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Princípios científicos do Ministério Público

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Analisam-se os princípios institucionais do Ministério Público, indicando a atuação de ofício, a ação vinculada à existência de interesse público e a independência funcional como balizas dessa instituição.

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é analisar os princípios institucionais do Ministério Público, assim como enunciados pela Constituição Federal, a fim de verificar sua compatibilidade com a realidade da ação ministerial.

A expressão “princípios científicos” significa que são extraídos da análise da atuação funcional dos membros do Ministério Público, podendo ou não coincidir com aqueles legalmente estabelecidos.

Na verdade, a lei não precisa estabelecer os princípios de uma instituição pública. Deve criá-la, definindo suas competências e finalidades. Os princípios serão deduzidos do seu ordenamento legal.

A Constituição não menciona quais são os princípios do Poder Judiciário, mas nem por isso este deixou de ter princípios próprios, extraídos das normas que o regem. A inércia, por exemplo, é um princípio que decorre da regra legal segundo a qual o juiz não deve atuar de ofício.

Se o Direito quer ser uma ciência, é preciso analisar seus princípios e normas, provenham elas de onde provierem, a fim de perquirir sua razoabilidade.


2. PRINCÍPIOS LEGAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Princípios legais do Ministério Público são aqueles ditados por normas constitucionais e infraconstitucionais. No Brasil, são três: unidade, indivisibilidade e independência funcional, conforme a Constituição de 1988:

“Art. 127. Omissis.

§ 1º São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional”.

A Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar n. 75/93) repete os mesmos dizeres.1 . De igual forma, a Lei Orgânica dos Ministérios Públicos Estaduais (Lei n. 8.625/93).2

Os princípios da unidade e da indivisibilidade foram copiados do Ministério Público francês. Durante a Revolução Francesa, discutiu-se qual seria a natureza do Estado francês, se unitária ou federal. Após ríspido debate, os Deputados presentes na Convenção Nacional escolheram o Estado unitário.”3 Tais princíupios estavam no texto da Constituição Francesa de 1971:

“Artigo 1º. A Soberania é una, indivisível, inalienável e imprescritível. Ela pertence à Nação e nenhuma parte do povo nem indivíduo algum pode atribuir-se o exercício”.4

Vê-se, então, que unidade e indivisibilidade são características da soberania, que atingem todos os poderes estatais, inclusive o Judiciário. De fato, “a jurisdição é una e indivisível, sendo manifestação da soberania do Estado.”5 Como o Ministério Público francês integra o Poder Executivo, ele é uno, indivisível e hierarquizado.

O legislador, inspirado no modelo francês, trouxe os mesmos princípios para o Ministério Público brasileiro, mas não atentou para a sua inadequação a um Estado federal. Como explica Mazzilli:

“De onde foi que a Constituição tirou a assertiva de que o Ministério Público brasileiro seria uno e indivisível? Não foi na Carta de Curitiba (1986), pois o próprio Ministério Público nacional já tinha recusado o confuso apotegma, que foi trazido para a legislação brasileira pela Lei Complementar 40/81. Mas de onde a própria Lei Complementar 40/81 tirou essa assertiva? Tirou-a da doutrina local, que, influenciada pela doutrina francesa, falava num Ministério Público uno e indivisível – e, coerentemente, hierarquizado. Ora, a doutrina francesa era calcada num Estado unitário, onde o Ministério Público era supostamente uno e o procurador-geral concentrava nas mãos o poder de avocação e delegação; assim, lá era praxe falar-se em parquet uno e indivisível e mais, hierarquizado”.6

Diferentemente da França, o Brasil é uma República federativa, na qual os Estados membros têm autonomia política e administrativa. Por isso não há unidade e indivisibilidade entre os Ministérios Públicos da União e dos Estados, vinculados a entes políticos diversos.7

Apesar disso, pode-se dizer que uma instituição é una quando seus membros exercem funções semelhantes, de acordo com critérios legais de repartição de competências. A unidade, desse modo, acaba sendo um princípio implícito ao Poder Judiciário, ao Poder Executivo (onde também vige a hierarquia), à Polícia, à Advocacia Pública, à Defensoria Pública8, ainda que nenhuma lei o diga.

Como a unidade não é um princípio apenas do Ministério Público, não serve para caracterizá-lo, para individualizá-lo perante as demais instituições.

Não negamos a importância de um princípio ser enunciado pela Constituição Federal. Se esta não tivesse afirmado que a independência funcional é um princípio do Ministério Público, ainda hoje seus membros seriam obrigados a cumprir ordens dos órgãos superiores referentes à atuação funcional.

Assim, é preciso buscar um sentido razoável para o princípio da unidade. Ele não pode ser interpretado como atuação uniforme, pois se assim fosse, os princípios da unidade e da independência funcional se excluiriam mutuamente. Ou se atua de maneira uniforme, seguindo orientações superiores, ou de acordo com a própria consciência.

Na verdade, o princípio da unidade significa que no Ministério Público há órgãos superiores e inferiores, podendo os primeiros, conforme a lei, alterar as decisões tomadas pelos últimos.

Nenhum órgão do Ministério Público precisa de autorização de um órgão superior para agir, nem precisa seguir suas orientações. Mas os órgãos superiores, havendo competência legal, podem rever determinados atos dos órgãos inferiores, como discordar do arquivamento de um inquérito civil e determinar que a investigação prossiga com outro órgão.

Essa possibilidade de revisão, porém, não afeta a propositura de ações judiciais e a expedição de recomendações. Isso porque, depois de proposta uma ação, caberá ao Judiciário decidir se as providências pretendidas pelo Ministério Público são aceitáveis. E não há necessidade dos órgãos superiores reverem recomendações, porque são desprovidas de obrigatoriedade. Os órgãos superiores não precisam revogá-las.

A melhor interpretação para o princípio da unidade é que cada órgão da instituição pode agir livremente dentro de sua competência, admitindo-se que os órgãos superiores revejam atos dos inferiores, na forma definida em lei, como ocorre no Judiciário. A independência funcional não impossibilita a revisão de atos funcionais, desde que não se obrigue o órgão inferior a atuar contra a sua vontade.9

A indivisibilidade, contudo, mostra-se um princípio sem significado claro. Caso signifique que as competências do Ministério Público não podem ser subtraídas, torna-se desnecessário, pois as competências constitucionais atribuídas aos diversos poderes estatais em 1988 constituem uma repartição originária de competências, por isso imodificável, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes. Por exemplo, a competência para propor ação penal pública, privativa do Ministério Público, não pode ser atribuída a outro órgão, em razão do disposto no art. 60, § 4º, III, da Constituição. A indivisibilidade acaba por confundir-se com o princípio da indisponibilidade das competências constitucionais, segundo o qual as competências constitucionais não podem ser transferidas para órgãos diferentes daqueles a quem a Constituição as atribuiu.10

Na hipótese de querer exprimir que o Ministério Público não pode ser dividido, verifica-se que a própria Constituição deu-lhe uma conotação diferente, pois, como decorrência da federação, separou-o em Ministério Público da União e Ministério Público dos Estados.

Ademais, se indica que seus membros podem ser substituídos uns pelos outros, segundo a forma estabelecida em lei, lembramos que essa substituição ocorre em outros órgãos. Juízes substituem-se uns aos outros em ações civis e penais, conforme critérios objetivos previstos em lei, durante férias, licenças, remoções e impedimentos. De igual maneira ocorre com advogados públicos, defensores públicos, delegados de polícia e outros agentes públicos.

Dessa forma, unidade e indivisibilidade não são princípios apenas do Ministério Público, aplicando-se a praticamente todas as instituições estatais. É preciso saber, então, quais princípios realmente o definem.


3. PRINCÍPIOS CIENTÍFICOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Os princípios institucionais são aqueles que regem o modo de atuar dos membros de um órgão. Devem refletir sua forma de agir. Quando se diz que o Judiciário é inerte, isso significa que nenhum juiz pode atuar de ofício. Constituem finalidades de atuação, padrões de conduta.

Os princípios do Ministério Público, extraídos do estudo das funções ministeriais, da forma como as exerce, são: 1) princípio da atuação espontânea ou de ofício; 2) princípio da atuação vinculada à existência de interesse público; 3) princípio da independência funcional. A conjugação desses três princípios (e não apenas um ou outro) identifica a instituição Ministério Público.

3.1 Princípio da atuação espontânea ou de ofício

Uma das principais funções do Ministério Público é fiscalizar o Poder Público. Como órgão de fiscalização, cumpre-lhe agir de ofício, tão logo chegue ao seu conhecimento, por qualquer meio, uma ilegalidade, e haja interesse público na sua apuração. Todo órgão com competência fiscalizadora pode atuar de ofício. Diz a Carta Maior:

“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(...)

II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;”

O exercício da função fiscalizadora pode ocorrer de forma espontânea ou provocada. A lei complementar n. 75/93 faz expressa referência à atuação de ofício do Procurador Regional dos Direitos do Cidadão:

“Art. 12. O Procurador dos Direitos do Cidadão agirá de ofício ou mediante representação, notificando a autoridade questionada para que preste informação, no prazo que assinar.”

A lei n. 8.625/93 também prevê de forma expressa a atuação de ofício do membro do Ministério Público Estadual:

“Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério Público:

(...)

VIII - ingressar em juízo, de ofício, para responsabilizar os gestores do dinheiro público condenados por tribunais e conselhos de contas;”

Outras leis igualmente fazem referência à atuação de ofício do MP, como a lei n. 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa):

“Art. 22. Para apurar qualquer ilícito previsto nesta lei, o Ministério Público, de ofício, a requerimento de autoridade administrativa ou mediante representação formulada de acordo com o disposto no art. 14, poderá requisitar a instauração de inquérito policial ou procedimento administrativo.”

Em relação às demais formas de atuação ministerial, a lei não as condiciona à existência de representação, o que a torna dispensável. As representações formuladas ao Ministério Público devem ser distribuídas, é certo, de maneira objetiva. Mas isso não impede a atuação de ofício do órgão. O membro do Ministério Público pode agir de forma espontânea se tomar conhecimento de uma ilegalidade e tiver competência para tanto. É por esse motivo que ele é chamado de fiscal da lei (custos legis).

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Porém, órgãos de cúpula do Ministério Público Federal demonstram desconhecer esse princípio. Exemplo disso é a Resolução n. 104/2010, do Conselho Superior do Ministério Público Federal, que diz:

Art. 1º. A repartição de atribuições entre membros do MPF deverá observar:

(...)

III – todas as representações, inclusive os procedimentos instaurados de ofício, deverão ser submetidas a procedimento de distribuição por critérios impessoais e objetivos;

IV – o órgão do Ministério Público Federal somente poderá instaurar procedimentos relativos a matérias concernentes a sua área de atuação, que obrigatoriamente deverão ser submetidos à livre distribuição, respeitadas as hipóteses de prevenção, nos termos da legislação processual vigente;" (grifo nosso)

A Resolução n. 104/2010 do CSMPF, ao determinar que todos os procedimentos instaurados de ofício devem ser distribuídos, prejudica o exercício da função pelos membros do MPF, cerceando o livre desempenho funcional. Uma das principais características do Ministério Público é agir de ofício, conforme os dispositivos legais citados.

Salvo em caso de ação penal pública condicionada, nenhuma norma constitucional ou legal diz que o membro do Ministério Público só pode agir mediante representação. A inércia é um princípio do Poder Judiciário, não do fiscal da lei.

O cidadão comum deve representar ao Ministério Público porque não pode instaurar inquérito civil ou propor ação penal pública. Mas o órgão que possui competência legal pode (e deve), atuar de ofício, para preservar o interesse público, que não pode ficar refém de uma representação.

Ademais, proibir a atuação de ofício pode prejudicar o sucesso de uma investigação. O procurador ou promotor que receber a “representação” do colega pode discordar que haja uma irregularidade e arquivar o caso (ou “empurrar com a barriga”). Pode-se alegar que os órgãos superiores do Ministério Público velarão pela defesa do interesse público, não homologando o arquivamento e baixando os autos para outro membro prosseguir. Mas, se é pra ser assim, seria melhor deixar o caso, desde o início, com quem tem interesse em desenvolvê-lo, e ninguém melhor para tanto que o procurador que o instaurou.

O Ministério Público é composto de pessoas com posições jurídicas muitas vezes opostas. O interesse em apurar uma denúncia pode variar completamente, dependendo de quem o fará.

Muito se discutiu sobre a legitimidade do Ministério Público para investigar crimes através de procedimento próprio, independente do inquérito policial, por prejudicar a imparcialidade do autor da denúncia, até que o STF decidiu que pode (RE 593727). Contudo, a Resolução n. 104/2010 do CSMPF adota o mesmo pressuposto, fundamenta-se nos mesmos argumentos usados para impedir que o Ministério Público possa investigar infrações penais.

Lamentavelmente, o Conselho Nacional do Ministério Público, quando foi chamado a se pronunciar sobre a Resolução n. 104/2010 e garantir o livre desempenho das funções ministeriais, lavou as mãos.11

3.2 Princípio da atuação vinculada à defesa do interesse público

O Ministério Público só atua, como regra, quando não há interesse público que o justifique, sendo essa sua maior particularidade. O interesse público geralmente é identificado com o interesse social (de toda a sociedade ou parte dela), correspondendo aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos com repercussão social. Proteger o interesse público é algo que deve incumbir a um órgão estatal: “o interesse público deve ser protegido por um órgão do Estado, uma vez que os particulares podem não ter interesse nisso.”12

A defesa da ordem jurídica e do regime democrático não é exclusividade do Ministério Público, sendo uma das funções atribuídas por lei à OAB:

“Art. 44. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), serviço público, dotada de personalidade jurídica e forma federativa, tem por finalidade:

I - defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado democrático de direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas;”

A defesa do interesse público sobrepõe-se à defesa da ordem jurídica (no sentido do conjunto de leis existente num país). Se uma lei for desobedecida, mas não houver interesse social no seu cumprimento (v.g., uma lei que garanta um direito individual disponível), o Ministério Público não terá legitimidade para intervir. Contudo, toda vez que houver interesse público, sempre será caso de sua participação.

O Ministério Público só pode agir em defesa de direitos individuais quando estes forem indisponíveis, em razão de expressa determinação constitucional (art. 127, in fine, da CF). A intervenção do Ministério Público em processos judiciais nos quais há interesse individual de incapazes ocorre por esse motivo.

3.3 Princípio da independência funcional

Independência funcional significa o exercício das competências legais sem subordinação a qualquer autoridade. Os membros do Ministério Público podem agir de forma independente nos limites de sua competência. Entre eles não há hierarquia funcional, apenas administrativa. Porém, todos estão subordinados às leis e às decisões judiciais.

Ainda hoje se discute como a unidade pode conviver com a independência funcional.13 Mas a resposta é simples: esta prevalece sobre aquela, sendo uma característica do Ministério Público brasileiro. Como observa Mazzilli:

“quando a Constituição diz que são princípios institucionais do Ministério Público a unidade e a indivisibilidade, ela já os limita imediatamente com a independência funcional; com isso, reduz a unidade e a indivisibilidade às características próprias do Ministério Público brasileiro.”14

A independência funcional, apesar de opiniões em contrário, dá ao membro do Ministério Público, designado pelo Procurador-Geral para oferecer denúncia, na forma do art. 28 do Código de Processo Penal15, autorização para também não oferecê-la, caso concorde com o arquivamento.

Obrigar um procurador ou promotor a oferecer denúncia, quando ele acredita que o fato não é criminoso, tanto viola o princípio da independência funcional como prejudica a ação penal proposta, pois o órgão ministerial provavelmente não agirá com o devido zelo para obter a condenação, não se interessando em produzir provas, recorrer, etc.

O melhor é que o membro do Ministério Público que recebeu a delegação, caso não concorde com o oferecimento da denúncia, devolva o procedimento ao Procurador Geral, solicitando a designação de outro membro.16

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Sobre os autores
Alexandre Assunção e Silva

Procurador da República. Mestre em Políticas Públicas.

Magaly de Castro Macedo Assunção

Advogada especialista em Ciências Criminais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Alexandre Assunção ; ASSUNÇÃO, Magaly Castro Macedo. Princípios científicos do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4636, 11 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41846. Acesso em: 16 abr. 2024.

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