Desconsideração inversa da personalidade jurídica

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09/08/2015 às 21:01
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A expressão “desconsideração inversa da personalidade jurídica” é utilizada pela doutrina e jurisprudência como sendo a busca pela responsabilização da sociedade no tocante às dívidas ou aos atos praticados pelos sócios.

Sumário: 1. Introdução. 1.1 Desconsideração inversa. 1.2 A eficácia específica da personalidade jurídica. 1.3. Pressupostos essenciais para a utilização da desconsideração inversa. 1.4. Aplicação dos princípios da desconsideração da personalidade jurídica. 1.5. Efeitos da desconsideração inversa. 2. Considerações finais. 3. Bibliografia.


Introdução.

A expressão “desconsideração inversa da personalidade jurídica” é utilizada pela doutrina e jurisprudência como sendo a busca pela responsabilização da sociedade no tocante às dívidas ou aos atos praticados pelos sócios, utilizando-se par a isto, a quebra da autonomia patrimonial.

A desconsideração inversa da pessoa jurídica é um desmembramento da teoria da desconsideração, cuja sede normativa precípua é o art. 50 do CC/2002.

Nesse norte, Fábio Ulhôa Coelho define da seguinte forma: “desconsideração inversa é o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”.

Na desconsideração inversa, a responsabilidade ocorre no sentido oposto, isto é, os bens da sociedade respondem por atos praticados pelos sócios.

Desta forma a personalidade jurídica estaria servindo como escudo para a defesa do executado frente à execuções que lhe era movida.

Nesse caso, serão aplicados os mesmos princípios da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

A compreensão da desconsideração inversa tem dois pressupostos:

  1. A personalidade jurídica, ou mais propriamente a eficácia desta na criação de sujeitos de direitos e patrimônios autônomos e distintos de seus sócios.
  2. A desconsideração da personificação jurídica, ou a limitação da eficácia específica da personificação.

A eficácia específica da pessoa jurídica são seus efeitos jurídicos de criar um centro autônomo de imputação de direitos e deveres, passando a ter personalidade, capacidade e patrimônio distintos de seus membros. A desconsideração tem um duplo papel, como uma forma de se atacar os efeitos da personalidade jurídica sem se prejudicar sua existência e continuidade e também como mecanismo de inibição de abuso e fraude desta.

A desconsideração inversa foi introduzida no Brasil dentro do grupo de casos que motivaram sua justificação teórica. Já sua incorporação na jurisprudência sinalizou uma ampliação ainda maior de sua aplicação, efeitos e escopo funcional, firmando sua natureza de princípio jurídico, não de regra como geralmente atribuído à desconsideração direta.

A aplicação da desconsideração inversa quando aplicada nos tribunais, assim denotou incidência sobre uma grande quantidade de situações que não mais guardavam identidade entre si e somente seguiam uma vaga lógica funcional de inibição do uso disfuncional da pessoa jurídica.


Desconsideração inversa.

A par da construção tradicional da desconsideração da personalidade jurídica, com responsabilização de sócios ou administradores por obrigações da sociedade vem se discutindo a possibilidade de aplicação da desconsideração no sentido inverso, isto é, “o afastamento do princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio”.

Em outras palavras, - “a desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para contrariamente ao que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.

Com efeito é possível que o sócio use uma pessoa jurídica para esconder o seu patrimônio pessoal dos credores, transferindo-o por inteiro à pessoa jurídica e evitando com isso o acesso dos credores a seus bens. Em muito desses casos será possível visualizar a fraude (teoria maior subjetiva), ou a confusão patrimonial (teoria maior objetiva) e, em razão disso, vem sendo admitida a desconsideração inversa para responsabilizar a sociedade por obrigações pessoais dos sócios. O mesmo raciocínio da desconsideração tradicional é usado aqui para evitar o mau uso da pessoa jurídica.

É interessante expor que a desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ser aplicada no Direito de Família.

Caracteriza-se a desconsideração inversa quando é afastado o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio, como, por exemplo, na hipótese de um dos cônjuges, ao adquirir bens de maior valor, registrá-los em nome de pessoa jurídica sob o seu controle, para livrá-los da partilha a ser realizada nos autos da separação judicial. Ao se desconsiderar a autonomia patrimonial, será possível responsabilizar a pessoa jurídica pelo devido ao ex-cônjuge do sócio.

Relativamente à desconsideração da personalidade jurídica em sentido inverso, quem primeiramente tratou do tema foi o Prof. Fábio Konder Comparato, trazendo com prodigiosa propriedade a lição que:

“137. Aliás, essa desconsideração da personalidade jurídica não atua apenas no sentido da responsabilidade do controlador por dívidas da sociedade controlada, mas também em sentido inverso, ou seja, no da responsabilidade desta última por atos do seu controlador. A jurisprudência americana, por exemplo, já firmou o princípio de que os contratos celebrados pelo sócio único, ou pelo acionista largamente majoritário, em benefício da companhia, mesmo quando não foi a sociedade formalmente parte no negócio, obrigam o patrimônio social, uma vez demonstrada a confusão patrimonial de facto”.

Impõe-se, ainda, rechaçar que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica inversa só pode ser aplicada se for demonstrada a transferência de bens do patrimônio particular do sócio controlador-devedor para a pessoa jurídica. Isto porque, frustradas as diligências realizadas, exsurge evidente que, na condição de “dono” ou “sócio de fato” ou “controlador” das sociedades, seja demonstrado a retira da caixa, mediante expedientes lícitos ou ilícitos, formais ou informais, o necessário para a sua manutenção e de sua família. Ao lado disso, revela-se imprescindível lançar mão dos entendimentos jurisprudenciais emanados pelos Tribunais de Justiça, os quais são utilizados como verdadeiro sedimento, porquanto, ao se manifestarem sobre situações concretas, amoldam as normas genéricas e abstratas, bem como traçam linhas diretivas a serem observadas. Assim, colhem-se os seguintes:

“Ementa: Agravo de Instrumento. Desconsideração da Personalidade Jurídica. Possibilidade. Assim, diante das inúmeras e infrutíferas tentativas de localizar bens em nome dos executados capazes de garantir o juízo executório, bem como da confusão havida entre o patrimônio de seu sócio majoritário, ao lado de sua esposa, e da sociedade que o mesmo integra, possível afigura-se a desconsideração inversa da personalidade jurídica determinada na origem.  Em decisão monocrática, dou provimento ao agravo de instrumento.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Vigésima Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº. 70041914102/ Rel. Desembargador Glênio José Wasserstein Hekman/ Julgado em 04.04.2011)  (destaquei)

“Ementa: Apelação Cível. Locação. Embargos de Terceiros. Penhora. Desconsideração de Personalidade Jurídica Reconhecida, na forma inversa. Existência de dados fáticos que autorizam a incidência do instituto. Possibilidade da penhora de bens da empresa autorizada diante das circunstâncias excepcionais comprovadas nos autos e já destacadas pela sentença, que vai confirmada por seus fundamentos. APELO IMPROVIDO.” (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul - Décima Sexta Câmara Cível/ Apelação Cível Nº 70017992256/ Rel. Desembargadora Helena Ruppenthal Cunha/ Julgado em 07.03.2007).


A eficácia específica da personalidade jurídica.

A pessoa jurídica é instituto jurídico que cria um sujeito autônomo com esferas patrimoniais e subjetivas distintas e estanques da de seus membros. Dentro desta lógica temos que um dos efeitos da personalidade jurídica é a total independência patrimonial e individual desta em relação ao sócio. Este efeito foi central à noção da pessoa jurídica e por largo tempo se mostrou intocável. A idéia foi construída analogicamente à pessoa natural. Como sistema jurídico era construído sobre a noção individualista de esferas pessoais e patrimoniais autônomas, estanques e separadas da pessoa natural, a personalidade jurídica foi construída para igualmente se beneficiar destes efeito.

A criação da desconsideração inversa, tal como a desconsideração direta, foi efetivada por uma lógica funcional da pessoa jurídica. A tese de José Lamartine de Oliveira parte de seu trabalho clássico sobre a “dupla crise” da pessoa jurídica é que a crise funcional ocorre devido à possibilidade do uso antijurídico, seja por fraude ou abuso.

Para Lamartine a desconsideração é o principal sintoma da crise funcional denotando o descompasso axiológico entre o uso da personalidade jurídica e os valores do ordenamento. A desconsideração foi então situada como mecanismo de coibição do abuso da personalidade jurídica e seu uso além das finalidades admitidas pelo Direito.

Criada como forma de relativizar esta separação e autonomia absoluta da personalidade jurídica, a desconsideração incide sobre o efeito da autonomia e separação patrimonial da pessoa jurídica, estendendo a responsabilidade para os sócios. A desconsideração entretanto teve seu escopo progressivamente ampliado, em consonância coma ampliação da crise funcional da pessoa jurídica.

Tendo como pressuposto que a desconsideração é uma limitação da eficácia da personalidade jurídica desconsiderando a esfera patrimonial autônoma da sociedade para atingir a do sócio; a desconsideração inversa seria a desconsideração dos efeitos da autonomia patrimonial derivados não da personalidade jurídica da sociedade, mas sim da do sócio. A esfera patrimonial desconsiderada em prol de outra é da pessoa do sócio, não da sociedade responsabilizada (que em verdade tem sua esfera patrimonial afirmada dentro da obrigação).

Enquanto os sócios podem ser pessoas jurídicas, os primeiros casos de desconsideração inversa se impuseram sobre sócios que eram pessoas naturais. Isto coloca a teoria inversa da desconsideração na assimétrica posição de muitas vezes limitar os efeitos da personalidade natural, quando inserida em contexto societário. Criada através de uma interpretação teleológica focada nos efeitos de extensão da responsabilidade da desconsideração, a desconsideração inversa passa a agir sistematicamente através de uma pouco confortável lógica de limitação dos efeitos patrimoniais da personalidade natural.

Essa ampliação do escopo da aplicação delimitados na desconsideração inversa, e os efeitos da pessoa jurídica enquanto separação patrimonial entre sociedade e sócios, é repetida na jurisprudência ampliando-se o uso da desconsideração da inversa dos casos de uso abusivo ou ilícito da personalidade jurídica para uma gama ampla de situações, muitas vezes correspondentes a outros institutos.


Pressupostos essenciais para a utilização da desconsideração inversa.

Para ser aplicada, a desconsideração inversa da personalidade jurídica deverá restar caracterizado o desvio de bens, a fraude ou abuso de direito por parte dos sócios que se utilizam da personalidade jurídica para transferir ou esconder bens, prejudicando assim os credores, ou ainda, em casos de separação judicial, onde se verifica o esvaziamento do patrimônio do casal como forma de burlar a meação.

Diante disso, para que haja a desconsideração inversa da personalidade jurídica, o ordenamento jurídico impõe que seja observado a existência dos pressupostos essenciais para a aplicação desta modalidade de desconsideração que usualmente vem a ser empregada pelos julgadores no Direito de Família.

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Para isso, será aplicada a desconsideração inversa na esfera familiar quando o cônjuge empresário esconde-se sob as vestes da pessoa jurídica, vislumbrando fraude à partilha matrimonial e, por conseqüência, encobrir a capacidade econômica e financeira da pessoa física, equiparando o sócio à sociedade.

Outra hipótese para a desconsideração inversa da personalidade jurídica pode ser verificada nos casos em que o sócio obtém o absoluto controle dos bens da sociedade, ou seja, é constituída uma sociedade para a guarnição do ativo, ficando o passivo na responsabilidade da pessoa do sócio. Diante disso, terceiros que contratam o sócio poderão deduzir de acordo com a teoria da aparência, que por residir em endereço luxuoso e possuir carros de alto valor, o sócio seja pessoa merecedora de crédito, porém, estes bens, que aparentemente poderiam ser de sua propriedade, pertencem à pessoa jurídica.


Aplicação dos princípios da desconsideração da personalidade jurídica.

Para haver a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica serão observados a existência de fraude, simulação ou abuso na utilização da personalidade jurídica por parte dos sócios.

Diante do exposto, a desconsideração inversa vem sendo usualmente aplicada no âmbito do Direito de Família. Para que esta seja utilizada pelo magistrado, deverão estar presentes os pressupostos essenciais da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que por sua vez, também são da desconsideração inversa.

Nesse contexto, Rolf Madaleno (1998, p. 27), acerca da desconsideração inversa no Direito de Família e a aplicação dos princípios da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, afirma:

“É larga e procedente a sua aplicação no processo familiar, principalmente frente à constatação nas disputas matrimoniais, do cônjuge empresário esconder-se sob as vestes da sociedade, para a qual faz despejar, se não todo, o rol mais significativo de seus bens (...) quando o marido transfere para a sua empresa o rol significativo de seus bens matrimoniais, sentença final de cunho declaratório haverá de desconsiderar esse negócio específico, flagrada a fraude ou o abuso, havendo, em conseqüência, como matrimoniais esses bens, para ordenar a sua partilha no ventre da separação judicial, na fase destinada a sua divisão, já considerados comuns e comunicáveis”.

Dessa forma, a pessoa jurídica e os sócios poderão responder por uso abusivo, simulado ou fraudulento da sociedade, tanto diretamente como inversamente, podendo ser atingidos os bens sociais, no tocante à responsabilização do sócio, ou do cônjuge empresário, no caso do Direito de Família, em que haverá a responsabilização no tocante aos bens matrimoniais.

Nesse mesmo sentido, Fábio Ulhôa Coelho (2014, p. 44-45) ao comentar acerca da desconsideração inversa afirma:

“Trata-se de responsabilizar a sociedade por dívidas do sócio, caso este, para perpetrar fraudes a seus próprios credores, transfere seus bens para a empresa, continuando a fruí-los livremente (...) A desconsideração inversa pode vir a ser medida de extrema utilidade em matéria de Direito de Família, considerando a possibilidade de um dos cônjuges transferir bens de valor para a empresa que integre, com o escopo de fraudar futura partilha”.

A aplicação da desconsideração inversa, da mesma forma que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, não visa a anulação da personalidade jurídica, mas apenas a declaração da ineficácia para determinado ato.

Faz-se necessário expor que o princípio da separação da personalidade jurídica da sociedade e dos sócios, ou princípio da autonomia da vontade, não será destruído, atingindo apenas o episódico sem atingir a validade do ato constitutivo da sociedade.

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