Sumário: 1. Introdução. 2. Fundamentação legal e compreensão dos Tribunais Brasileiros. 3. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Muito se tem falado a respeito da legalidade da denúncia anônima. Há quem aceite referido instituto com veemência e sem ressalvas. Outros, por sua vez, defendem a impossibilidade de utilização em qualquer hipótese, alegando a sua desconformidade constitucional. Hoje, prevalece o entendimento de que a denúncia anônima pode ser admitida no processo penal, desde que atendidos determinados requisitos anteriores, de forma a garantir a segurança de quem sabe de um fato criminoso, mas tem medo de represálias, sem que tal delação fira direitos inerentes à personalidade, à dignidade e à intimidade de qualquer indivíduo.
2. FUNDAMENTAÇÃO LEGAL E COMPREENSÃO DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS
Inicialmente, vejamos o que diz o artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal:
Art. 5º, IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.
De acordo com José Afonso da Silva, a manifestação do pensamento pode ser definida como a “liberdade de o indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha: quer um pensamento íntimo, quer seja a tomada de posição pública; liberdade de pensar e dizer o que se crê verdadeiro” [1].
Sobre o mesmo tema, Ferreira Filho:
“A manifestação mais comum do pensamento é a palavra falada, pela qual alguém se dirige a pessoa ou pessoas presentes para expor o que pensa. Essa liberdade é consagrada pelo art. 5º, IV e V. Na verdade, é ela uma das principais de todas as liberdades humanas por ser a palavra uma das características fundamentais do homem, o meio por que este transmite e recebe as lições da civilização. A liberdade de palavra, todavia, não exclui a responsabilidade pelos abusos sob sua capa cometidos.[2]
Numa interpretação literal de tais conceitos, entender-se-ia pela completa impossibilidade de aplicação da denúncia anônima como impulso inicial da persecução penal, o que já foi entendimento do Tribunal Superior:
“O artigo 5º, item IV, da Constituição Federal garante a livre manifestação do pensamento, mas veda o anonimato. A carta anônima de fls. 3 e verso não pode, portanto, movimentar polícia e justiça sem afrontar a aludida norma constitucional." (STJ, AgRg no Inq 355/RJ, Corte Especial, DJ 17.05.2004).
Entretanto, até então, outras posições completamente antagônicas também eram tomadas dentro da mesma Corte:
"Se se trata de crime de ação pública e isso está expresso em documentação que chega à autoridade com poderes de investigação, creio que ela tem obrigação de apurar. Trata-se de atividade fundamental, algo que interessa à sociedade e que, portanto, não é possível confundir-se, a meu ver, com o anonimato." (QO na NC 280/TO,Corte Especial, trecho voto do Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 5.9.2005).
Certo é que a identificação de autoria, quando do exercício de manifestação, é necessária para que seja possível eventual responsabilização de quem a divulgou, caso tal ato enseje danos a terceiros. Desta forma, pode-se dizer que a vedação constitucional ao anonimato está vinculada à outra proteção constitucional: os direitos de personalidade, não sendo admissível, portanto, dissociar-se do artigo 5º, inciso X da Carta Magna: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. No mesmo sentido, especial atenção também merece o artigo 1º, inciso III do mesmo Texto:
“Art. 1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;”
Isto posto, conclui-se que a vedação ao anonimato incide diretamente na denúncia anônima. Resta investigar de que forma isto ocorre e se é ou não válida como instrumento de deflagração da investigação policial.
De acordo com parte da doutrina, é necessária a conciliação entre os direitos da personalidade garantidos pela Constituição Federal com outras proteções também constitucionais, como o interesse público e social na investigação de crimes, bem como a própria segurança pública.
Isto seria perfeitamente concebível se, uma vez que estivesse diante de uma denúncia anônima, a própria Autoridade Policial promovesse investigação preliminar anterior à instauração de inquérito policial, a fim de colher elementos mínimos que comprovem a procedência da denúncia. Uma vez confirmada a justa causa e a existência de tais indícios, caberia o início do procedimento formal de investigação. O que não se deve é determinar a imediata instauração deste sem que seja confirmada a verossimilhança dos fatos, sob pena de serem sacrificados direitos personalíssimos de terceiros.
Nesta senda, intocáveis os termos utilizados pelo Ministro Marco Aurélio:
“Os escritos anônimos não podem justificar, só por si, desde que isoladamente considerados, a imediata instauração da persecutio criminis, eis que peças apócrifas não podem ser incorporadas, formalmente, ao processo, salvo quando tais documentos forem produzidos pelo acusado, ou, ainda, quando constituírem, eles próprios, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no delito de extorsão mediante seqüestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o crimen falsi, p. ex.);Nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima (‘disque-denúncia’, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, ‘com prudência e discrição’, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da persecutio criminis, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas; (...).” (STF, Inq. 1.957-7/PR, Decisão em 11.05.2005)
Como exemplo doutrinário, destacamos o entendimento de José Frederico Marques:
“No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a comunicação falsa de crime (Código Penal, arts. 339e 340),o que implica a exclusão do anonimato na ‘notitia criminis’, uma vez que é corolário dos preceitos legais citados a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime,a fim de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva e ilicitamente.
Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais de investigação da autoridade policial, quando delação anônima lhe chega às mãos, uma vez que a comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de possibilitar diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou seu autor. Se, no dizer de G. Leone, não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos processuais, não servindo ele de base à ação penal,e tampouco como fonte de conhecimento do juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses,a autoridade policial,com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias.
Cumpre-lhe, porém, assumir a responsabilidade da abertura das investigações, como se o escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido ‘notitia criminis’ inqualificada.” [3]
No mesmo sentido, destaca Mirabete:
“(...) Não obstante o art. 5º, IV, da CF, que proíbe o anonimato na manifestação do pensamento, e de opiniões diversas,nada impede a notícia anônima do crime (‘notitia criminis’ inqualificada), mas, nessa hipótese, constitui dever funcional da autoridade pública destinatária, preliminarmente, proceder coma máxima cautela e discrição a investigações preliminares no sentido de apurar a verossimilhança das informações recebidas. Somente coma certeza da existência de indícios da ocorrência do ilícito é que deve instaurar o procedimento regular.”[4]
Sendo assim, atualmente, é pacífico o entendimento dos tribunais, os quais aceitam a denúncia anônima desde que sejam realizadas investigações preliminares antes da instauração – ou não – do inquérito policial, de forma a preservar os direitos individuais do delator e do(s) delatado(s).
“A jurisprudência do STF, e, também, desta Corte, tem orientação no sentido de que é possível iniciar a persecução penal a partir de denúncia anônima, desde que sejam realizadas, antes da instauração do inquérito policial, diligências ou averiguações preliminares, por meio de elementos indiciários, da verossimilhança da notícia apócrifa, como se verificou na espécie.” (STJ, AgRg no RMS 38465, Rel. Min. Campos Marques, DJe06.09.2013)
3. CONCLUSÃO
A carência de previsão expressa no ordenamento jurídico pátrio fez com que recaísse sobre a doutrina e a jurisprudência a admissão da denúncia anônima no Processo Penal. Por tratar-se de tema relativamente atual, hoje ainda é possível encontrar posicionamentos distintos no bojo de um mesmo Tribunal, em que pese entendimento majoritário firmado no sentido de ser inviável a utilização de tal instituto, por si só, como fundamento para instauração de inquérito policial. Assim, se faz necessário o firmamento positivo de tal juízo em atendimento aos princípios constitucionais basilares, como os direitos da personalidade, bem como a segurança jurídica.
nOTAS
[1] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. p. 235
[2] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 25. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 291-292.
[3] José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, Vol. I, Millennium, São Paulo, 2000, p. 147
[4] (Julio Fabbrini Mirabete, Código de Processo Penal Interpretado, Atlas, São Paulo, 2000, p. 95)