O Juiz ideal e a vidente da Lava Jato

13/08/2015 às 13:05
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Discuto neste artigo a forma estranha como o Juiz federal encarregado da "Lava Jato" está tratando o réu José Dirceu.

Cassandra (em grego: Κασσάνδρα), personagem homérica, era vidente. Ela previu o futuro trágico de Tróia, mas ninguém deu atenção a suas previsões. Obsedada pela falta de credibilidade que a impediu de evitar a invasão e saqueamento de sua cidade, Cassandra perdeu o contato com a realidade e se tornou vítima de sua própria profecia.

A filha de Príamo e Hécuba não é e não poderia ser um símbolo da Justiça. Quem prevê o futuro não pode se preocupar com o passado. E o passado, meus caros, condiciona a atividade judiciária de duas maneiras: os juízes cumprem e fazem cumprir Leis que já estão em vigor; eles julgam os fatos que já ocorreram e somente em situações excepcionais aplicam Leis em vigor para prevenir fatos que ainda não ocorreram.

O Direito Penal não sanciona a punição de um crime futuro, pois foi erigido sobre dois princípios constitucionais fundamentais: não há crime sem Lei anterior que o defina; não há punição sem prévia condenação. É o que consta expressamente da CF/88:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;”

Os crimes submetidos a julgamento podem ser consumados ou tentados. Mas até mesmo a tentativa da prática de um crime tem que ter ocorrido antes de ser apreciada pela autoridade judiciária.

A punição de crime futuro é impossível. Também é impossível a prevenção do crime por ato judicial. Quem previne o crime é a Polícia, não o Juiz. Ele apenas julga os fatos que foram apurados e submetidos ao seu conhecimento, aplicando aos mesmos a Lei em vigor.

Abro um website jurídico e me deparo com uma pérola jurídica que tem razão de ser em filmes de ficção como Minority Report (2002):

“GARANTIA DA ORDEM

Prisão de Dirceu já impede crimes de acusados na "lava jato", diz Sergio Moro” http://www.conjur.com.br/2015-ago-12/prisao-dirceu-impede-crimes-acusados-lava-jato-moro

Diz Sérgio Moro que "se a corrupção é sistêmica e profunda, impõe-se a prisão preventiva para debelá-la, sob pena de agravamento progressivo do quadro criminoso”. O discurso dele é bonito. O leigo fica com a impressão de que aquele Juiz está preocupado com o destino do acusado. Juridicamente, contudo, estas são palavras vazias. A Lei Penal não tem a finalidade de punir crimes futuros nem de impedir que o criminoso cometa outros crimes (tanto que vários crimes são cometidos dentro dos presídios, obrigando o Estado a agir novamente contra o autores dos mesmos).

 José Dirceu não tem cargo no governo, nem na Petrobrás. Portanto, mesmo que tenha cometido infrações no passado, ele não está em condições de cometer infrações semelhantes no presente e no futuro. A prisão dele não me parece justificada, exceto se a finalidade da mesma for obrigá-lo a “dar com a língua nos dentes”, como dizem os policiais. Mas, neste caso, a irregularidade na condução do processo da “Lava Jato” é ainda mais evidente. A tortura, por qualquer meio, é proibida e a prisão preventiva não pode ser decretada pelo Juiz para obrigar o réu a delatar outros réus. A delação é voluntária e não deve ser obtida mediante coação ou supressão da garantias constitucionais.

Manter o suspeito preso por razões supostamente humanitárias (para que ele não continue praticando os mesmos crimes e agravando sua pena) também não faz sentido. A prisão é uma exceção, a regra é a liberdade, garantida pelo art. 5º, caput, da CF/88. E, convenhamos, nem mesmo Sérgio Moro gostaria de ficar preso sob alegação de que isto o impediria de cometer um daqueles crimes tão comuns entre os Juízes brasileiros que frequentam as páginas policiais (prevaricação, abuso de poder, extorsão, apropriação indébita, concussão etc.).

Sou advogado há 25 anos e fiquei profundamente perturbado com esta notícia do Conjur. As palavras do Juiz da “Lava Jato” sacudiram todas as minhas convicções profissionais. Fiquei com uma dúvida cruel: Sérgio Moro é apenas Juiz ou se tornou um discípulo de Cassandra e não está em condição de julgar fatos passados? Para mim, é evidente que a CF/88 que ele está aplicando no caso de José Dirceu não é a mesma que está na minha estante.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

Advogado em Osasco (SP)

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