Os filmes de horror que apresentam graus de caos social não são necessariamente novidade. Mad Max, um clássico do gênero “ação”, já na década de 1979, propõe uma leitura de mundo que vislumbraria o que a devastação ambiental/moral poderia provocar à Humanidade e seus frágeis arranjos . A diferença mais marcante, quando a referida película é comparada com o que pode ser visto nos dias atuais, parece estar na conclusão dos meios empregados.
Em Mad Max, apesar daquela polícia lembrar efetivos de Estado Militar, a luta política, mesmo assustadoramente assimétrica, era travada contra a anomia e a barbárie distópica. O “homem, lobo do homem” (Hobbes, 1983), estava à solta, em cada esquina e só havia restado uma polícia de exceção para o exercício da sobrevivência. A polícia de exceção foi o que restou do Estado, numa sociedade que se consumiu até à exaustão.
Na atualidade, a cultura do Ocidente consome vorazmente numerosas produções cinematográficas de Hollywood com a mesma tônica entrópica concebida no supracitado filme. Constata-se sem muito esforço, no entanto, que os motivos para o caos nessas obras da sétima arte, são variáveis: ora é pela propagação de um vírus que transformam os humanos em zumbis, seres monstruosos como capacidades sobre-humanas ; ora é pela dominação de máquinas dotadas de inteligência artificial altamente sofisticada e com armamento e tecnologia capazes de garantir uma nova ordem pela força; ora pela colonização da Terra por extraterrestres tecnologicamente superiores, que objetivam destruir a humanidade e se apossar dos recursos naturais da Terra; ou ainda por hecatombes naturais, em escala planetária.
Na seara dos robôs, há clássicos que devem ser (re)vistos: Eu, Robô (2004), de Isaac Asimov; e a sequência Matrix (1999, 2002 e 2003), com roteiro original dos irmãos Andy e Lena Wachowski. No primeiro, as máquinas decretam Estado de Sítio para salvar a Humanidade de si mesma. No segundo, o regime totalitário das máquinas quer a extinção da vida natural. Se nota-se a mera distopia em O Exterminador do Futuro e em Robocop (quando a exceção se desprende totalmente da ética), em Blade Runner, de 1982, observa-se, ao avesso disso, a retomada do humanismo no replicante que se recusa a matar seu caçador. Por isso, é um ícone político do cinema de ficção .
De outro modo, atualizando-se o debate, em uma pesquisa rápida, vê-se uma quantidade expressiva de trailers de filmes que serão/foram lançados somente em 2015 com a mesma temática:
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Expresso do amanhã ;
Extinção ;
Aurora ;
Sob o domínio dos robôs ;
Maze Runner .
A mudança de estratégia encaminhada por Hollywood nos últimos anos traz uma combinação velha/nova de recursos políticos próprios, inerentes, ao Estado de Exceção (Losurdo, 2004). Na verdade, concentra-se mais nos meios do que nos fins e, assim, apresenta-se o politicídio ou democídio e o despovoamento massivo. A implantação de Lei Marcial, fato corriqueiro, legitima-se sobre a base dos discursos salvacionistas: “A Lei Marcial é a segurança da própria lei e da ordem”. Não bastasse a redundância, é óbvio que se esquece de dizer que se trata da preservação da lei aplicada pelos próprios detratores do Estado de Direito, isto é, será imposta a lei que sirva aos que perpetraram o Golpe de Estado. Basta ver a história: César; Bonaparte; Federalismo nos Estados Unidos da América; cesarismo (Gramsci, 2000); Golpe de 1964 no Brasil; Estados que sofreram intervenção militar em toda a América Latina.
Então, o que há nos “novos” filmes? Há fascismo embutido aí. Mas, como dado real, deve-se pensar na relação política com o desmantelamento da natureza. Pois, a necessidade natural (guerra de todos contra todos pela água, pelo ar respirável) é convertida em Estado de Necessidade. Aliás, o Google, como máquina de busca, permite constatar que o século XXI bate recordes insuperáveis na decretação de leis políticas pautadas por necessidades naturais/sociais.
Porém, neste caso, seria cinismo, porque é a mesma indústria que promove o consumismo e que desbarata a natureza, impondo-se a necessidade generalizada da sobrevivência humana. Neste caso, haveria uma combinação de fascismo e extremo cinismo, uma vez que, de forma desbragada, usa-se do argumento do desequilíbrio ou do cataclismo natural para impor medidas restritivas de consumo aos indesejáveis – como Estado de Necessidade.
Na vida real da crise avassaladora do capitalismo, até então, a “emergência civil” (caos social gerado pela fuga da guerra e da fome) foi tratada por medidas de segurança (leia-se “Estado de Emergência”) e o resultado é que milhares de imigrantes estão confinados (presos) há mais de uma década. A Organização das Nações Unidas (ONU) parece ser mais sensível, racional , mas a crise europeia (e de resto no mundo todo) não vai facilitar a vida dos “sitiados” .
Especificamente, no caso brasileiro, o crime social gerou uma estrutura criminal que rivaliza e é capaz de impor suas regras ao Estado. O Primeiro Comando da Capital (PCC) conseguiu se organizar de forma semelhante ao aparato estatal. Há inúmeros pontos de convergência com a Razão de Estado. Em sentido conexo, os reguladores do sistema (panóptico ou) sinóptico (Bauman, 2013) apreciam sua capacidade de liderança e organização (controle e disciplina). Além disso, não é combatido porque o “acordo” de 2005/2006 rendeu-lhes o controle hegemônico do sistema prisional no estado de São Paulo. Os governos reféns têm medo de uma sublevação interna que aterrorize as ruas e o resultado é o crescimento hegemônico e financeiro de uma estrutura que os aparatos repressivos não têm interesse em admoestar .
Utiliza-se, por fim, da ideia da “solução final da natureza e da sociabilidade”, como falso argumento, para seletivamente impor Leis Marciais. A natureza é usada, cinicamente, para que o novo formato de capital de Estado promova a seleção natural entre os que podem viver na bolha de alto consumo (dentro) e os que devem ser mastigados em duras leis de exceção (fora). Enfim, a preferência por imagens aterrorizantes da “solução final” não é mera semelhança porque aqui, a “coincidência” apresentada é verossimilhança – e, por isso, você tem tudo a ver com isso.
Bibliografia
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro : Zahar, 2013.
FEST, Joachim. Hitler. 4ª ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1976.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 6ª ed. Rio de Janeiro : Edições Graal, 1986.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). Volume III, Nicolau Maquiavel II. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Col. Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1983.
LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro : UFRJ, 2004.
MARTINEZ, Vinício Carrilho. A Teoria do Estado entre os séculos XIX-XXI: do Estado ético-racional (Hegel e Weber) ao Estado de Exceção. São Paulo : Scortecci, 2015.