Sumário: 1. Introdução. 2. Breves Considerações Acerca da Responsabilidade e Tipologia no Direito Privado. 3. O Processo Contratual Enquanto Justificativa de uma Responsabilidade Pré-contratual. 4. Acerca da Confiança e da Boa-Fé Objetiva. 5. A Responsabilidade Pré-contratual sob o Prisma do Direito do Consumidor. 6. A Fase de Negociação e os Deveres dos Possíveis Contratantes. 7. Os Deveres Específicos na Fase da Oferta. 8. Disposições Finais. 9. Bibliografia. 10. Notas
1. INTRODUÇÃO
No Brasil, há um certo tempo, ingressou-se na justiça com uma ação a respeito da publicidade de um aparelho de TV estéreo, o primeiro no país, na qual se veiculavam as vantagens para o consumidor em sua obtenção. Na exibição, não foi devidamente informado que a qualidade de som estéreo dependeria da aquisição de outra peça específica, além do aludido aparelho. Casos como esse são vislumbrados ordinariamente e exibem a regra da posição de hipossuficiência do consumidor nas relações consumeristas, especificamente nesse caso quanto à obtenção de informação clara e completa sobre o produto que se deseja adquirir.
Com a complexificação de produtos e serviços, a incompreensibilidade para o consumidor cresce em relação àqueles juntamente com sua posição de fragilidade, dando legitimidade à obrigação de informar coerentemente, corolário da regra de conduta objetiva infra-analisada.Aquele que fabrica ou disponibiliza à venda um produto tem o dever de indicar o seu modo de emprego e como utilizá-lo corretamente, assim como alertar para possíveis "contra-indicações" do bem ou serviço.
Ainda, de se inolvidar emergirem princípios outros que são bases dos apontamentos expostos neste estudo, quais sejam, o dever de informar o consumidor por parte do fabricante, o dever de não abusar etc.
A ratio de tais deveres é centrada no princípio da boa-fé entre as partes, exigida igualmente antes, durante e após a relação entre fabricante-prestador e consumidor. Através da informação, deve-se evitar danos supervenientes ao que adquire, exibindo uma nota hierarquicamente superior da prevenção quanto à reparação, ou seja, atualmente existe como que um mecanismo preventivo a proteger o hipossuficiente e que é preferível à reparação pela situação danosa que se lhe cause.
De tal maneira, fica obrigado o prestador ou fornecedor a informar de modo manifesto e mais claro possível, com dados exatos, verazes e completos sobre quantidade, qualidade, preço, composição, dentre outros, a fim de que qualquer indivíduo de mediana inteligência possa ser capaz de optar pela concordância ou não, conscientemente, de ingressar no vínculo negocial ou mesmo iniciar sua entabulação.
Exatamente do não cumprimento da norma de boa-fé, como aqui em comento, nas fases da relação pactuada é que surge a possibilidade de incidir responsabilidade, como castigo, sobre o agente obrigado a atuar de forma a não vulnerar as máximas legais e sociais. Para o caso de a improcedência comportamental sobrevir no momento de iminência contratual, ou seja, por ocasião de conhecimento e tratativas por parte do consumidor/contratante acerca do produto ou serviço, há a incidência da responsabilidade pré-contratual subseqüente à omissão ou mascaramento da informação, falta de diligência ou mesmo má-fé da outra parte.
Nesta perspectiva preliminar, propomos o presente estudo.
2. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA RESPONSABILIDADE E TIPOLOGIA NO DIREITO PRIVADO
Devidamente inspirado nos anseios de justiça do ser humano, emerge o senso de responsabilização de um agente por um dano que este tenha provocado ou cujo resultado lhe seja de alguma forma imputado, em face de outrem, a quem logicamente será devida a compensação ou ressarcimento. A tradição traz à existência o princípio clássico "In lex Aquilia et levissima culpa venit" segundo o qual, desde que haja a culpa, o agente vincula-se a indenizar a vítima, não importando o grau deste elemento subjetivo.
Entende-se, subseqüentemente, responsabilidade como obrigação que vincula um sujeito perante outro, em razão de um prejuízo causado, atribuído ao responsavelmente vinculado por fato próprio, ou de pessoas ou coisas que daquele exalam dependência.
A priori, necessária apresenta-se a tipologia no Direito Privado atentando para as seguintes distinções.
A dicotomia responsabilidade civil x responsabilidade penal é a primeira das propostas no presente estudo. É fato que nem sempre existiu tal distinção como se observa em tempos de hoje. No Império Romano, não havia diversidade entre uma e outra espécie de responsabilidade; "tudo, inclusive a compensação pecuniária, não passava de uma pena imposta ao causador do dano". [1]
Hodiernamente, a distinção surge e alerta para o fato de a ação ou omissão de um determinado agente acarretar a imposição de responsabilidade civil ou penal, isoladamente, ou ambas concomitantes.
Enquanto a responsabilidade penal faz-se agir devido à imposição de norma de direito público e o interesse eminentemente lesado é o da coletividade, tendendo à punição (forma mais grave de reprimenda), a responsabilidade civil sobrevém à ocorrência de ultraje a interesse privado, curvando-se à reparação ou compensação do evento danoso. Nessa espécie de responsabilidade, não é o réu senão a vítima que enfrenta entidades poderosas, como multinacionais ou o próprio Estado [2]. Além disso, qualquer ação ou omissão pode ser estopim para detonar a responsabilidade civil, a despeito da penal na qual a tipicidade é um dos requisitos genéricos e basilares. Finalmente, quanto à imputação penal, a culpabilidade é menos ampla que na civil, segundo aquele princípio (In lege Aquilia et levissima culpa venit), pois que a nota é de pessoalidade e intransferibilidade, tendo sua efetuação, em último caso, com a privação de liberdade.
Momentos há em que o não cumprimento do dever por parte do agente causador de dano é gerado de um inadimplemento de avença entre os componentes da relação, e há casos nos quais a infração de um dever legal acarreta incidência de responsabilidade. Nas duas situações, os requisitos para imposição de responsabilidade foram atingidos, mas a origem foi diversa. Enquanto discussão acerca da gênese do dever de reparar, pode-se diferenciar outras duas espécies de responsabilidade, a saber, a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontrato, por vários alcunhada aquiliana.
O que se exibe é que, enquanto na responsabilidade contratual há o descumprimento do pactuado, tornando-se o agente danoso inadimplente, na responsabilidade extracontratual há infração de dever legal a despeito de prévio vínculo jurídico entre vítima e causador do dano. Nessa última, cumpre ao agente lesivo, qualquer que venha a ser ele, a reparação do prejuízo, enquanto dentro do campo da responsabilidade contratual o menor só se vincula assistido por seu representante legal. Ademais, na responsabilidade aquiliana a vítima possui o encargo de demonstrar a culpa do agente causador do dano, o que dificulta sua posição (diga-se de passagem); enquanto na outra espécie, demonstrado pelo credor que a prestação foi descumprida, o onus probandi converte-se para o inadimplente, que terá de evidenciar a inexistência de culpa por sua parte, ou a existência de qualquer uma das excludentes da responsabilidade, elencadas em parágrafo subseqüente.
"Maneiras diferentes de encarar a obrigação de reparar o dano". São as palavras de Sílvio Rodrigues [3] ao explicar que responsabilidade subjetiva e responsabilidade objetiva não são duas formas diferentes de responsabilidade, senão ângulos de visão de um quadro. A primeira delas, a subjetiva, tem a culpa como fundamento da responsabilidade civil, em uma clara influência da teoria clássica. Em contrapartida, a objetiva, funciona através de uma imposição legal de reparação sem culpa, ou seja, satisfaz-se somente com dano e relação de causalidade, sendo firmada na teoria do risco.
O Código Civil Brasileiro traz a teoria subjetiva, fundamentada na culpa, em sua prescrição ordinária. O art. 159 do antigo Código Civil erige dolo e culpa como fundamentos para a obrigação de reparar o dano, seguindo a tradição e a orientação estrangeira. O Código Civil de 2002 traz novel redação em vista de seu equivalente, o art. 159 da obra de 1916. Na antiga disposição há a determinação de que "aquele que viole direito ou cause prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o dano", em outros termos, a partícula disjuntiva "ou" dá margem à interpretação errônea de disposição alternativa, quando na verdade o que se quer dizer é que tanto a violação de direito como a ocorrência de dano são necessárias à indenização. O Novo Diploma corrige a disposição cambiando a partícula disjuntiva pela aditiva "e", conferindo o verdadeiro sentido da norma. Igualmente, é de importância citar que a responsabilidade objetiva também é aplicada, sendo exceção à regra e prevista nos artigos 1527 a 1529 do CC/1916, dentre outros. [4]
Em verdade, diz-se que o art. 186 e o art. 927 do Novo Código Civil são conjuntamente a correspondência ao art. 159 do atual Código com devidas alterações e melhoria de redação, corrigindo imprecisão terminológica. Também há de salientar que o Novo Código contribui com uma organização de dispositivos sobre Responsabilidade Civil, devidamente elencados nos artigos 927 usque 954, título X, Livro I, Parte Especial da nova Lei. Pela primeira vez, reúnem-se os dispostos sobre o tema responsabilidade, fazendo algumas alterações importantes e necessárias.
Apreciando-se, portanto, o codex civil brasileiro, não importa se o atual ou o de vigência finda, vislumbram-se os pressupostos para que um agente seja compelido a se responsabilizar por dano a outrem. São quatro os requisitos: ação ou omissão do agente, culpa do atuante, liame de causalidade e dano experimentado pela vítima.
O primeiro deles, a ação ou omissão do agente, refere-se tanto a um ato próprio do agente danoso como a um ato de terceiro ou de coisas, incluem-se animais, sob guarda ou proteção do mesmo. Assim, tanto o ato positivo do agente como a negativa de conduta podem ensejar imputação sobre si.
Tal referência à ação ou omissão do agente traz à baila importante distinção entre negligência e imprudência, termos em que a maioria dos autores teima confundir. No que pertine à responsabilidade pré-contratual, a negligência é a falta de informação, ou seja, a conduta negativa. Doutra feita, a imprudência é a falsidade da informação, isto é, a ação positiva. Assim, para receber quaisquer indenizações, a vítima deve provar, apesar das dificuldades de se a evidenciar, a culpa do agente, seja negligente, seja imprudente.
No século XIX, o grande jurista Rudolf von Jhering adotou verdadeiramente uma posição de vanguarda ao afirmar a existência da responsabilidade antes mesmo da formação de contrato. Segundo o ilustre, a idéia de responsabilidade pré-contratual reside na culpa. No momento da formação contratual, para Jhering, há a mesma diligência exigida no período de execução, surgindo então o famoso conceito de culpa "in contrahendo", que assim é denominada por ser contraída durante a formação do contrato em um âmbito de responsabilidade de índole contratual na sua concepção [5].
Caso deseje extinguir ou atenuar o dever de reparar dano à vítima, o agente deve fixar-se nas alegações de excludentes da responsabilidade, a saber, a culpa da vítima, fato de terceiro, o caso fortuito (ação de poderes da natureza contra os quais não se pode lutar ou impedir sua ocorrência ou suas conseqüências) e força maior (poder irresistível) e a cláusula de não indenizar. Dessa forma, por instância e como havíamos supradito, o grau de culpa da vítima pode diminuir a obrigação do agente, ou até mesmo extirpá-la (compensação). Basta que haja a análise de se a culpa da vítima foi exclusiva, razão de exclusão total da responsabilidade de reparar, ou se foi concorrente, o que ameniza a reparação de dano. Outro ponto bastante controvertido é a possibilidade, ou não, de haver entabulação acerca da cláusula de não indenizar, a qual livraria o agente do dano de qualquer reparação perante a vítima em potência, pelo fato de ela mesma havê-lo desobrigado de tal vínculo.
3. O PROCESSO CONTRATUAL ENQUANTO JUSTIFICATIVA DE UMA RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
Como já ressabiado, a responsabilidade "contratual" (entendida lato sensu como a proveniente dum vínculo não só legal) não se implementará apenas no decorrer da vigência de uma relação jurídica formalizada e tipificada dogmaticamente como contrato, pois este é apenas a materialização para fins de segurança e garantia jurídica de que ambos os sujeitos cumprirão o que fora acordado pela vontade e liberdade de cada um deles, respeitando e atendendo as expectativas do outro que tenha agido com honestidade e boa fé.
É pacífico na doutrina civilista que o contrato seria a fonte "natural" e primeira das obrigações e, por inferência lógica, das responsabilidades tipificadas como contratuais ou não-aquilianas. Mas ao se reportar à conceituação do mesmo pode-se incorrer no sutil, mas comum, equívoco de se limitar à referência a uma relação jurídica entre dois sujeitos em virtude de um objeto e estabelecendo uma vinculação formal geralmente documentada. Não há considerar tal simplicidade ao abordar o problema, particularmente dentro da perspectiva da doutrina que já permeava o Código Brasileiro de 1916, no qual contrato é tido como "negócio jurídico" caracterizado pela manifestação da vontade humana, em acordo com outra, expressa na intenção de gerar efeitos jurídicos. Não se deseja aqui entrar no mérito de discutir, por ora, a pertinência jurídica de tal apreciação, mas vale aplaudir a iniciativa de definir a partir da essência e não das partes.
Segundo Enzo Roppo [6], o contrato não seria um elemento constatável da realidade física, mas ulteriormente externado numa seqüência de atos e comportamentos humanos que caracterizariam um processo. Seus principais esteios seriam a vontade e a liberdade de contratar, sem invadir a seara da competência exclusivamente pública e respeitando os ditames jurídicos no que se refere à capacidade do agente, forma e atributos legais do objeto.
Se, por um lado, a aferição da autonomia da vontade parece de uma subjetividade filosófica incompatível com a fundamentação positiva do direito de contratar e das obrigações decorrentes do mesmo, por outro, autores como Luiz Fachin atestam que é possível se deduzir a vontade de contratar a partir de comportamentos concludentes, casos em que a pactuação não é exclusivamente expressa a partir de uma declaração de vontade dimanada a teor da linguagem, mas também de atitudes outras as quais podem-se considerar manifestações tácitas da vontade [7] subsumidas na experiência.
De fato, mesmo o silêncio, assim como qualquer comportamento que revele de modo inconteste a intenção em, de acordo com as circunstâncias vigentes, realizar e fazer executar um contrato, tem o valor jurídico de justificar a existência de obrigações não decorrentes da defesa do interesse contratual positivo, ou seja, aquele de realizar o adimplemento, mas do que se chama interesse contratual negativo referente à ofensa à confiança [8]. Quer dizer, não é imprescindível que para uma responsabilização por violação do dever de conduta constate-se a verificação de um vínculo pactuado, pois é juridicamente conveniente que não se tutele apenas o campo dogmático-contratual (referente ao conteúdo e legalidade das cláusulas), mas também as probas intenções ao negociar das pessoas concretamente envolvidas.
Isso é legítimo, pois, se o contrato possui a qualidade de em regra ser obrigatório, quem o celebra de alguma forma se preparava desde outrora para que suas cláusulas fossem passíveis de cumprimento, e esperava o mesmo empenho da outra parte. Noutras palavras, existe, desde o momento da manifestação da vontade de contratar (determinado já pela existência de comportamentos concludentes), um compromisso entre aqueles que negociam, o qual pode ser interpretado como um vínculo da mesma natureza do que enseja a imputação por um "lesionamento contratual" – de responsabilização.
Destarte, durante as negociações, cada um dos contratantes terá que zelar pela retidão, honestidade e boa fé para que uma eventual desistência de contratar não represente prejuízos financeiros ou morais injustos para a outra parte. Tal atitude, como é cediço, viabiliza a confiança mútua entre os que contratam, facilitando um diálogo mais fluente, primordial ao equilíbrio da relação e se converte na garantia jurídica de que as discussões prévias à formalização do contrato, nas quais cada um defenderá seus interesses buscando um acordo que melhor faça convergir as vontades em questão, não representem qualquer prejuízo.
A responsabilidade pré-contratual surge, então, como um incentivo e uma garantia à fundamentação do contrato dentro da perspectiva de zelar por sua função social. Ora, se num sentido amplíssimo qualquer relação humana tem uma determinada natureza contratual (se se é moralmente responsável pelo que se cativa), seria pouco ético, como incongruente, que o Direito não reconhecesse a responsabilidade decorrente de pré-contratações corroboradas por manifestações de vontade juridicamente relevantes que, na verdade, constituem a essência dos contratos.
Sem dúvida é bastante dialética a relação de derivação entre os conceitos de contrato, obrigação, responsabilidade e vontade. Se a princípio temos que a vontade é a fonte dos contratos, que por sua vez ensejam obrigações fundamentadoras de responsabilidade, a mesma vontade denota a existência de uma responsabilidade, ligada ao conceito de capacidade (jurídica, econômica e intencional) em assegurar o cumprimento das obrigações acerca das quais um possível contrato possa deliberar.
Portanto, vale observar o negócio jurídico, seus caracteres e efeitos como constituintes de um complexo encadeamento de manifestação de vontades e obrigações, inerente aos relacionamentos humanos que a partir de um determinado momento adquirem relevância jurídica por culminarem numa espécie de responsabilidade que antecede um encontro volitivo firmado formalmente, em virtude da possibilidade concreta de danos reais por recusa ou desistência injustificadas em contratar. Assim, vê-se que as implicações contratuais não se iniciam e encerram nos parâmetros formais de celebração e de extinção, mas possuem eflúvios que precedem e sucedem o vínculo estrita e fixadamente contratual.
4. ACERCA DA CONFIANÇA E DA BOA-FÉ OBJETIVA
Embora a boa-fé seja um princípio norteador das relações jurídicas privatísticas desde os clássicos tempos romanos (bona fides), sua modalidade objetiva deriva mais precisamente do direito germânico enquanto dever de cumprimento da palavra dada em jura.
Presente pioneiramente no Código Napoleônico em seu artigo 550, porém sem descambar em qualquer dever, a boa-fé objetiva será uma das bases da responsabilidade pré-contratual propagada a partir da jurisprudência alemã para as legislações civis de países como Portugal (CC art. 227/1 – culpa na formação do contrato), Itália (CC art. 1175 e 1337 – "regole della corretezza") e Estados Unidos (Uniforme Commercial Code Seções 1-201 e 1-203 – "on good faith") [9].
Na legislação pátria tal princípio estará evidenciado principalmente no Código de Defesa do Consumidor em seus artigos 4, III e 51, IV, bem como na Lei 10.406 de 10 de Janeiro de 2002, instituidora do Novo Código Civil, em seus artigos 112, 113, 421 e 422. Fora isso, temos apenas referências indiretas sobre as quais a jurisprudência pátria se baseia para fazer alusões interpretativas; dentre tais podem-se citar: artigo 4º da LICC, artigos 85, 109, 112, 1002, 1073, 1404, 1405, 1438, 1443 e 1444 do Código Civil de 1916, o artigo 131 inc. I do Código Comercial e o Código de Processo Civil em seu Artigo 14 inc. II [10].
De fato a maioria das referências citadas versará sobre o enfoque subjetivo da boa fé, o qual se deve diferenciar daquele presentemente tratado. Como é comum na doutrina, a boa-fé subjetiva atentaria ao animus de licitude na relação intersubjetiva enquanto, por sua vez, a boa fé objetiva seria um paradigma de comportamento esperado de um ser humano probo e escorreito. Em outras palavras, enquanto a modalidade subjetiva pode ser entendida como a intenção de agir conforme o Direito, a objetiva impõe um dever de conduta, uma norma de comportamento em acordo com padrões socialmente recomendados de idoneidade moral para não frustrar as expectativas de um outro contratante.
Ao mesmo tempo em que "cria" obrigações anexas ao contrato, evitando conflitos relacionados à violação do dever de confiança em virtude de condutas sociais que contrariem determinados deveres pré-contratuais, tratados a seguir, a boa-fé objetiva limitará o exercício abusivo dos direitos em acordo com o dever constitucional de se observar a função social do contrato [11].
Desde que os ordenamentos jurídicos evoluem da influência de um liberalismo radicalmente individualista para as moderações sociais do Estado Democrático de Direito, o dever de respeito à dignidade humana tem sido imposto em todos os âmbitos de atuação estatal: seja numa esfera legislativa, em que se buscam incluir normas definidoras de princípios sociais, seja na orientação de que o judiciário zele pelo predomínio do valor humano e pela proteção daqueles contratantes em desvantagem evidente nas negociações contratuais e freqüentemente à mercê de uma igualdade aparente nas relações obrigacionais. Isso significa que, hoje, quando já iniciado o processo contratual a partir do estabelecimento das primeiras negociações, as pessoas terão liberdade para formalizar ou não o negócio jurídico, desde que valorizando a confiança depositada pelo pólo oposto da relação dentro da perspectiva de não ser traído, ou prejudicado por negociações intencionalmente infrutíferas.
Em termos práticos, a boa fé-objetiva deve reger todo o período pré, entre e pós-contrato (dentro daquela concepção de contrato como processo, a que nos reportamos), enquanto justificadora da responsabilidade decorrente do descumprimento das obrigações conexas por ela engendradas. Particularmente, referindo-se à pré-contratação, tal princípio se aplica e desencadeia efeitos jurídicos obrigacionais quando da recusa arbitrária em contratar ou da desistência de um contrato já "entabulado".
No primeiro caso, pode-se invocar a exigência sociológica de que cada um cumpra a função inerente à atividade que escolheu exercer sem discriminações arbitrárias ou espúrias quanto ao usufrutuário dos serviços prestados, ou comprador dos bens postos à disposição do mercado. Ora, se por um lado ninguém é obrigado a vender ou a oferecer um serviço, quando se dispõe a fazê-lo, tem o dever de contratar com todo aquele que de boa índole e de plena capacidade civil e econômica o busca para tal.
Podemos citar, por exemplo, o caso de um farmacêutico que se recusasse a vender remédios a determinado desafeto seu, ou a um negro, ou a um qualquer do vulgo. Ocorre que a insistência em não efetuar o negócio contraria os fins econômicos e sociais do contrato (o suprimento de determinadas necessidades sociais versus a aferição de lucros pelos empresários), além de serem repulsivas à moral e aos bons costumes razões tão fúteis para se frustrarem as expectativas de quem deseja comprar. Sendo assim, evidencia-se a responsabilidade do comerciante em indenizar os danos decorrentes de uma eventual situação constrangedora ou vexatória para quem confiou na sua intenção de contratar e foi injustamente repelido por conveniência ou comodismo pessoal ou de terceiros.
Por sua vez, enseja também responsabilidade a desistência repentina e injustificada das primeiras negociações. Os problemas se configuram juridicamente quando a análise das circunstâncias, nas quais se encontram as preliminares contratuais, permita deduzir que ambos os negociantes possuem uma inclinação sincera e iminente à realização do contrato em questão e um dos postulantes toma a decisão arbitrária e abusiva de romper com as tratativas. Ora, dependendo do caso, a parte que confiava na realização do contrato abortado e é surpreendido pela atitude de outrem pode ser seriamente prejudicado, inclusive em termos materiais em virtude de uma série de atos preparatórios onerosos em termos de tempo e dinheiro que visavam sinceramente a possibilitar ou facilitar as negociações (viagens, documentos etc.).
Inclui-se nessa hipótese o exemplo de quem se propõe a vender um imóvel a outrem e, marcado o encontro para resolver a transferência de escrituração, desiste do negócio em virtude de uma proposta melhor ou de uma feita por amigo íntimo. O comprador originário no caso, pode ter vindo de outra cidade e preterido a possibilidade de adquirir outros imóveis além de ter acertado a entrega da moradia da qual ele era inquilino na perspectiva de se mudar para sua nova casa de acordo com os prazos definidos naquelas negociações. Não seria justo que esse comprador arcasse sozinho com os prejuízos em virtude de uma desarticulação unilateral e arbitrária do contrato pelo proprietário quando o comprometimento negocial já se encontrava adiantado.
Cabe, neste caso, a reparação pelo ocasionamento do eventus damni, uma indenização por responsabilidade pré-contratual adequada às particularidades da situação de prejuízo da vítima e capaz de reprimir a desobediência ao dever de lisura e confiabilidade a que procedeu o alienante, o qual podendo se comportar de modo objetivamente tendente à venda a um sujeito determinado recuou injustamente faltando com sua palavra ou uma sua qualquer externação convincente.
Na perspectiva da concepção do contrato como um processo, pode-se aludir aqui ao desrespeito de um compromisso de natureza análoga ao do princípio da obrigatoriedade contratual (pacta sunt servanda). Busca-se, ao invocar a boa-fé objetiva como norma de conduta, promover a garantia de que as obrigações decorrentes da manifestação de vontade por qualquer espécie de comportamento concludente terão tutela jurídica originando, pois, responsabilidade.