Análise de uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em torno do trabalho escravo contemporâneo, sob a ótica dos direitos fundamentais

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12/08/2015 às 02:00
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Análise de uma jurisprudência do STF acerca de trabalho escravo vinculada à perspectiva dos direitos fundamentais, com um resumo em torno do surgimento e do desenvolvimento destes (com foco na relação público-privado).

1 Introdução

Pretende-se, por meio deste trabalho, concatenar raciocínios em torno do trabalho escravo no Brasil, a partir da relação surgida entre público e privado e seus desdobramentos quanto aos paradigmas estatais e ao surgimento do constitucionalismo e dos direitos fundamentais. Com esse ponto de partida, intenta-se examinar um acórdão do Supremo Tribunal Federal, que traz à tona um caso de trabalho escravo rural, sob a ótica das garantias fundamentais, bem como dos prováveis fatos e causas da utilização da mão de obra escrava. Por fim, almeja a elucidação em torno da escravidão contemporânea urbana, estampada nas regiões metropolitanas do Sudeste do país, com redução de chineses à condição análoga a escravos.


2 Da Grécia antiga até o Estado Democrático de Direito

A Grécia antiga, especialmente a Atenas democrática, deu origem – por meio da disjunção de política, governo e religião – à diferenciação entre público-privado, essencial ao desabrochamento dos direitos fundamentais, mais a frente, no lapso histórico. O espaço privado representava a luta pela sobrevivência, enquanto o espaço público permitia a libertação do cidadão, onde os homens livres (homens, atenienses) revelavam suas potencialidades.

O Império Romano, por sua vez, não experimentou a democracia, até pela incompatibilidade entre um modelo popular e a centralização do poder político. No entanto, o Império Romano foi bastante habilidoso em absorver elementos culturais das civilizações dominadas, o que permitiu que mantivesse uma centralidade concisa do poder político e uma universalidade, cuja herdeira principal foi a Igreja Católica.

Tal universalidade formou, na sociedade medieval, a sua cosmovisão e permitiu explicar a existência humana no mundo, a partir do reforço espiritual das posições sociais imutáveis (definidas pelo nascimento) e de origem celeste, numa conjuntura trifuncional. Dilui-se, portanto, o poder de autodeterminação do indivíduo.

Os séculos XVI e XVII são marcados pela dessacralização teórica, com deslocamento do centro das indagações para o indivíduo, por meio do desenvolvimento científico e do renascentismo. Já se observa os primórdios da doutrina liberal, que superaria o Absolutismo no final do século XVIII. Até mesmo a teoria jurídica revela essa propensão, com o jusnaturalismo racional, que surge com a ruptura da crença – antes única – espiritual do Ocidente, de modo que a doutrina cristã não era mais apta a justificar o Direito.

O jusnaturalismo racional é um direito natural secularizado, em que o homem está presente no mundo independentemente da existência divina. Trata-se de princípios informativos da natureza humana. O século XVII enuncia, ainda, a crise da constituição mista da Idade Média (que tem um significado bem diferente do significado atual de Constituição).

No entanto, assim como na sociedade medieval, não há distinção marcada entre público e privado, já que este não se desenvolve dissociado daquele.

A complexidade cada vez maior das relações sociais, a mudança na percepção do tempo, e o surgimento da modernidade reflexiva (voltada para um futuro incerto, e não predeterminado como outrora), impossibilitou a propagação do paradigma de uma sociedade funcional (estratificada), de modo que o jusnaturalismo racional tornou-se inepto a fundamentar o direito.

No século XVIII emerge, então, o constitucionalismo, frente à evidência de diferenciação funcional (conceito luhmanniano que faz alusão a uma sociedade organizada em sistemas especializados funcionalmente, cujas conclusões se baseiam em argumentos atinentes a cada sistema) e à possibilidade de autodeterminação do indivíduo.

A distribuição desigual de poder e riqueza não se permite justificar mais com base em argumentos naturalizados e metafísicos. As respostas de cada sistema devem se fundamentar a partir de sua especialização. As soluções jurídicas só serão legítimas se baseadas em argumentação jurídica.

O constitucionalismo – por meio de constituições escritas, como uma maneira de estabilização e controle do poder estatal – tem de compreender a contensão do poder do governo, o assentimento com o Estado de Direito e a proteção dos direitos fundamentais. A supremacia das constituições escritas só se dá, no entanto, com a decisão no caso Marbury v. Madison, pronunciada pela Suprema Corte norte-americana em 1803.

No paradigma do Estado (de Direito) Liberal, no que se refere à relação público-privado, é óbvia a hipertrofia do privado em detrimento do público, porquanto há uma desconfiança em relação ao Estado – impulsionada pelos arbítrios do Estado Absolutista. Assim, o Estado deve se limitar às proteções da propriedade, igualdade e liberdade, em sentidos contratuais.

Essas proteções têm o caráter liberal, porquanto são liberdades “negativas”, tais como as primeiras dez emendas incluídas na Constituição norte-americana (Bill of Rights). O Estado tem papel regulatório tão somente, cabendo ao livre mercado a distribuição igualitária de oportunidades e riquezas. Resquícios do Antigo Regime decorrem da sociedade estratificada, uma vez que não há inclusão de toda a população na vida política (voto censitário).

O âmbito público do Estado Liberal é regido por “convenções”, com cada vez mais formalismo nos processos de participação popular na política. Ademais, não há concretização de nenhum direito administrativo (com o significado que adquiriu no fim do século XIX), com preponderância da irresponsabilidade do Estado.

Em meio à exploração crescente e uma discrepante desigualdade na distribuição de riqueza e poder, bastante intensificada pela Revolução Industrial, movimentos sociais e coletivos surgem em razão do difícil acesso ao consumo e à participação política. Nesse contexto, sindicatos e doutrinas socialistas ou anarquistas eclodem, exigindo a materialização dos direitos formalizados na Constituição.

Surge, para evitar a via revolucionária, o paradigma do Estado Social, cuja Constituição integra, além dos direitos do Estado Liberal, direitos compensatórios da desigualdade de riqueza e poder, bem como novos sujeitos de direitos (coletivos), estabelecendo uma rede de proteção, de forma que a estrutura estatal se agiganta diante da necessidade de inclusão das demandas que surgem incessantemente. Há, portanto, superdimensionamento do público em detrimento do privado, em razão da desconfiança em relação ao egoísmo e à autorregulação da economia.

É no Estado Social que surgem o direito administrativo e a discussão em torno da responsabilização do Estado. A dívida do setor público tornou-se insustentável: grandes gastos na materialização dos direitos sociais, um maior custo com o aparato estatal mais burocrático e hipertrofiado para atendimento das demandas, tudo isso somado à crise do petróleo de 1970, levaram à evidência dos limites das propostas do Estado Social.

Não bastasse, o Estado Social faliu na materialização da cidadania, na medida em que paulatinamente a participação popular nos processos políticos ficou em défice. A identificação do público com estatal gerou uma relação análoga a do prestador de serviços e seus clientes, de modo que o Estado Social se distanciou da dinâmica social e, por todas as facetas de sua crise, não se sustentou mais.

O Estado Democrático de Direito decorre da crise do Estado Social e da percepção de que este não mais suportava a diferenciação funcional que se remodelava e que se tornava mais complexa constantemente. O Estado já não pode mais ser identificado como o público, e, em muitas situações o cerne da reivindicação era exatamente a intervenção excessiva.

O âmago da cidadania do Estado Democrático de Direito é a participação ativa, além de que os direitos já constitucionalizados pelos paradigmas anteriores são redimensionados e a complexidade social é evidente pela pluralidade reivindicatória, com surgimento de várias demandas de cunho ambiental, de direitos difusos, de organizações não-governamentais, sociedades civis de interesse público, dentre outras.

À vista disso, tanto a dimensão pública, quanto a privada são remodeladas, e sua tensão passa a ser vista não só como inevitável, mas como necessária. Essa tensão, no entanto, não deve ser entendida como oposição, como se deu nos paradigmas anteriores. Deve ser vista como uma complementariedade, que garante a sobrevivência e readaptação do modelo constitucional de legitimidade.


3 Decisão do STF: escravidão, empatia e violação dos direitos fundamentais

As garantias fundamentais (que asseguram a autodeterminação individual e a esfera privada) só se efetivam por meio da dimensão pública, que, por sua vez, só existe se os sujeitos tiverem a liberdade individual de participação (permitida pelas garantias fundamentais, em igualdade de vozes dos setores sociais). Assim, as garantias fundamentais se tornaram significativas e exigíveis a partir de sua publicização (tornaram-se conteúdo político) e requerem a possibilidade de uma participação ativa daqueles que os detêm para manutenção do espaço público.

Embora todo esse processo histórico tenha transcorrido para que surgisse o constitucionalismo e o rol crescente de direitos fundamentais, estes são tão arraigados socialmente, que passam a impressão de autoevidência, de existência e de explicação inatas – são ditos universais.

As garantias fundamentais, portanto, não se baseiam apenas em constituições escritas, mas dependem do envolvimento de um convencimento emocional capaz de gerar essa ilusão de autoevidência, por meio de um sentimento interior amplamente compartilhado. Dependem, portanto, de empatia, de uma disposição em relação aos outros que forma um conjunto de convicções que distinguem o que é certo (aceitável) e o que é errado (inaceitável). A empatia e as convicções remodeladas é que modificam a carga e abrangência das garantias fundamentais cotidianamente.

Relatos constantes a respeito da escravidão e a desumanidade de tratamento dos escravos, bem como das torturas e mazelas sofridas pelas pessoas submetidas à escravidão, fizeram com que as pessoas se compadecessem com o que essas pessoas viviam, de modo que os sujeitos puderam se identificar com o sofrimento dos escravos e a escravidão se tornou inaceitável. O sentimento de horror frente a uma situação traz a sensação de autoevidência de que um direito fundamental está sendo violado.

Transcreve-se, por oportuno, decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), para problematizar a questão dos direitos fundamentais, principalmente em relação ao trabalho:

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. ART. 149 DO CÓDIGO PENAL. REDUÇÃO Á CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO. TRABALHO ESCRAVO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. DIREITOS FUNDAMENTAIS. CRIME CONTRA A COLETIVIDADE DOS TRABALHADORES. ART. 109, VI, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO PROVIDO. A Constituição de 1988 traz um robusto conjunto normativo que visa à proteção e efetivação dos direitos fundamentais do ser humano. A existência de trabalhadores a laborar sob escolta, alguns acorrentados, em situação de total violação da liberdade e da autodeterminação de cada um, configura crime contra a organização do trabalho. Quaisquer condutas que possam ser tidas como violadoras não somente do sistema de órgãos e instituições com atribuições para proteger os direitos e deveres dos trabalhadores, mas também dos próprios trabalhadores, atingindo-os em esferas que lhes são mais caras, em que a Constituição lhes confere proteção máxima, são enquadráveis na categoria dos crimes contra a organização do trabalho, se praticadas no contexto das relações de trabalho. Nesses casos, a prática do crime prevista no art. 149 do Código Penal (Redução à condição análoga a de escravo) se caracteriza como crime contra a organização do trabalho, de modo a atrair a competência da Justiça federal (art. 109, VI da Constituição) para processá-lo e julgá-lo. Recurso extraordinário conhecido e provido. (STF - RE: 398041 PA, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Data de Julgamento: 30/11/2006, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe - 241, Divulgação: 18/12/2008, Publicação: 19/12/2008).

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Trata-se de um caso de escravidão por dívidas, que suscita a condenação ao crime de redução à condição análoga a de escravo, insculpido pelo art. 149 do Código Penal Brasileiro, além de evidenciar a violação à dignidade humana, bem como outras garantias fundamentais, inclusive de caráter trabalhista.

O Ministro Joaquim Barbosa, no início de seu voto, exprime a seguinte opinião em torno dos direitos fundamentais envolvidos no caso em alusão:

Verifica-se, portanto, a importância dada pelo Constituinte originário à construção de uma sociedade pautada pela valorização da pessoa humana e de seus direitos fundamentais. Nesse contexto, a existência amplamente comprovada de trabalhadores em situação de quase escravidão afronta não apenas os princípios constitucionais inscritos no rol do art. 5º da Constituição, mas toda a sociedade, em seu aspecto moral e ético.

Reforça-se, então, o compartilhamento social em torno da não aceitabilidade em torno de uma situação que cause horror ou indignação e sua associação à violação de um direito fundamental, o que se traveste de uma autoevidência. No entanto, esta não se dá uniformemente em relação aos denunciantes, que apresentam níveis diversos de consciência em torno do que é injusto ou ilegítimo.

Fato é que essa autoevidência é compartilhada por essas vítimas. Tanto é assim que os trabalhadores colocados em condição análoga a de escravo denunciam as atrocidades sofridas motivados pela sensação de injustiça e de violação de seus direitos enquanto pessoa e enquanto empregado, mesmo diante das inúmeras dificuldades que podem ser enfrentadas para tanto. As denúncias pretendem uma resposta estatal para a humilhação sofrida.

A empatia em torno da escravidão contemporânea se intensificou a partir da década de 90, certamente, na medida em que a literatura sobre o tema aguçou a sensibilidade pública em torno da situação, o que resultou em uma maior atuação estatal, que de forma cíclica fomentou a maior repreensão social em torno dos casos de escravidão atuais.

O estado do Pará, onde a ação penal foi ajuizada, é o que tem mais cidades equipadas para possíveis denúncias, contando com escritórios da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em sete cidades paraenses, em razão da quantidade de fazendeiros que se utilizam da mão de obra escrava para sua produção.

Os trabalhadores vítimas da escravidão costumam se dirigir a autoridades federais, por perceberem que quanto maior a distância da autoridade, menor chance de conluio com os fazendeiros empregadores.

Muitas das autoridades, mesmo federais, demonstram-se despreparadas para lidarem com a grave situação em que estão envolvidos os denunciantes (que não raras vezes são fugitivos), e não raras vezes são coniventes, por interesses próprios, aos interesses dos fazendeiros criminosos.

Não só as autoridades responsáveis pela denúncia, mas também o Poder Judiciário envolve-se em casos como tais, como bem pontua Ricardo Rezende Figueira (2010):

O poder público, expresso no judiciário, na defensoria pública e na promotoria do estado, está sintomaticamente ausente na história de defesa e libertação destes homens e mulheres. Ou, se manifesta, pode fazê-lo de uma forma considerada inadequada pelo denunciante.

Hipótese ainda pior é aquela em que a autoridade é detentora de imóvel que se utiliza da mão de obra escrava, tais como deputados, o que evidentemente dificulta a condenação e aumenta os riscos e a insegurança dos trabalhadores denunciantes.

Com vistas a se eximirem das inquietações morais ou jurídicas em torno da utilização de mão de obra escrava, os fazendeiros se utilizam de intermediários e alegam desconhecimento das ilegalidades praticadas, mesmo que haja constante reincidência da denúncia. Tentam, muitas vezes, aduzir que são alvos de acusações infundadas, engendradas pelo “inimigo” – o governo e seus órgãos –, colocando-se como vítimas das denúncias.

Em diversos casos de trabalho análogo à escravidão no Pará, a relação paternalista e arcaica do mecanismo de exploração remonta a autoridade capitalista do início da Revolução Industrial, em que os patrões distribuíam favores, provendo as necessidades básicas de seus empregados. Nesse ponto, o paternalismo pressupõe proximidade entre o patrão e o empregado, de forma a gerar uma dívida moral que se sobrepusesse à dívida jurídica, em razão dos cuidados que o patrão fornecia.

No entanto, essa relação paternalista fica impossibilitada nas relações precárias, hipótese em que o consentimento do dominado é irrelevante e não há o esforço de camuflar os excessos.

A reincidência é um dos indícios de que os proprietários dos imóveis não só conhecem, mas são coniventes com a utilização de mão de obra escrava em sua produção. Ademais, os mecanismos de coerção desses trabalhadores não seriam tão eficazes sem o apoio do fazendeiro.

De fato, muitos proprietários têm a convicção de que são vítimas dessas denúncias e não concordam ou desconhecem a lei, mas tal subjetividade é irrelevante e a prática deve ser coibida, por força da intolerância social compartilhada em torno da violação à dignidade humana ocasionada pela redução à condição análoga a de escravo, de forma que há exigência de aplicação do art. 149 do Código Penal, assim como explícito no acórdão antes mencionado. Exigências mais severas estão sendo reivindicadas como a expropriação da terra.[1]

Porém, é evidente que há autoridades que cumprem com seus papeis com presteza e levam insegurança aos criminosos e confiabilidade à vítima. O Ministério do Trabalho e Emprego ganha maior expressividade na luta contra o trabalho escravo com a criação, na década de 90, do Grupo Especializado de Fiscalização Móvel do TEM, cuja atuação dá maior visibilidade pública do problema:

(...)implementa operações e leva os empregadores ao pagamento dos direitos trabalhistas. E, especialmente a partir de 2003, com novas ofensivas do Estado e com o I e II Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, a ação do Grupo se torna mais eficiente: inclui os resgatados na lista do salário desemprego e, com o apoio do Ministério Público do Trabalho, firma Termos de Ajuste de Conduta (TAC); inclui em um Cadastro do MTE as empresas consideradas flagradas no crime do trabalho escravo.

Ressalta-se que, consoante pesquisas realizadas por Ricardo Rezende Figueira (2010), é provável – na hipótese vertente sobre a qual dispõe o acórdão supratranscrito – que o trabalhador tenha fugido entre maio e outubro, período correspondente à seca no sudeste paraense. Isso porque as fugas são mais propensas, no período em alusão, a serem bem-sucedidas, por melhores condições das estradas e maior possibilidade de caronas, além da maior exploração dos trabalhadores nesse período, o que intensifica a revolta do explorado.

Já o aliciamento, é provável que tenha sido realizado no período chuvoso. Embora a produtividade seja menor, é o período de chuvas que torna mais complicada a fiscalização e, consequentemente, torna-a menos efetiva.

As denúncias realizadas podem ter natureza individual ou servir a uma coletividade de trabalhadores. Na decisão em análise, fica evidente que a denúncia se refere a um contingente de trabalhadores, porquanto aludidos em plural.

Não prescinde, nesse ponto, analisar as razões pelas quais os sujeitos se submetem à tamanha exploração, a despeito da consciência de um rol básico de garantias fundamentais.

A ideia básica é de que a liberdade de um sujeito depende essencialmente do conjunto capacitário de alternativas que ele tem (suas oportunidades reais de escolha), o que, por sua vez, está atrelado aos recursos (principalmente econômicos) que ele possui. Assim, a pessoa desprovida de renda é também desprovida de liberdade material, porquanto não há um rol extenso e satisfatório de escolhas reais que possam ser feitas, o que traz à tona a problemática da justiça distributiva.

A liberdade de ter estilos de vida diversos é tão mitigado quanto seja sua renda (principal causa de privações de escolhas), o que reduz drasticamente suas chances de bem-estar. Nesse ponto, quanto maior a sujeição à miséria e à pobreza, maior a propensão de submissão a explorações massivas em prol da mera sobrevivência, e mais entregues aos interesses (motivados pelo individualismo) econômicos desenfreados dos detentores de recursos.

Essa combinação – aludida de forma superficial e não exauriente – propicia a perpetuação do trabalho escravo em casos como o transcrito acima, e se aplica também às regiões desenvolvidas do país, em que há redução de chineses à condição análoga a de escravo, por meio de dívidas contraídas na China para se deslocar para o Brasil em busca de melhores condições de trabalho.

Nos casos chineses, a vulnerabilidade daqueles desprovidos de condições econômicas que têm restringidas (ou até negadas) sua liberdade e sua capacidade de escolha de estilos de vida fica evidenciada por aqueles outros chineses que, detentores de mais recursos, aproveitam-se dessa vulnerabilidade e reduzem seus conterrâneos à condição de escravos no Brasil.[2]

Aproveitam-se, ainda, da disciplina e da cultura chinesa em torno do trabalho, uma vez que há valorização do trabalho árduo e do sacrifício pessoal. Assim, há uma “naturalização” da exploração a que são submetidos e a docilidade se torna um instrumento de potencialização dessa condição precária de trabalho.

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