o tipo de ato), sendo substituída pelo critério subjetivo, necessitando apenas de provar a culpa da entidade estatal para a fixação da sua responsabilidade pelos danos causados a particulares.[23]

 

2.3 TEORIA Publicista: FASE INICIAL - Culpa Administrativa ou culpa do serviço

Esta fase almeja desvincular a responsabilização do Estado dos conceitos e princípios oriundos do direito civil. Nesse intento, busca-se a “despersonalização da culpa transformando-a, pelo anonimato do agente, à consideração de falha na máquina administrativa”[24], conforme esclarece Celso Antônio Bandeira de Mello:

Admitida a responsabilidade do Estado já na segunda metade do século XIX, sua tendência foi expandir-se cada vez mais, de tal sorte que evoluiu de uma responsabilidade subjetiva, isto é, baseada na culpa, para uma responsabilidade objetiva, vale dizer, ancorada na simples relação de causa e efeito entre o comportamento administrativo e o evento danoso.[25]

A construção da teoria do órgão foi essencial para a despersonalização da culpa. Sergio Cavalieri Filho ensina que de acordo com esta teoria, o Estado é considerado como um organismo vivo, integrado por um conjunto de órgãos que realizam as suas funções. Possuindo, desta maneira, órgãos de comando, que manifestam a vontade estatal, e órgãos de execução, que cumprem as ordens dos primeiros. A vontade e as ações destes órgãos, desta maneira, não são consideradas dos agentes humanos que neles atuam, mas sim do próprio Estado.[26]

Logo, não é mais necessário responsabilizar o Estado tão somente diante da comprovação da culpa do agente. Surge, então, a responsabilização pela culpa anônima do serviço estatal.

Referido avanço somente fora possível por intermédio de longa maturação jurisprudencial do contencioso administrativo francês, editados, sobretudo, ao longo do século XIX. No sistema de dualidade de jurisdição, os casos envolvendo Direito Administrativo são, em regra, submetidos à apreciação da jurisdição administrativa, cujo órgão de cúpula denomina-se Conselho de Estado, em contraposição com a jurisdição comum, que tem por órgão máximo no sistema francês a chamada Corte de Cassação. Para dirimir as eventuais dúvidas de competência, há o Tribunal de Conflitos[27].

O caso Blanco (8.2.1873) é o “arrêt” (precedente) mais famoso, apesar de não ter sido o primeiro[28], na elaboração de contornos publicistas ao regime de responsabilização do Estado.

O fato, em síntese, ocorrera da seguinte maneira: a menina Agnès Blanco, ao atravessar uma rua da cidade de Bordeaux, foi colhida por uma vagonete da Cia. Nacional de Manufatura de Fumo; seu pai promoveu ação civil de indenização, com base no princípio de que o Estado é civilmente responsável por prejuízos causados a terceiros, em decorrência de ação danosa de seus agentes. Suscitado conflito de atribuições entre a jurisdição comum e o contencioso administrativo, o Tribunal de Conflitos decidiu que a controvérsia deveria ser solucionada pelo tribunal administrativo, porque se tratava de apreciar a responsabilidade decorrente de funcionamento do serviço público. Entendeu-se que a responsabilidade do Estado não pode reger-se pelos princípios do Código Civil, porque se sujeita a regras especiais que variam conforme as necessidades do serviço e a imposição de conciliar os direitos do Estado com os direitos privados[29].

No mesmo ano (1873) surgira o caso “Pelletier”, decidido pelo Tribunal de Conflitos, que estendeu as consequências fixadas pelo caso Blanco, formulando a distinção entre: (a) a culpa do serviço, que deveria ser analisada pelo juiz administrativo, segundo regras próprias, e, da (b) culpa pessoal, pela qual se entendia, na época, que o funcionário poderia ser condenado em face da vítima no juízo comum, desde que o dano fosse derivado de atos pessoais, separáveis do exercício normal das atribuições dos agentes[30]

Gradativamente, à medida que inúmeros outros precedentes[31] se sucederam, a culpa do serviço passou, então, a ser independente da configuração da culpa subjetiva do funcionário. Todavia, isto não significa que a responsabilidade do Estado era objetiva, conforme enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello: “a responsabilidade por falta de serviço, falha do serviço ou culpa do serviço (faute du service, seja qual for a tradução que se lhe dê) não é de modo algum, modalidade de responsabilidade objetiva, ao contrário do que entre nós e alhures, às vezes tem-se inadvertidamente suposto”[32].

Seria injusto deixar de mencionar a notória contribuição da doutrina alemã nas construções teóricas edificadas sobre a tese da personalidade jurídica do Estado e, sobretudo, a respeito da teoria do Estado de Direito[33] subordinadas aos princípios constitucionais da legalidade e da igualdade, ideologias que muito influenciaram a evolução do assunto, até o estágio atual de aceitação da responsabilidade objetiva do Estado.[34]

Amaro Cavalcanti informa que a partir do final do século XIX, a Alemanha buscou a solução para a questão da responsabilidade do Estado, por meio de debates a respeito do tema, em três importantes Congressos Jurídicos realizados nos anos de 1867, 1869 e 1871. No último deles, com presenças marcantes de juristas de grande renome, foi concluída a seguinte tese: “O Congresso Jurídico Alemão manifesta a sua persuasão de que o Estado deve estabelecer na sua legislação, relativamente aos danos causados por seus funcionários, o princípio da responsabilidade direta do Estado”.[35]

Por último, insta esposar que em muitas situações de responsabilidade por falta de serviço admite-se a presunção da culpa ante a extrema dificuldade, às vezes instransponível, de se demonstrar que o serviço operou abaixo dos padrões devidos, casos em que se transfere para o Estado o ônus de provar que o serviço funcionou regularmente, de forma normal e correta. Esta presunção, contudo, não tem o condão de elidir o caráter subjetivo desta responsabilidade, pois se o Poder Público provar que agiu com diligência, prudência e perícia, estará isento da obrigação de indenizar.[36]

2.3.1 Fase Publicista: Teoria do Risco Administrativo

Com o fim de ampliar a proteção do administrado, a jurisprudência administrativa francesa passou a admitir hipóteses de responsabilização estritamente objetiva do Estado, ou seja, independentemente de qualquer tipo de falta ou culpa de serviço.[37]

Ao tratar sobre a teoria do risco administrativo, a doutrina é quase unânime em precisar sua origem na concepção do sábio francês Leon Deguit, em torno da responsabilidade do Estado arrimada sobre a idéia de segurança social suportada pelo caixa coletivo, em proveito daqueles que sofrem um prejuízo, causado pelo bom ou mau funcionamento dos serviços públicos (não importa), repartindo-se por toda coletividade quaisquer consequências danosas advindas da atividade estatal.[38]

O Professor Hely Lopes Meirelles expõe com maestria acerca desta teoria, vejamos:

Não se deve pensar em culpa da Administração ou de seus agentes, bastando que a vítima demonstre o fato danoso e injusto ocasionado por ação ou omissão do Poder Público. Tal teoria, como o nome está a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade de acarretar dano a certos membros da comunidade, impondo-lhes um ônus não suportado pelos demais. Assim, equilibrando essa desigualdade, criada pelo próprio Poder Público, todos os componentes da coletividade devem concorrer a fim de reparar o dano, através do fisco, representado pela Fazenda Pública. O risco e a solidariedade social são, pois, os suportes desta doutrina, que, por sua objetividade e partilha dos encargos, conduz a mais perfeita justiça distributiva, razão pela qual tem merecido o acolhimento dos Estados modernos, inclusive o Brasil, que a consagrou pela primeira vez no art. 194 da Constituição Federal de 1946.[39]

Extrai-se, por conseguinte, que a teoria do risco faz surgir a obrigação de indenizar bastando a verificação da ocorrência do dano em face da atividade da Administração Pública, sem que se exija a ocorrência de culpa por falta de serviço.

Sempre que a condição de agente do Estado tiver contribuído, de algum modo, para a prática do ato danoso, ainda que simplesmente lhe proporcionando a oportunidade para o comportamento ilícito, responde o Estado pela obrigação ressarcitória. Não se faz mister, portanto, que o exercício da função constitua a causa eficiente do evento danoso; basta que ela ministre a ocasião para praticar-se o ato. A nota constante é a existência de uma relação entre a função pública exercida pelo agente e o fato gerador do dano[40].

Esta teoria surge como decorrência concreta do princípio da igualdade dos indivíduos diante dos encargos públicos. Trata-se da forma democrática de repartir os ônus e encargos sociais por todos aqueles que são beneficiados pela atividade da Administração Pública.

José Cretella Júnior, assim explica o fundamento da igualdade:

O fundamento desta teoria é o princípio da igualdade dos ônus, encargos sociais ou públicos. O Estado é uma verdadeira empresa em funcionamento. Ao funcionar corre riscos. E estes devem ser suportados pela empresa, que é o Estado.

Com efeito, os cidadãos de uma dada comunidade devem participar das vantagens e desvantagens do grupo. Desse modo, pagam impostos, mas também se beneficiam com as partes positivas do serviço público.

Quando a atividade administrativa causa dano a um só que seja dos administrados, está rompido o equilíbrio social, e ao direito, que funciona como um termostato cabe compor o prejuízo sofrido, lançando-se mão dos recursos públicos para os quais concorreu também o próprio cidadão prejudicado.

O paladino no Brasil desta teoria, Lessa, condensa em período lapidar o ponto básico do tema: os ônus e encargos do Estado devem ser suportados por todos com igualdade.

Toda ideia de proporção desapareceria, se um só ou alguns pudessem ser obrigados a sacrifícios, para os quais não concorressem os outros cidadãos.[41]

Premente ressaltar que, embora a teoria do risco administrativo seja uma teoria objetiva, não significa que o Estado deva ressarcir todo e qualquer dano suportado pelo particular (nunca foi admitido no Brasil a teoria do risco integral), sendo permitido pelo ordenamento jurídico que ele prove que não causou o dano por meio da desconstituição do nexo causal, isto é, nos casos de atividade de terceiros ou da própria vítima, ou, ainda, por fenômenos da natureza, estranhos à sua atividade.

O distinto Yussef Said Cahali assim explica a imprescindibilidade do nexo causal:

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A responsabilidade objetiva do Estado se caracteriza pela só demonstração do nexo causal entre o fato lesivo e o dano.

[...]

A responsabilidade civil do Estado, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, que admite pesquisa em torno da culpa do particular, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade estatal, ocorre, em síntese, diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e ação administrativa. A consideração no sentido da ilicitude da ação administrativa é irrelevante, pois o que interessa é isso: sofrendo o particular um prejuízo, em razão da atuação estatal, regular ou irregular, no interesse da coletividade, é devida a indenização que se assenta no princípio da igualdade dos ônus e encargos sociais.

Em condições tais, não demonstrado o vínculo de causalidade, daí resulta a pré-exclusão da responsabilidade indenizatória do ente público.[42] (grifo e negrito nosso)

Doutrina e jurisprudência sustentam que a teoria do risco administrativo aceita como excludentes da responsabilidade civil do Estado o fato da vítima, a força maior, e o fato de terceiros, essas que serão debruçadas nas linhas que se seguem.

3. CAUSAS EXCLUDENTES OU ATENUANTES DA RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO

3.1 Fato da vítima

O fato da vítima pode ser causa excludente ou atenuante da responsabilidade estatal, isso porque dependerá da verificação se o lesado foi o único causador do evento danoso ou se para este houve concorrência em algum grau do Poder Público[43].

Com efeito, informa Celso Antonio Bandeira de Mello:

[...] pode ocorrer que o dano resulte de dupla causação. Hipóteses haverá em que o evento lesivo seja fruto da ação conjunta do Estado e do lesado, concorrendo ambos para a geração do resultado danoso. Ainda aqui não haverá falar em excludente da responsabilidade estatal. Haverá, sim, atenuante do quantum indenizatório, a ser decidido na proporção em que cada qual haja participado para a produção do evento.[44]

Logo, caso o particular tenha sido o único causador do dano por ele mesmo sofrido, a obrigação estatal de reparar deve ser completamente afastada. Constatando-se, porém, que o evento danoso decorreu de ações da vítima em concorrência com o Poder Público, a indenização devida pelo Estado deverá sofrer redução proporcional à extensão da conduta do lesado[45].

Premente esposar, por fim, que a inexistência do dever de reparação ou sua mitigação deve-se não à ausência de culpa do Estado, já que esta não é requisito da responsabilidade objetiva, mas sim ao fato de a participação do lesado no evento danoso operar de modo a excluir ou atenuar o nexo causal.

É o que aponta Celso Antonio Bandeira de Mello quando esclarece:

A culpa do lesado – freqüentemente invocada para elidi-la – não é, em si mesma, causa excludente. Quando, em casos de acidente de automóveis, demonstra-se que a culpa não foi do Estado, mas do motorista do veículo particular que conduzia imprudentemente, parece que se traz a tona demonstrativo convincente de que a culpa da vítima deve ser causa bastante para elidir a responsabilidade estatal. Trata-se de um equívoco. Deveras, o que se haverá demonstrado, nesta hipótese, é que o causador do dano foi a suposta vítima, e não o Estado. Então, o que haverá faltado para instaurar-se a responsabilidade é o nexo causal.

Isto parece com nitidez se nos servimos de um exemplo extremo. Figure-se que um veículo militar esteja estacionado e sobre ele se precipite um automóvel particular, sofrendo avarias unicamente este último. Sem os dois veículos não haveria a colisão e os danos não se teriam produzido. Contudo, é de evidencia solar que o veículo do Estado não causou o dano. Não se deveu a ele a produção do evento lesivo. Ou seja: inexistiu a relação causal que ensejaria responsabilidade do Estado.[46]

3.2 Força maior

Configura força maior todos os eventos imprevisíveis e alheios à vontade da pessoa jurídica de direito público, consoante nos elucida José Cretella Júnior:

[...] fenômenos da natureza (cataclismos, terremotos, ciclones, furacões, raios, inundações, erupções vulcânicas, maremotos, trombas d’água), entre outros fatos, que, comprovados, se apresentam com o traço da “inevitabilidade”, mesmo diante das possibilidades técnicas de nossos dias, impotentes para evitar-lhes o efeito.[47]

Se, todavia, o dano era previsível e o Poder Público tinha condições de realizar obra considerada indispensável a eliminar ou minorar as consequências danosas do fenômeno natural, será ele responsabilizado por sua conduta omissiva, posto que, em tal hipótese, o evento danoso terá decorrido da ausência de providências por parte do Estado e não da força maior[48].

 

3.3 Fato de terceiros

O Estado não poderá ser responsabilizado, quando o evento danoso decorrer de atos praticados por terceiros, isto é, estranho ao serviço público, sem que houvesse qualquer possibilidade do Poder Público prevê-lo ou saná-lo a tempo.[49]

Se assim não fosse, o Estado se transformaria em segurador universal, conforme ressalta Celso Antonio Bandeira de Mello:

Ademais, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cumpre ao Estado prover a todos os interesses da coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma agressão sofrida em local público, o lesado poderia sempre arguir que o serviço não funcionou. A admitir-se responsabilidade objetiva nestas hipóteses o Estado estaria erigido em segurador universal. Razoável que responda pela lesão patrimonial da vítima de um assalto se agentes policiais relapsos assistiram à ocorrência inertes e desinteressados ou se, alertados a tempo de evitá-lo, omitiram-se na adoção de providências cautelares. Razoável que o Estado responda por danos oriundos de uma enchente se as galerias pluviais e os bueiros de escoamento das águas estavam entupidos ou sujos, propiciando o acúmulo da água. Nestas situações, sim, terá havido descumprimento do dever legal na adoção de providências obrigatórias.

Faltando, entretanto, este cunho de injuridicidade, que advém do dolo, ou da culpa tipificada na negligência, na imprudência ou na imperícia, não há cogitar de responsabilidade pública.[50]

Por conseguinte, como o fato de terceiro rompe com o nexo de causalidade, o Estado não poderá ser responsabilizado pelo evento danoso, o qual deverá ser imputado ao terceiro que lhe deu causa.

4. A Matéria no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Antes da independência, no período colonial, a irresponsabilidade do Estado era a regra[51].

A Constituição Imperial (outorgada em 1824) estabelecia o princípio da responsabilidade civil dos agentes públicos, adotando a teoria subjetiva da culpa[52], embora excluísse o Imperador de responder por qualquer ação em decorrência de ato lesivo que praticasse como Chefe do Estado.[53]

Espelhando a Carta Imperial, a Constituição Republicana de 1891, em seu art. 82, consagrou:

Os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente seus subalternos.

A responsabilidade do Estado somente foi legalmente reconhecida no artigo 15 do Código Civil de 1916 que expressava: “As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que, nessa qualidade, causarem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito em lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano”.

Neste período, já se sustentava, em caráter isolado, que o referido artigo previa a responsabilidade objetiva[54], contudo a doutrina amplamente majoritária compreendia, que, por existirem as expressões: “procedendo de modo contrário ao direito ou faltando com o dever prescrito”, o Estado somente responderia se houvesse a comprovação da culpa do funcionário.[55]

A Carta Magna de 1934 que cuidou da matéria em seu art. 171 estabeleceu a responsabilidade subjetiva solidária:

Os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício dos seus cargos.

§ 1° – Na ação proposta contra a Fazenda Pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte.

§ 2° – Executada a sentença contra a Fazenda promoverá execução contra o funcionário culpado.

A Constituição de 1946, em seu art. 194, quebrou a corrente tradicional que só admitia a responsabilidade patrimonial do Estado com base na teoria subjetiva da culpa e proclamou a responsabilidade objetiva:

As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único – Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

As constituições posteriores mantiveram a responsabilidade objetiva, acrescentando apenas alguns pormenores. A Constituição de 1967, por exemplo, inseriu no parágrafo único do art. 105, que a ação regressiva ocorrerá também diante do dolo, alteração que foi repetida no art. 107 da Emenda n. 1, de 1969[56].

Desse modo, a Carta Federativa de 1988 não inovou, quando determinou no seu art. 37, § 6° que:

As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços público responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Decodificando referido mandamento, insta jungir comentário da brilhante professora Irene Patrícia Nohara, a respeito das pessoas que respondem objetivamente, são elas:

a)       entes da Administração Direta: União, Estados, Distrito Federal e Municípios;

b)       autarquias e fundações públicas, que são pessoas jurídicas de direito público;

c)       fundação governamental de natureza privada que preste serviços públicos;

d)       empresas públicas e sociedades de economia mista, como entes privados, apenas respondem objetivamente, nos termos do artigo, se forem prestadoras de serviços públicos. Se desenvolverem atividades econômicas em sentido estrito, submetem-se à responsabilização subjetiva, própria do Direito Civil;

e)       delegatárias de serviços públicos na forma do art. 175 da Constituição, isto é, concessionárias e permissionárias de serviços públicos, ou formas diversas de delegação de serviços públicos, como àqueles referentes às atividades de tabelionato e cartórios de notas e registros (para maior parte da doutrina)[57]

Cumpre expor que o Estado somente responderá pelas entidades de direito privado, prestadoras de serviço público, quando exauridos seus recursos. A esse respeito, Sergio Cavalieri Filho, pontua:

1) o objetivo da norma constitucional, como visto, foi estender aos prestadores de serviços públicos a responsabilidade objetiva idêntica a do Estado, atendendo reclamo da doutrina ainda sob o regime constitucional anterior. Quem tem os bônus deve suportar os ônus; 2) as pessoas jurídicas prestadoras de serviços públicos têm personalidade jurídica, patrimônio e capacidade próprios. São seres distintos do Estado, sujeitos de direitos e obrigações, pelo que agem por sua conta e risco, devendo responder por suas próprias obrigações; 3) nem mesmo de responsabilidade solidária é possível falar neste caso, porque a solidariedade só pode advir da lei ou do contrato, inexistindo norma legal atribuindo solidariedade ao Estado com os prestadores de serviços públicos. Antes pelo contrário, o art. 25 da Lei n.º 8.927/1995, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, estabelece responsabilidade direta e pessoal da concessionária por todos os prejuízos causados ao poder concedente, aos usuários ou a terceiros; 4) no máximo, poder-se-ia falar em responsabilidade subsidiária do Estado à luz do art. 242 da Lei das Sociedades por Ações que, expressamente, diz que a pessoa jurídica controladora da sociedade de economia mista responde subsidiariamente pelas suas obrigações.[58]

É conflituoso o entendimento se o “terceiro setor” responde subjetiva ou objetivamente. José dos Santos Carvalho Filho, entende que as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público, que se vinculam ao Estado, respectivamente, por contrato de gestão e termo de parceria, respondem subjetivamente.[59] Já a renomada Maria Sylvia Zanella Di Pietro, entende que a responsabilidade é objetiva, desde que recebam delegação do Poder Público, a qualquer título, para prestação de serviços públicos. [60]

No que atine ao dano[61], ele pode ser tanto material quanto moral[62], e segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, não basta para caracterizá-lo, a mera deterioração patrimonial sofrida por alguém, mas sim que se trate de um bem jurídico cuja integridade o sistema normativo proteja, reconhecendo-o como um direito do indivíduo[63].

O doutrinador cria uma tabela que sintetiza bem os tipos de comportamento que podem ensejar danos indenizáveis, examinemos:

Por comportamentos lícitos

a.1) Atos jurídicos – como, por exemplo, a determinação de fechamento legítimo e definitivo do perímetro central da cidade a veículos automotores, por razão de tranqüilidade, salubridade pública e desimpedimento do trânsito, que acarreta para os proprietários de edifícios-garagem, devidamente licenciados, indiscutível dano patrimonial anormal.

a.2) Atos materiais – como, por exemplo, o nivelamento de uma rua, procedida com todas as cautelas e recursos técnicos, que, entretanto, pelas características físicas ambientais, implica ficarem algumas casas em nível mais elevado ou rebaixado em relação ao leito da rua, causando séria desvalorização daqueles imóveis.

b) Por comportamentos ilícitos:

b1) Atos jurídicos – como, verbi gratia, a decisão de apreender, fora do procedimento ou hipóteses legais, a edição de jornal ou revista.

b.2) Atos materiais – o espancamento de um prisioneiro, causando-lhe lesões definitivas[64].

Já no que concerne o vocábulo “agentes”, o magistral Celso Antônio Bandeira de Mello elucida:

Quem são as pessoas suscetíveis de serem consideradas agentes públicas, cujos comportamentos, portanto, ensejam engajamento da responsabilidade do Estado? São todas aquelas que – em qualquer nível de escalão – tomam decisões ou realizam atividades da alçada do Estado, prepostas que estão no desempenho de um mister público (jurídico ou material), isto é, havido pelo Estado como pertinente a si próprio.

Nesta qualidade ingressam desde as mais altas autoridades até os mais modestos trabalhadores que atuam pelo aparelho estatal.[65]

Ressalte-se, todavia, que para que o Estado responda pelo ato do agente público, a condição do agente deverá ter contribuído de alguma forma para o evento danoso. Nesse sentido, o ensinamento de Yussef Said Cahali:

Em realidade, o que sobreleva para a vinculação da responsabilidade da pessoa jurídica é o fato de ter sido a oportunidade para a prática do ato danoso ensejada pela sua condição de funcionário ou agente da entidade.

(...) Mas o ato praticado em caráter particular, ainda que envolvendo funcionário público, não pode acarretar a responsabilidade do Estado.

Não se pode pretender a exclusão dessa responsabilidade civil do Estado pelo ato de seu funcionário que exorbitou de suas funções, desde que o ato seja inerente à sua qualidade de agente do Poder Público.[66]

E arremata Celso Antônio Bandeira de Mello:

Não importará, de conseguinte, para efeitos de responsabilidade estatal, estabelecer se o agente atuou culposa ou dolosamente. Não importará, para tais fins, o saber-se se os poderes que manipulou de modo indevido continham-se ou não, abstratamente, no campo de suas competências específicas. O que importará é saber se a sua qualidade de agente público foi determinante para a conduta lesiva. Se terceiros foram lesados, em razão de o autor ser funcionário, ocorreu o bastante para desenhar-se na hipótese de responsabilidade estatal.[67]

No tocante à expressão “terceiros”, note-se que esta indica alguém estranho ao Estado, isto é, alguém que não tem um vínculo jurídico preexistente com o Poder Público. Desta maneira, o §6º do artigo 37 só se aplica à responsabilidade extracontratual do Estado, não se aplicando, pois, aos casos de responsabilidade contratual, visto que aquele que contrata com o Estado não é terceiro.[68]

A respeito das entidades de direito privado prestadoras de serviço público, recentemente, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não se pode restringir a expressão “terceiros”, ou seja, a responsabilidade será objetiva, mesmo quando o dano tenha sido provocado a um terceiro que não figure na qualidade de usuário daquele serviço[69].

Findando a análise em tela, observa-se que o Estado poderá mover ação regressiva quando o agente público causar o dano com culpa ou dolo.

São requisitos da ação de regresso: (1) a presença da culpa ou dolo do agente público; e (2) o trânsito em julgado da sentença de condenação do Estado. O art. 2º da Lei n. 4.619/65, que dispõe sobre ação regressiva da União contra seus agentes, estabelece que o prazo para ajuizamento da ação regressiva é de 60 (sessenta) dias a partir da data em que transitar em julgado a condenação imposta à Fazenda Pública.

A ação regressiva, como ação “civil” que é, atinge herdeiros e sucessores do servidor que agiu com culpa ou dolo, conforme dispõe o art. 122, §3º, da Lei n. 8.112/90. Ela pode ser instaurada, inclusive, mesmo após a cessação do exercício no cargo ou na função, por disponibilidade, aposentadoria, exoneração ou demissão. 

4.1 danos por omissão do estado

Está sedimentado na doutrina e jurisprudência que o Estado responde quando há o dever jurídico de impedir o dano e o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente.

O ponto controvertido é precisar se a sua responsabilidade é subjetiva (baseada na culpa: negligência, imperícia e imprudência) ou objetiva (inexistindo distinção entre atos comissivos e omissivos).

Na doutrina, dentre aqueles que se filiam à tese subjetiva, se destaca Celso Antônio Bandeira de Mello que buscou inspiração em Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[70]. Nessa corrente se encontram outros juristas de peso, tais como: Lúcia Valle Figueiredo[71], Rui Stocco[72] e Maria Sylvia Zanella Di Pietro[73] .

O primeiro raciocínio lógico que o expoente Celso Antônio Bandeira de Mello utiliza é o de que, se o Estado não agiu, não pode ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo[74].

Segundo ele, não bastará, então, para configurar-se a responsabilidade estatal, a simples relação entre a ausência do serviço (omissão estatal) e o dano sofrido. Com efeito: inexistindo obrigação legal de impedir certo evento danoso (obrigação, de resto, só cogitável quando haja possibilidade de impedi-lo mediante atuação diligente), seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade por um dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-la do nada; significaria pretender instaurá-la prescindindo de qualquer fundamento racional ou jurídico. Cumpre que haja algo mais: a culpa por negligência, imprudência ou imperícia no serviço, ensejadoras do dano, ou então o dolo, intenção de omitir-se, quando era obrigatório para o Estado atuar e fazê-lo segundo um certo padrão de eficiência capaz de obstar o evento lesivo. Em uma palavra: é necessário que o Estado haja incorrido em ilicitude, por não ter acorrido para impedir o dano ou por haver sido insuficiente nesse mister, em razão de comportamento inferior ao padrão legal exigível[75].

Prossegue asseverando que é razoável que o Estado responda objetivamente pelos danos que causou. Mas só é razoável e impositivo que responda pelos danos que não causou quando estiver de direito obrigado a impedi-los[76].

Celso Antônio Bandeira de Mello propugna que, solução diversa conduziria a absurdos. É que, em princípio, cumpre ao Estado prover todos os interesses da coletividade. Ante qualquer evento lesivo causado por terceiro, como um assalto em via pública, uma enchente qualquer, uma agressão física sofrida em local público, o lesado poderia sempre argüir que o “serviço não funcionou”. A admitir-se responsabilidade objetiva nestas hipóteses, o Estado estaria erigido em segurador universal! Razoável que responda pela lesão patrimonial da vítima de um assalto se agentes policiais relapsos assistiram a ocorrência inertes e desinteressados ou se, alertados a tempo de evitá-lo, omitiram-se na adoção das providências cautelares. Razoável que o Estado responda por danos oriundos de uma enchente se as galerias pluviais e os bueiros de escoamento das águas estavam entupidos ou sujos, propiciando o acúmulo da água. Nestas situações, sim, terá havido descumprimento do dever legal de adoção de providências obrigatórias. Faltando, entretanto, este cunho de injuridicidade, que advém do dolo, ou da culpa tipificada na negligência, na imprudência ou na imperícia, não há cogitar de responsabilidade pública[77].

Assim, para a responsabilização por omissão do Estado, é necessário caracterizar essa omissão e singularizar a atuação administrativa: a omissão deve decorrer de sua culpa.

Outro fortíssimo argumento é o de que o artigo constitucional determina que o Estado responderá pelos danos que seus agentes causarem a terceiros. Ora, se houve omissão, não se pode dizer que os danos foram causados pelos agentes do Estado.

Do lado oposto encontram-se estudiosos renomados a favor da tese objetiva, tais como Hely Lopes Meirelles[78], Yussef Said Cahali[79], Celso Ribeiro Bastos[80] e, principalmente, Sérgio Cavallieri Filho[81].

Sérgio Cavalieri entende que o art. 37, §6º, da Constituição engloba não apenas a conduta comissiva que causa dano, mas também a conduta omissiva[82].

Dessa maneira, se há um dever jurídico de impedir o dano, o comportamento negativo (omissão) do Estado seria condição material da ocorrência do eventus damni. O que não significa que o Estado deva ser responsabilizado por tudo, haja vista o seu amplo espectro de responsabilidade em relação aos cidadãos.

Para tanto, devem ser distinguidas as situações de omissão genérica do Estado, hipótese em que a responsabilidade deve ser subjetiva, das de omissão específica, em que há um dever individualizado de agir. Conceitos estes, criados pelo conspícuo jurista Guilherme Couto de Silva e que foram encampados por Sérgio Cavalieri, perscrutemos:

É preciso, ainda, distinguir omissão genérica do Estado (item 77) e omissão específica. Observa o talentoso jurista Guilherme Couto de Castro, em excelente monografia com que brindou o nosso mundo jurídico, “não ser correto dizer, sempre, que toda hipótese de dano proveniente de omissão estatal será encarada, inevitavelmente, pelo ângulo subjetivo. Assim o será quando se tratar de omissão genérica. Não quando houver omissão específica, pois aí há dever individualizado de agir.” (A Responsabilidade civil objetiva no Direito Brasileiro, Forense, 1997, p. 37). Mas afinal de contas, qual a distinção e omissão genérica e omissão específica? Haverá omissão específica quando o Estado, por omissão, crie a situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo. Assim, por exemplo, se o motorista embriagado atropela e mata pedestre que estava na beira da estrada, a Administração (entidade de trânsito) não poderá ser responsabilizada pelo fato de estar esse motorista ao volante sem condições. Isso seria responsabilizar a Administração por omissão genérica. Mas, se esse motorista, momentos antes, passou por uma patrulha rodoviária, teve o veículo parado, mas os policiais, por alguma razão, deixaram-no prosseguir viagem, aí já haverá omissão específica que se erige em causa adequada do não impedimento do resultado. Nesse segundo caso haverá responsabilidade objetiva do Estado[83].

Assim, quando há uma omissão específica do Estado, ou seja, quando a falta de agir do ente público é causa direta e imediata do dano, tem se entendido que há responsabilidade objetiva.

Esta corrente defende, também, que a volta à responsabilização pela culpa do serviço (subjetiva) seria um retrocesso na escala de evolução da responsabilidade do Estado, pois o terceiro prejudicado pode receber uma resposta negativa em termos de responsabilização se a Administração comprovar que de fato não agiu de forma negligente, imprudente ou com imperícia, aspectos que, via de regra, não seriam apurados se a teoria adotada fosse a da responsabilização objetiva, que é mais avançada, pois apenas leva em consideração o nexo causal entre a omissão (que, para Sérgio Cavalieri, deve ser específica) e o dano ocorrido[84].

Em sede jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça sempre se manteve firme na responsabilização subjetiva[85] (apenas em casos extraordinários adota a responsabilidade objetiva[86]).

O mesmo se passa no Supremo Tribunal Federal que acolheu a tese da responsabilidade subjetiva nos casos de omissão.[87]

4.2 Responsabilidade do Estado por atos judiciais

Em fase anterior à Constituição Federal, no plano jurídico, diversas linhas de pensamento rechaçavam a responsabilização do Estado pelos atos jurisdicionais.[88] Os principais argumentos eram: a soberania, a eficácia da coisa julgada, a condição diferenciada dos juízes entre os agentes estatais e a natureza especial da atividade jurisdicional. [89]

Contudo, referidas teorias não encontraram eco no Estado Democrático de Direito, tendo em vista que a jurisdição é, de um lado, atividade essencial típica do Estado e, de outro, direito fundamental da sociedade. A sua deficiente prestação deve ensejar a correspondente responsabilidade, ainda que não de forma irrestrita.[90]

A Constituição Federal de 1988 disciplinou a responsabilidade do Estado pela atividade judicial, como uma garantia fundamental, no inciso LXXV do art. 5º: “O Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.

A grande dificuldade é delimitar o que pode ser considerado “erro judiciário”. O douto Juarez Freitas identifica nesse dispositivo uma cláusula geral de responsabilidade pelo erro judiciário, dispensando qualquer construção hermenêutica.[91] Em tese absolutamente restritiva, Tupinambá Nascimento, exara que esse dispositivo só trata da reparação do erro judiciário penal.[92]

Pode-se afirmar que a doutrina, de um modo geral, aponta como sendo atividade jurisdicional defeituosa quando: a) o Juiz, dolosamente, recusa ou omite decisões, causando prejuízo às partes; b) o Juiz não conhece, ou conhece mal o direito aplicável, recusando ou omitindo o que é de direito; e c) o atuar do Poder Judiciário é vagaroso, por indolência do juiz ou por lentidão determinada por insuficiência ou falta de juízes ou funcionários, obrigando ao cúmulo de processos, o que impossibilita o julgamento dentro dos prazos fixados pela lei. [93]

Nesse sentido cabe mencionar as lições de Cavalieri Filho:

No exercício da atividade tipicamente judiciária podem ocorrer os chamados erros judiciais, tanto in judicando como in procedendo. Ao sentenciar ou decidir, o juiz, por não ter bola de cristal nem o dom da adivinhação, está sujeito aos erros de julgamento e de raciocínio, de fato ou de direito. Importa dizer que a possibilidade de erros é normas e até inevitável na atividade jurisdicional.

(...)

È justamente para evitar ou corrigir erros que a lei prevê os recursos, por vezes até em número excessivo. A parte agravada ou prejudicada por uma sentença injusta ou equivocada pede a sua revisão, podendo chegar, neste mister, até a Suprema Corte. Mas, uma vez esgotados os recursos, a coisa julgada se constitui em fator inibitório da responsabilidade do Estado, que tudo fez, dentro das possibilidades humanas, para prestar uma justiça justa e correta.

Daí o entendimento predominante, no meu entender o mais correto, no sentido de que só pode o Estado ser responsabilizado por danos causados por atos judiciais típicos nas hipóteses previstas no art. 5º, LXXV, da Constituição Federal. Contempla-se, ali, o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença. Por erro judiciário deve ser entendido o ato jurisdicional equivocado e gravoso a alguém, tanto na órbita penal como civil; ato emanado da atuação do juiz (decisão judicial) no exercício da função jurisdicional. (grifo e sublinho nosso) [94]

Prossegue o nobre doutrinador, complementando sobre o assunto:

Nem sempre será tarefa fácil identificar o erro, porque para configurá-lo não basta a mera injustiça da decisão, tampouco a divergência na interpretação da lei ou na apreciação da prova. Será preciso uma decisão contrária à lei ou à realidade fática, como, por exemplo, condenação de pessoa errada, aplicação de dispositivo penal impertinente, ou de indevido exercício da jurisdição, motivada por dolo, fraude ou má-fé. [95]

(...) (grifo e sublinho nosso)

Isto significa que a disposição constitucional (37, §6°) não é aplicável quando se está a tratar de responsabilidade civil do Estado por ato jurisdicional, limitando-se a configuração de tal responsabilidade nos casos de dolo, fraude ou culpa grave do agente[96].

Na mesma esteira, a jurisprudência do Supremo apregoa que o Estado somente se responsabiliza quando há erro judiciário[97], afora isso, se trata da entrega da prestação jurisdicional, passível de divergência em si mesmo.

Concluindo, para se ter uma idéia, o STF compreende que a prisão preventiva, devidamente fundamentada e nos limites legais, inclusive temporal, não gera o direito à indenização em face da posterior absolvição por ausência de provas[98].

4.3 Responsabilidade do Estado por atos legislativos

Predomina, em nosso ordenamento jurídico, a regra da irresponsabilidade do Estado pelo exercício de sua atribuição típica de elaborar as leis.[99]

Segundo Maria Sylvia Zanella Di Pietro[100], aqueles que sustentam a irresponsabilidade civil do Estado por evento danoso decorrente de sua função legislativa se apoiam nos seguintes argumentos:

a) que a lei é um ato de soberania;[101]

b) que a lei, na verdade, é manifestação do próprio povo;[102]

c) que a lei é geral, abstrata e impessoal;[103]

d) que a lei não viola direito preexistente;[104]

e) que a lei pode ser modificada a qualquer tempo;[105]

f) que os agentes políticos não são responsáveis;[106]

g) que a responsabilização do Estado é empecilho à atividade

legiferante.[107]

Todavia, essa regra é excepcionada, atualmente, quando há:

a) criação de leis inconstitucionais;

b) existência de leis de efeitos concretos e

c) omissão a dever de legislar.

No tocante à primeira hipótese, a doutrina[108] e a jurisprudência[109] admitem que haja responsabilidade do Estado em casos de leis que, porventura, venham a ser declaradas inconstitucionais por decisão da Excelsa Corte, em sede de controle principal e concentrado de constitucionalidade (seja comissivo ou omissivo o ato).[110]

Cumpre ressaltar que, ao prejudicado, não é suficiente arguir a inconstitucionalidade da norma, mas deve também comprovar a existência do dano e o seu nexo com a lei inconstitucional.

Esclarece-se, por fim, que a Lei nº 9.868, de 10 de novembro de 1999 (dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal), em seu art. 28, parágrafo único[111], garante a eficácia erga omnes da declaração de inconstitucionalidade, e seu efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.

Em relação à segunda hipótese, ensina Di Prieto:

Com relação às leis de efeitos concretos, que atingem pessoas determinadas, incide a responsabilidade do Estado, porque, como elas fogem às características da generalidade e abstração inerentes aos atos normativos, acabam por acarretar ônus não suportado pelos demais membros da coletividade. A lei de efeito concreto, embora promulgada pelo Legislativo, com obediência ao processo de elaboração das leis, constitui, quanto ao conteúdo, verdadeiro ato administrativo, gerando, portanto, os mesmos efeitos os mesmos efeitos que este quando cause prejuízo ao administrado, independentemente de considerações sobre a sua constitucionalidade ou não.[112] (negrito nosso)

O dano causado pela lei de efeito concreto é denominado por Celso Antônio Bandeira de Mello como “dano especial”, analisemos:

Dano especial é aquele que onera a situação particular de um ou alguns indivíduos, não sendo, pois, um prejuízo genérico, disseminado pela sociedade. Corresponde a um agravo patrimonial que incide especificamente sobre certo ou certos indivíduos, e não sobre a coletividade ou genérica e abstrata categoria de pessoas.[113]

Cahali, ao cuidar desse assunto, faz menção a um caso em que uma lei do Estado de São Paulo criou uma reserva florestal, afetando o direito de propriedade do autor.[114] É um exemplo de uma só pessoa sendo obrigada a aguentar o ônus decorrente da lei, em benefício de toda a coletividade.

A conclusão a que se chega é a de que o ato legislativo legítimo pode, eventualmente, impor a um ou alguns indivíduos, ônus maior do que aquele genérico disseminado pela sociedade, hipótese esta que, por evidente, constitui razão suficiente a ensejar a responsabilização do Estado.

A respeito da terceira e última hipótese, Marçal Justen Filho destaca que:

Pode ser indagado se a ausência de produção da lei poderia gerar a responsabilização civil do Estado. Ora, a ausência de produzir lei configura uma atuação omissiva do Estado. Poderá existir infração omissiva própria ou infração omissiva imprópria. A atuação omissiva própria se configurará quando existir um dever jurídico de produzir a lei.

Assim, se a Constituição estabelecer o dever de exercer a competência legislativa, a omissão será uma infração à ordem jurídica. Já a ausência de norma jurídica, qualificando a conduta ativa como obrigatória, conduz a uma infração omissiva imprópria. Nesse caso a responsabilidade civil do Estado depende da comprovação da violação ao dever de diligência.[115] (grifo e negrito nosso)

Maurício Jorge Pereira Mota nesse sentido informa que:

As omissões legislativas podem ser absolutas ou relativas. As primeiras se verificam quando o órgão competente queda inteiramente inerte diante de um dever de legislar. As outras ocorrem quando o legislador, embora atuando, deixa de fora da incidência da norma alguma categoria que nela deveria estar incluída. O legislador, ao atuar voluntariamente, criando certa disciplina legal, fica obrigado a não deixar sem consideração os casos essencialmente iguais aos previstos na regra geral [...]. A doutrina mais moderna tem se direcionado também para essa vertente. Maria Emília Alcântara igualmente advoga a tese, fundada no princípio da efetividade da Constituição (que não admite a existência de normas constitucionais despidas de sentido prático e operativo), que a omissão do legislador por prazo razoável de tempo permita a propositura de ação de indenização por quem sofrer danos em virtude de ser titular de um direito garantido pela Constituição, mas impedido de exercê-lo por inércia legislativa. Em conclusão [...] a doutrina e jurisprudência parecem orientar-se pela admissão da existência, no bojo da Constituição, de deveres concretos e específicos de legislar e que, do inadimplemento desses deveres específicos surge a responsabilidade civil do Estado pela omissão de legislar.[116] (grifo e negrito nosso)

Desse modo, quando o legislador ordinário deixa de atender as determinações que lhe impõem a edição de leis que objetivem a efetivação dos comandos da Constituição,[117] a omissão legislativa se qualifica como passível de gerar a responsabilização do Estado, caso, daí, resulte algum dano para o particular.

Ano passado (09/01/2012) a Câmara dos Deputados Federais analisou Projeto de Lei (2504/11) que visava alterar o Código Civil (Lei 10.406/02) para responsabilizar na esfera civil as pessoas jurídicas de direito público por omissão legislativa.

 Segundo o Deputado João Paulo Lima, autor da proposta, “trata-se de estabelecer norma que, sinalizando ao Poder Público que não deve deixar de cumprir o seu dever de legislar, passe a amparar melhor as pessoas prejudicadas por omissão legislativa decorrente de inércia dos órgãos legiferantes”.[118]

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se pronunciado favoravelmente à possibilidade de responsabilização estatal por dano resultante de sua mora legislativa, desde que cumprido dois requisitos: o reconhecimento da mora pelo STF e à permanência da omissão, após o prazo estabelecido pela Corte Suprema (considerando o decurso do prazo, a partir da constituição em mora), vejamos, por exemplo, as decisões no Mandado de Injunção nº 447/DF e nº 284/DF,[119] cujas ementas foram assim redigidas:

- Mandado de injunção. Omissão do Congresso Nacional no tocante a regulamentação do paragrafo 3. do artigo 8. do ADCT. - Alcance do mandado de injunção segundo o julgamento do Mandado de Injunção n. 107 com possibilidade de aplicação de providencias adicionais nele genericamente admitidas, e concretizadas no julgamento do Mandado de Injunção n. 283. - O prazo fixado, no julgamento do Mandado de Injunção n. 283, para o cumprimento do dever constitucional de editar essa regulamentação de há muito se escoou sem que a omissão tenha sido suprida. Não há, pois, razão para se conceder novo prazo ao Congresso Nacional para o adimplemento desse seu dever constitucional, impondo-se, desde logo, que se assegure aos impetrantes a possibilidade de ajuizarem, com base no direito comum, ação de perdas e danos para se ressarcirem do prejuizo que tenha sofrido. Mandado de injunção conhecido em parte, e nela deferido.
(MI 447, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Tribunal Pleno, julgado em 05/05/1994, DJ 01-07-1994 PP-17495 EMENT VOL-01751-01 PP-00038) (negrito e sublinho nosso)

- MANDADO DE INJUNÇÃO - NATUREZA JURÍDICA - FUNÇÃO PROCESSUAL - ADCT, ART. 8., PARAGRAFO 3. (PORTARIAS RESERVADAS DO MINISTÉRIO DA AERONÁUTICA) - A QUESTÃO DO SIGILO - MORA INCONSTITUCIONAL DO PODER LEGISLATIVO - EXCLUSAO DA UNIÃO FEDERAL DA RELAÇÃO PROCESSUAL- ILEGITIMIDADE PASSIVA "AD CAUSAM" - "WRIT" DEFERIDO. - O caráter essencialmente mandamental da ação injuncional - consoante tem proclamado a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - impõe que se defina, como passivamente legitimado "ad causam", na relação processual instaurada, o órgão público inadimplente, em situação de inércia inconstitucional, ao qual e imputavel a omissão causalmente inviabilizadora do exercício de direito, liberdade e prerrogativa de indole constitucional. No caso, "ex vi" do paragrafo 3. do art. 8. do Ato das Disposições Constitucionais Transitorias, a inatividade inconstitucional e somente atribuivel ao Congresso Nacional, a cuja iniciativa se reservou, com exclusividade, o poder de instaurar o processo legislativo reclamado pela norma constitucional transitoria. - Alguns dos muitos abusos cometidos pelo regime de exceção instituido no Brasil em 1964 traduziram-se, dentre os varios atos de arbitrio puro que o caracterizaram, na concepção e formulação teorica de um sistema claramente inconvivente com a pratica das liberdades publicas.

[...]

. - Reconhecido o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional - único destinatario do comando para satisfazer, no caso, a prestação legislativa reclamada - e considerando que, embora previamente cientificado no Mandado de Injunção n. 283, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, absteve-se de adimplir a obrigação que lhe foi constitucionalmente imposta, torna-se "prescindivel nova comunicação a instituição parlamentar, assegurando-se aos impetrantes, "desde logo", a possibilidade de ajuizarem, "imediatamente", nos termos do direito comum ou ordinário, a ação de reparação de natureza econômica instituida em seu favor pelo preceito transitorio.

(MI 284, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 22/11/1992, DJ 26-06-1992 PP-10103 EMENT VOL-01667-01 PP-00001 RTJ VOL-00139-03 PP-00712) (negrito e sublinho nosso)

Depreende-se, portanto, ser perfeitamente aceita, tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência, a possibilidade de imputação ao Estado da obrigação de reparar os danos decorrentes de sua mora legislativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ficou assentado que na origem vigorava a era da irresponsabilidade do Estado. Os administrados, todavia, não estavam completamente desprotegidos frente aos comportamentos unilaterais do Estado. Admitia-se, pois, a responsabilização do Estado quando leis específicas a previssem expressamente e também do funcionário público, quando o ato lesivo pudesse ser diretamente relacionado a um comportamento pessoal seu.

A essa fase sucedeu a teoria civilista, de início distinguindo os atos de império e de gestão, somente estes considerados na questão da responsabilidade estatal. Posteriormente fora abandonada tal dicotomia (independia o tipo de ato), sendo substituída pelo critério subjetivo, necessitando apenas de provar a culpa da entidade estatal para a fixação da sua responsabilidade pelos danos causados a particulares.

Logo após, viera a fase publicista (depois de longa maturação jurisprudencial do contencioso administrativo francês, editados, sobretudo, no decorrer do século XIX), que desvinculou a responsabilização do Estado dos conceitos e princípios oriundos do direito civil, isto é, despersonalizou a culpa transformando-a, pelo anonimato do agente, à consideração de falha na máquina administrativa. Logo, não é mais necessário responsabilizar o Estado tão somente diante da comprovação da culpa do agente. Surge, então, a responsabilização pela culpa anônima do serviço estatal.

A segunda fase publicista é encampada pela “teoria do risco”, que arrimada sobre a idéia de segurança social suportada pelo caixa coletivo, em proveito daqueles que sofrem um prejuízo (princípio da igualdade dos indivíduos diante dos encargos públicos), faz surgir a obrigação de indenizar, bastando a verificação da ocorrência do dano em face da atividade da Administração Pública, sem que se exija a ocorrência de culpa por falta de serviço (responsabilidade objetiva). Possui como causas excludentes o fato da vítima, fato de terceiro e força maior.

Quanto à responsabilidade por omissão, a doutrina majoritária filia-se à tese subjetiva, liderada por Celso Antônio Bandeira de Mello. Em sede jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal se mantêm firme na responsabilização subjetiva.

No tocante aos atos jurisdicionais é sabido que em fase anterior à Constituição Federal, no plano jurídico, diversas linhas de pensamento rechaçavam a responsabilização do Estado pelos mesmos. Na atualidade, o Estado é sempre responsável quando alguém ficar preso além do tempo fixado na sentença ou acontecer erro judiciário (decisão judicial equivocada e gravosa a alguém).

Por fim, em relação ao exercício da atribuição típica de elaborar as leis, o Estado, em regra, é irresponsável. As exceções são quando há criação de leis inconstitucionais, existência de leis de efeitos concretos e omissão a dever de legislar.

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Sobre o autor
Luciano Chacha de Rezende

Analista do Poder Judiciário de Mato Grosso do Sul. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp (LFG). Especialista em Direito Público pela mesma Instituição. Especialista em Direito Tributário pelo IBET.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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