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A nova lei de tóxicos.

Aspectos processuais

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01/06/2003 às 00:00
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6) O Capítulo V – Da Instrução Criminal

6.1) A atuação do Ministério Público:

Este capítulo trata do início da segunda fase da persecutio criminis e não contém aquela expressão constante no começo do Capítulo IV ("crimes definidos nesta lei"), de forma que não haverá maiores discussões a respeito de sua aplicabilidade, como ocorreu em relação ao capítulo anterior.

Inicia-se por estabelecer no seu art. 37 que "recebidos os autos do inquérito policial em juízo, dar-se-á vista ao Ministério Público para, no prazo de 10 (dez) dias, adotar uma das seguintes providências:

I – requerer o arquivamento;

II – requisitar as diligências que entender necessárias; veja o art. 13, II do Código de Processo Penal.

III – oferecer denúncia, arrolar até 5 (cinco) testemunhas e requerer as demais provas que entender pertinentes; o prazo, como se lê, é de 10 dias, esteja preso ou não o indiciado, modificando-se a regra geral estabelecida no art. 46 do CPP, bem como a anterior disposição contida no art. 22 da Lei nº. 6.368/76 (3 dias). O número de testemunhas não foi alterado em relação ao antigo procedimento.

IV – deixar, justificadamente, de propor ação penal contra os agentes ou partícipes de delitos. Aqui temos uma clara mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal [37] (que já havia sido mitigado pela possibilidade da transação penal prevista no art. 76 da Lei nº. 9.099/95 [38]). Observa-se que esta hipótese difere do arquivamento, cujas regras não mudaram. Com efeito, o arquivamento pode ser requerido em razão da atipicidade do fato, extinção da punibilidade, falta de justa causa, autoria desconhecida, ausência de interesse de agir, etc, já que "o legislador não tratou expressamente das hipóteses de arquivamento, mas sim dos casos em que a ação não deve ser exercitada (art. 43)." [39] Permite-se, agora, além do arquivamento, que o Ministério Público deixe justificadamente (art. 129, VIII, in fine da Constituição Federal) de propor a ação penal, inclusive fundamentando o seu pedido em razões de política criminal. Trata-se, às escâncaras, da consagração, ainda que tímida, em nosso sistema do princípio da oportunidade antes apenas presente nas ações penais de iniciativa privada [40]. É uma excelente inovação, pois, decididamente, o princípio da obrigatoriedade (ou legalidade) da ação penal está em franca decadência nos sistemas modernos.

Assim, por exemplo, caso o indiciado tenha colaborado com as investigações, fazendo jus ao sobrestamento do inquérito policial, ao final do prazo acordado, pode o Ministério Público deixar de oferecer a denúncia em relação a ele, acusando os demais autores cujas participações puderam ser efetivamente esclarecidas com a colaboração processual deste primeiro indiciado. Pode igualmente deixar de ser oferecida a denúncia atendendo às circunstâncias do fato, à personalidade do indiciado, à insignificância de sua participação no crime, ou à condição de que o agente, ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada por peritos (estas últimas hipóteses constavam do caput do art. 32, mas podem servir perfeitamente de exemplos, pois o veto ocorreu exclusivamente em razão da possibilidade que existia do defensor requerer o arquivamento do inquérito policial, o que, realmente, contrariava o disposto no art. 129, I da Constituição Federal). Se o Juiz discordar desta opção do Ministério Público poderá encaminhar os autos ao Procurador-Geral de Justiça, na forma do art. 28 do CPP, usando-se a analogia.

O § 1º. deste artigo estabelece que "requerido o arquivamento do inquérito pelo representante do Ministério Público, mediante fundamentação, os autos serão conclusos à autoridade judiciária." Repita-se: aqui é o caso do tradicional arquivamento, já sistematizado, ainda que implicitamente, em nosso código processual. Não é, portanto, a hipótese do inciso IV, acima referido.

Se o Juiz "discordar das razões do representante do Ministério Público para o arquivamento do inquérito fará remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, mediante decisão fundamentada", tal como é hoje [41]. Com a mesma redação do atual art. 28 do CPP, o § 3º. determina que "o Procurador-Geral de Justiça oferecerá denúncia ou designará outro membro do Ministério Público para apresentá-la ou, se entender incabível a denúncia, ratificará a proposta de arquivamento, que, nesse caso, não poderá ser recusada pela autoridade judiciária."

6.2) As infrações de menor potencial ofensivo:

Observa-se que com o advento da Lei nº. 10.259/01, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo restou ampliado, fazendo com que alguns dos tipos penais elencados na Lei nº. 6.368/76 passassem, desde então, a ser considerados crimes de menor potencial ofensivo, cuja competência para o julgamento é indiscutivelmente dos Juizados Especiais Criminais, afastando-se, inclusive, o procedimento especial da nova Lei de Tóxicos. Neste caso, deverá ser tentada, antes da denúncia, a transação penal [42]. Dos seis crimes tipificados na Lei nº. 6.368/76 dois deles são de menor potencial ofensivo (arts. 15 e 16, sendo que o do art. 17 restou inaplicável, em razão da revogação do art. 26 da lei), salvo se houver alguma causa de aumento de pena que faça aumentar a pena máxima em abstrato (ex.: art. 18). [43] Os arts. 12, 13 e 14 trazem infrações mais graves.

Portanto, tratando-se de crimes de menor potencial ofensivo, e tendo em vista que a competência para o respectivo processo é dos Juizados Especiais Criminais (art. 98, I da Constituição), indeclinável que em tais casos haverá, ao invés de inquérito policial, um termo circunstanciado, impossibilitando-se a lavratura do auto de prisão em flagrante (art. 69 da Lei nº. 9.099/95). [44]

6.3)

A resposta preliminar:

Sendo o caso de oferecimento de denúncia, "o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandato (sic) aos autos ou da primeira publicação do edital de citação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso."

Aqui temos uma primeira disposição absolutamente salutar, já prevista em nosso ordenamento jurídico (art. 514 do CPP, art. 4º. da Lei n. 8.038/90, art. 43, § 1º. da Lei de Imprensa e art. 81 da Lei dos Juizados Especiais Criminais, além do art. 395 do Projeto de Lei nº. 4.201/01 [45]). Temos, efetivamente, uma defesa prévia, anterior ao recebimento da peça acusatória, dando-se oportunidade ao denunciado de contrariar a imputação feita pelo Ministério Público, rechaçando-a e tentando obstaculizar a instauração da ação penal.

O dispositivo determina desde logo que se efetive a citação do denunciado, ainda que não se possa falar, nesta fase, em acusado ou processo. Melhor seria que se determinasse a notificação do denunciado. Após o recebimento da denúncia, então, teríamos a citação do acusado ou réu. Renato de Oliveira Furtado, atento a esta impropriedade técnica, assevera que a "citação não pode ser confundida com notificação e não é possível se falar já em citação quando a denúncia nem mesmo foi ainda recebida." [46]

A citação poderá ser feita por edital, evidentemente que nas hipóteses dos arts. 361, 362 e 363 do código processual. A resposta deve ser dada em 10 dias.

Esta resposta preliminar consiste, na forma do § 1º., na defesa prévia propriamente dita, bem como na argüição de exceções, podendo o denunciado "argüir preliminares e invocar todas as razões de defesa, oferecer documentos e justificações, especificar as provas que pretende produzir e arrolar testemunhas." Já as "exceções serão processadas em apartado, nos termos dos arts. 95 a 113 do Código de Processo Penal." Como ensina José Frederico Marques, nesta hipótese "estabelece-se um contraditório prévio, para que o Juiz profira, com o despacho liminar, decisão semelhante ao judicium accusationis." [47] O denunciado poderá argüir em sua defesa qualquer matéria, seja de natureza estritamente processual (ausência de pressupostos processuais ou de condições da ação, por exemplo), como adentrar o próprio mérito da acusação, inclusive postulando a produção de provas que serão realizadas a critério do Juiz, como permite o art. 38, § 5º. Evidentemente que deve ser dada a esta disposição (art. 38, § 5º.) uma correta interpretação, a fim de que não se lhe restrinja o alcance (prejudicando a defesa e o juízo de admissibilidade a ser feito pelo Magistrado), nem, tampouco, elasteça-se de uma tal forma o seu alcance que se permita uma verdadeira antecipação da instrução criminal.

Atente-se que será nesta resposta prévia que o denunciado deverá, sob pena de preclusão, arrolar as suas cinco testemunhas.

Esta resposta é obrigatória e deverá ser necessariamente subscrita por um advogado. Neste sentido, dispõe o § 3º. que se "a resposta não for apresentada no prazo, o Juiz nomeará defensor para oferecê-la em 10 (dez) dias, concedendo-lhe vista dos autos no ato de nomeação." Esta observação é válida para os processos pendentes cuja peça acusatória ainda não foi recebida, conforme já vêm decidindo os nossos Tribunais:

"Habeas Corpus – Entorpecente – Denúncia recebida – Inobservância do disposto no art. 38, caput da Lei nº. 10.409/02 – Nulidade – Infringência ao princípio da ampla defesa – Ordem parcialmente concedida, para anular o processo criminal ab initio, impondo-se observar o rito especial da lei em vigência. A inobservância da regra prevista no art. 38 da nova lei de tóxicos impõe seja declarado nulo ex radice o procedimento, por importar óbvia violação do direito constitucional à ampla defesa." (TAPR, HC 206.389-4, 4ª. CCrim, Rel. Juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo, DJ de 13/09/2002).

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por sua 4ª. Câmara Criminal, em 10/09/02, também assim o entendeu, concedendo habeas corpus e anulando um processo criminal a partir da citação (HC nº. 390.665.3/6, Rel. Des. Hélio de Freitas).

Entendemos, inclusive, tratar-se de uma nulidade absoluta, ainda que não haja processo instaurado. Observa-se que em relação ao art. 514 do Código de Processo Penal (que contém disposição idêntica), a jurisprudência, apesar de vacilante, já decidiu, inclusive o Supremo Tribunal Federal:

"Art. 514 do CPP. Formalidade da resposta por escrito em crime afiançável. Nulidade alegada oportunamente e, como tal, irrecusável, causando a recusa prejuízo à parte e ferindo o princípio fundamental da ampla defesa." (RT 601/409).

"Art. 514 do CPP. Falta de notificação do acusado para responder, por escrito, em caso de crime afiançável, apresentada a denúncia. Relevância da falta, importando nulidade d processo, porque atinge o princípio fundamental da ampla defesa. Evidência do prejuízo." (RT 572/412).

O Superior Tribunal de Justiça da mesma forma:

"Recurso de habeas corpus. Crime de responsabilidade de funcionário público. Sua notificação para apresentar defesa preliminar (art. 514, CPP). Omissão. Causa de nulidade absoluta e insanável do processo. Ofensa à Constituição Federal (art. 5º., LV). (...) Nos presentes autos, conheceu-se do recurso e deu-se-lhe provimento, para se anular o processo criminal a que respondeu o paciente, pelo crime do art. 317 do CP, a partir do recebimento da denúncia (inclusive), a fim de que se cumpra o estabelecido no art. 514 do CPP." (RSTJ 34/64-5).

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Se o denunciado tem advogado constituído (e o fez, por exemplo, na fase inquisitorial), além de sua "citação", deverá também ser notificado este profissional contratado (afinal de contas, como se sabe, a ampla defesa inclui, além da autodefesa, a chamada defesa técnica ou processual [48]). A notificação deste advogado constituído obedecerá ao art. 370 do CPP. Ainda nesta hipótese, não sendo apresentada a defesa preliminar pelo profissional contratado (e, possivelmente desidioso), urge que se cumpra disposto no art. 38, § 3º., ou seja, nomeie-se um defensor dativo para o mister. Neste ponto, discordamos de Renato de Oliveira Furtado que entende, nesta hipótese, nada possa ser feito, pois "por força do ´foro de eleição´ do réu, que é uma das mais vigorosas colunas do instituto da ampla defesa, a nomeação de outro defensor que não o escolhido do réu feriria tal princípio." Pergunta-se: qual o prejuízo que poderia advir desta resposta elaborada pelo defensor nomeado. Por mais singelo que seja o trabalho, não representará prejuízo maior que a falta absoluta e material da defesa escrita. Preferimos, data venia, privilegiar a defesa em sua acepção mais ampla, até porque não teríamos como distinguir uma (estranha) opção defensiva de uma desídia profissional.

Após esta defesa inicial, terá vista dos autos, mais uma vez, o Ministério Público, no prazo de 5 dias. Esta deferência ao órgão acusatório parece-nos ferir o princípio do contraditório, pois permite a uma das partes que se pronuncie duas vezes (na denúncia e nesta réplica), ferindo a paridade de armas própria do contraditório. Melhor seria que a disposição repetisse o art. 5º. da Lei nº. 8.038/90 (que regula o procedimento nas ações penais originárias): "se, com a resposta, forem apresentados novos documentos, será intimada a parte contrária para sobre eles se manifestar, no prazo de cinco dias."

Também em cinco dias deve ser proferida a respectiva decisão, não recebendo, rejeitando ou aceitando a denúncia. Se não se sentir suficientemente preparado, do ponto de vista probatório, para proferir esta decisão, o Juiz, "se entender imprescindível, determinará a realização de diligências, com prazo máximo de 10 (dez) dias." Veja-se o que dissemos acima a respeito desta última disposição contida no art. 38, § 5º.

6.4) O interrogatório:

Como vimos acima, a lei determina que o denunciado seja interrogado em 30 dias se estiver solto e em 5 dias se estiver preso. Ocorre que no art. 41 está previsto também o interrogatório do acusado, que será realizado na audiência de instrução e julgamento após a ouvida das testemunhas. Teríamos, assim, dois interrogatórios, sendo o primeiro antes mesmo da defesa preliminar (tratando-se de indiciado preso) e mesmo da instauração da ação penal. Um interrogatório judicial sem processo, portanto. Haveria, assim, dois interrogatórios judiciais (feito pelo Juiz), além daquele já realizado na Delegacia de Polícia? Cremos que não. Salvo uma justificável necessidade, basta um interrogatório em Juízo, ressalvando a possibilidade legal de a qualquer momento o Juiz reinterrogar o acusado, mesmo em fase recursal (arts. 185, 502, parágrafo único e 616, todos do CPP).

Para nós, a melhor interpretação que se pode dar a este dispositivo é que a lei exige apenas aquele interrogatório que será realizado na audiência de instrução e julgamento. Qual a necessidade deste que seria um primeiro interrogatório? Concordamos com Renato Flávio Marcão ao dizer "que a parte final do art. 38, caput não reúne condições de aplicabilidade", não devendo ser designada data para este que seria um primeiro interrogatório, aguardando-se "o momento do art. 40, quando então, recebendo a denúncia, designará data para a audiência em que se procederá ao interrogatório, instrução e julgamento, o que me parece mais adequado, considerando, inclusive, o disposto no art. 41 do mesmo Diploma Legal." [49] Aliás, é este autor quem observa que o novo projeto de lei em trâmite no Congresso (referido na introdução a este trabalho) exclui expressamente este primeiro interrogatório, deixando apenas o segundo, já na audiência de instrução e julgamento, o que dá a entender o equívoco laborado pelo legislador de agora. [50]

Há indiscutivelmente uma contradição entre os arts. 38 e 41 e em razão disto preferimos adotar aquele posicionamento, ou seja, a realização de apenas um interrogatório, na fase processual (ressalvado, evidentemente o interrogatório policial [51]), não advindo daí nenhum prejuízo, até porque o denunciado terá a oportunidade de alegar qualquer fato em sua defesa escrita. Não faz sentido este primeiro interrogatório (tanto que abolido no projeto de lei acima referido), ainda que esteja preso o indiciado. Aliás, a prevalecer a interpretação literal, nesta hipótese de indiciado preso o interrogatório antecederia mesmo a resposta preliminar.

6.5) A aplicação da Lei nº. 9.271/96:

Determina-se a aplicação da "Lei nº 9.271/96, ao processo em que o acusado, citado pessoalmente ou por edital, ou intimado para qualquer ato processual, deixar de comparecer sem motivo justificado", o que, à primeira vista, poderia indicar a aplicação do art. 366 do CPP (suspensão do processo e do curso do prazo prescricional), ainda que a citação tenha sido pessoal e o réu não compareceu nem constituiu advogado. Não é, porém, esta a hipótese. Com efeito, a Lei nº. 9.271/96 não se restringiu a modificar tão-somente o art. 366 do Código de Processo Penal, mas o fez, também, em relação aos arts. 367 a 369. E, como se sabe, dispõe o art. 367 que "o processo seguirá sem a presença do acusado que, citado ou intimado pessoalmente para qualquer ato, deixar de comparecer sem motivo justificado, ou, no caso de mudança de residência, não comunicar o novo endereço ao juízo." Logo, em relação às regras gerais do Processo Penal brasileiro, nada mudou neste aspecto em relação ao novo procedimento, ou seja, o processo só será suspenso se o revel foi citado por edital. Se a citação foi pessoal, o julgamento ocorrerá à sua revelia. Neste sentido, é a lição de Fernando Capez e Victor Eduardo Gonçalves (idem).

6.6) A rejeição e o não recebimento da denúncia:

Além das hipóteses do art. 43 do Código de Processo Penal, "a denúncia também será rejeitada quando for manifestamente inepta, ou faltar-lhe pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal, ou quando não houver justa causa para a acusação." [52]

Pergunta-se se nestes casos, incluindo as hipóteses do art. 43, a ação penal pode ser reiniciada. Repetimos, então, a lição da doutrina mais aceita nesta matéria, segundo a qual nas hipóteses dos incisos I e II do art. 43 há uma verdadeira decisão de mérito (rejeição da denúncia) [53], fazendo coisa julgada material e, por conseguinte, impedindo renovação da demanda. No caso do terceiro inciso do referido art. 43, CPP, a denúncia pode ser oferecida mais uma vez, na forma como o permite o seu parágrafo único, acaso sanada a irregularidade.

No caso específico da nova Lei de Tóxicos, cremos que se a denúncia foi rejeitada por manifesta inépcia, o caso está definitivamente decidido, impedindo-se a reiteração da denúncia. Contrariamente, se o não recebimento se der em virtude da falta de um pressuposto processual ou de uma condição da ação que possa ser suprida, nada impedirá a renovação da peça acusatória, já agora respaldada por todos os pressupostos processuais e todas as condições da ação. Quanto ao não recebimento pela falta de justa causa [54], como se trata de carência de lastro probatório mínimo, evidente que com novas provas a ação penal poderá ser novamente iniciada.

6.7) A audiência de instrução e julgamento:

Caso seja recebida a peça acusatória [55], "o juiz designará dia e hora para a audiência de instrução e julgamento, e ordenará a intimação do acusado, do Ministério Público e, se for o caso, do assistente." Mais uma vez o legislador descurou-se da diferença entre intimação e notificação [56]. Por outro lado, como se trata de crime contra a saúde pública [57], a coletividade é o sujeito passivo da infração, podendo ser considerados prejudicados, secundariamente, e em alguns casos, as pessoas que recebem a droga para o consumo que, então, poderão se habilitar como assistentes da acusação, na forma do art. 268 do Código de Processo Penal. [58] Neste sentido, mutatis mutandis, já decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo:

"Mesmo tratando-se de delito contra a fé pública, em que o sujeito passivo é, primariamente, o Estado, secundariamente será sujeito passivo aquele em prejuízo de quem a falsidade tenha sido praticada, tendo legitimidade, pois, para figurar nos autos como assistente do Ministério Público." (RT 552/308).

Nesta audiência de instrução e julgamento, "após o interrogatório do acusado e a inquirição das testemunhas, será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz, que, em seguida, proferirá a sentença." A lei certamente descurou-se de uma tendência moderna em considerar o interrogatório também, e principalmente, como um meio de defesa, realizando-o apenas ao final da colheita de toda a prova, como o fez a Lei nº. 9.099/95 e o Projeto de Lei nº. 4.204/01 que visa a reformar o Código de Processo Penal [59].

No interrogatório, deverá o Juiz questionar o acusado sobre eventual dependência, pois continua em vigor o art. 19 e seu parágrafo único da Lei nº. 6.368/76 que se refere à incapacidade por dependência química. Aliás, no regime anterior, determinava o art. 22, § 5º. que o Juiz deveria indagar do réu "sobre eventual dependência, advertindo-o das conseqüências de suas declarações."

Se o Juiz "não se sentir habilitado a julgar de imediato a causa, ordenará que os autos lhe sejam conclusos para, no prazo de 10 (dez) dias, proferir a sentença."

Foram vetados os arts. 42 e 43 deste capítulo. Dizia o art. 43: "O réu condenado por infração dos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 não poderá apelar sem recolher-se à prisão", pois "o disposto no art. 43 do projeto fica prejudicado em face do veto ao Capítulo III."

O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República sugeriu o veto ao art. 42. Ele dispunha:

"Art. 42. O juiz, observado o disposto no art. 77 do Código Penal e as disposições contidas nesta Lei, poderá, ouvido o representante do Ministério Público, determinar a suspensão do processo, com a adoção de uma das medidas previstas no art. 21 desta Lei.

§ 1º O juiz poderá determinar, além de medidas previstas no art. 21, a sujeição do réu a tratamento médico ou psicológico, ou a internação em estabelecimento clínico ou hospitalar adequado.

§ 2º Negando-se o réu ao cumprimento de uma ou mais das medidas previstas no art. 21, ou ao tratamento recomendado, submeter-se-á à pena privativa de liberdade, cumulada ou não com penas restritivas de direitos."

Estas foram as razões do veto: "Com esse dispositivo, o Legislador objetiva estender o benefício da suspensão condicional da pena (art. 77 e segs. do Código Penal) ao condenado pela prática de qualquer dos crimes tipificados no presente projeto de lei, que tenham a pena privativa de liberdade como reprimenda básica. Na realidade, ainda que com visível e arrojada intenção de propiciar melhor e mais célere interpretação à aplicação do benefício acima, esse dispositivo também reproduz, no contexto deste diploma, o que já preconiza a legislação penal brasileira, a exemplo do disposto no art. 44, c/c arts. 45, 46 e 47 do Código Penal. Outrossim, registre-se que, antes mesmo da vinda do projeto de lei à sanção Presidencial, a redação dada ao presente artigo vem causando preocupantes desentendimentos no seio da opinião pública e das comunidades científica e jurídica, uma vez que tem induzido à associação errônea de que se refira ao simples usuário/ dependente, já contemplado no art. 20, quando, na realidade, se refere ao agente que, sendo usuário e/ou dependente, cumulativamente, tenha cometido delitos efetivamente graves, tal como o narcotráfico, por exemplo. Assim, não obstante a ausência de conflitos entre as situações que define, relativamente às normas de direito positivo em vigor, pela dúvida que suscita, já em seu nascedouro, haja vista a opinião pública ter agregado esse dispositivo à figura do simples usuário/ dependente, o que, juridicamente, não procede, sugere-se o veto ao presente artigo, fato que não impedirá a propositura do tema a que se refere em dispositivo legal futuro, com vistas ao aprimoramento de sua aplicação, conforme pretendeu o Legislador."

6.8) A inversão do ônus da prova:

Vetou-se o caput do art. 44 que estabelecia que o "juiz, a requerimento do representante do Ministério Público ou da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em 24 (vinte e quatro) horas, pode decretar, no curso do inquérito policial ou da ação penal, o seqüestro ou a indisponibilidade do produto de crime, ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática dos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18." Subsistiu, no entanto, o seu parágrafo único (mais uma alma penada...), determinando que "incumbe ao acusado, durante a instrução criminal, ou ao interessado, em incidente específico, provar a origem lícita dos bens, produtos, direitos e valores referidos neste artigo." Não existindo mais o caput, aplica-se o seu parágrafo, se for o caso, aos bens porventura usados ou adquiridos pelos autores dos crimes tipificados nos arts. 12, 13 e 14 da Lei nº. 6.368/76. Dizemos "se for o caso", pois temos aqui indiscutivelmente uma odiosa inversão do ônus da prova, o que já havia acontecido no art. 4º., § 2º. da Lei nº. 9.613/98 ("lavagem de dinheiro").

Observa-se que a ilicitude deve ser provada pelo órgão acusador, a teor, inclusive, do art. 156 do CPP, pois "à parte acusadora incumbe fornecer os necessários meios de prova para a demonstração da existência do corpus delicti e da autoria", como já ensinava o mestre José Frederico Marques [60]. No dispositivo ora comentado há uma presunção de ilicitude absolutamente estranha aos postulados constitucionais consubstanciados no princípio maior da presunção de inocência. Aliás, comentando aquele dispositivo da Lei de Lavagem de Capitais, Luiz Flávio Gomes advertia que a "sua literalidade poderia dar ensejo a uma interpretação completamente absurda e inconstitucional, além de autoritária e seriamente perigosa, e que consistiria na exigência, em todos os casos, de inversão do ônus da prova (com flagrante violação ao princípio da presunção de inocência)." Para salvá-lo (e a lição é válida para nosso estudo), o jurista propõe a seguinte interpretação: "durante o curso do processo, tendo havido apreensão ou seqüestro de bens, se o acusado, desde logo, espontaneamente (sponte sua, sublinhe-se), já comprovar sua licitude, serão liberados imediatamente, sem necessidade de se esperar a decisão final." Do contrário, diz ele, estaríamos diante de uma "inconstitucionalidade e arbitrariedade. Ninguém está autorizado a fazer ruir um princípio constitucional conquistado depois de uma luta secular." [61]

Por fim, o art. 45 estabelece que as "medidas de seqüestro e de indisponibilidade de bens ou valores serão suspensas, se a ação penal não for iniciada no prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado da data do oferecimento da denúncia." O pedido de restituição "bem ou valor não será conhecido sem o comparecimento pessoal do acusado ao juízo do feito", podendo o "juiz determinar a prática de atos necessários à conservação do produto ou bens e a guarda de valores."

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Sobre o autor
Rômulo de Andrade Moreira

Procurador-Geral de Justiça Adjunto para Assuntos Jurídicos do Ministério Público do Estado da Bahia. Foi Assessor Especial da Procuradoria Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador - UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador - UNIFACS (Curso então coordenado pelo Jurista J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e Membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (atualmente exercendo a função de Secretário). Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Integrante, por quatro vezes, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação dos Cursos JusPodivm (BA), Praetorium (MG) e IELF (SP). Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados no Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Rômulo Andrade. A nova lei de tóxicos.: Aspectos processuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4161. Acesso em: 16 jun. 2024.

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