O texto legal é muito claro: é requisito essencial do testamento público que ele seja escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas... (cf. 1864, inc. I do Código Civil). O texto é claro mesmo? Não! Não é tão simples como parece.
É possível discutir, e com bom fundamento legal, sobre quem seria o substituto habilitado a lavrar os testamentos, nos tabelionatos em que o titular está ausente, impossibilitado ou simplesmente muito ocupado para poder atender a todos que o procuram para lavrar este tipo especial de ato notarial.
O legislador, no novo Código Civil, foi sábio ao prever a possibilidade de existir impedimento, ausência ou impossibilidade do tabelião pessoalmente lavrar os testamentos em seu cartório e permitiu ao seu “substituto legal” fazê-lo.
A lei 8.935/94, por sua vez, em seu artigo 20, optou pela utilização do termo substituto de uma forma ampla e previu a possibilidade de existirem vários substitutos atuando em um único tabelionato, tendo, entretanto, deixado expresso que, dentre eles, apenas um deverá ser eleito pelo tabelião como a pessoa que o substituirá em suas ausências e impedimentos no exercício de sua função pública e que os substitutos poderiam praticar todos os atos próprios do tabelião, com exceção dos testamentos (cf. o parágrafo 4º).
Este substituto a que se refere o parágrafo 5º do citado artigo 20 da Lei 8.935, exerce função análoga àquela exercida pelo antigo Oficial Maior. Trata-se de uma posição hierarquicamente superior à exercida pelos demais escreventes.
A Lei 8.935/95 tem muitos méritos, entretanto, muito provavelmente o legislador exagerou ao pretender modificar tão radicalmente o sistema que existia há décadas e que com a nova ordem constitucional estava necessitando de regulamentação. (1) O fato é que, desde o início de sua vigência, não é muito precisa a utilização da tradicional denominação escrevente e é totalmente inaceitável a velha denominação oficial maior.
Os prepostos formalmente autorizados à prática de atos nos cartórios de notas são substitutos do tabelião. Esta é a denominação legal: os substitutos podem praticar atos com a mesma fé pública do tabelião, desde que sejam expressamente autorizados por ele. Neste passo, também a lei foi sábia, pois seria notoriamente impossível ao tabelião praticar pessoalmente todos os atos que devem ser realizados em um cartório. A contratação de prepostos é uma necessidade.
Entretanto, a denominação “substituto”, dada pela lei, dá margem à interpretação de que, a partir do início da vigência do novo Código Civil, qualquer substituto autorizado à prática de atos notariais estaria habilitado a lavrar testamentos públicos nos tabelionatos do país e que a ressalva da parte final do parágrafo 4º da Lei 8.935 estaria tacitamente revogada. Puro silogismo combinado com a regra de hermenêutica que regulamenta o conflito de leis no tempo (art. 2º parágrafo 1º da LICC).
Entretanto, a prudência – uma das maiores virtudes do tabelionato – indica no sentido de que esta interpretação não pode estar correta. Onde estaria o problema? Por que não entregar a responsabilidade de lavrar testamentos a todos os substitutos que lavram escrituras no tabelionato?
Como ato tão formal e solene, dotado de características singulares e fruto de uma tradição histórica tão rica e antiga, que sempre se considerou como atividade privativa do próprio tabelião e que apenas em casos excepcionais poderia ser praticado por seu substituto (leia-se, conforme a tradição centenária, pelo Oficial Maior), parece difícil de se aceitar que o legislador, na redação do novo Código Civil, tenha dado a ele o mesmo tratamento dispensado a qualquer outro ato notarial.
O que se conclui é que o novo Código Civil não pretendeu, com o dispositivo acima referido, promover uma revolução radical na formalidade exigida para a validade e eficácia dos testamentos públicos e tampouco revogar a parte final no parágrafo 4º do artigo 20 da Lei 8.935.
Em sua redação atual o Código Civil, aperfeiçoando a antiga disposição constante no artigo 1.632 do Código anterior, apenas acrescentou a possibilidade de existir, como solução para viabilizar a realização de testamento público, a realização do ato pelo substituto do tabelião flexibilizando a exigência da prática pessoal e ainda permitindo a utilização de minuta, notas ou apontamento apresentados em tabelionato.
Note-se que o texto é expresso ao indicar a necessidade da prática ocorrer pelo próprio tabelião ou seu substituto legal.
Propositalmente, não se utilizou a expressão vaga “substituto”. Com clareza absoluta, definiu-se que o testamento poderia ser lavrado apenas pelo “substituto legal” e não por qualquer outro.
A correta interpretação do inciso I do artigo 1.864, portanto, indica que apenas o substituto automático do tabelião (aquele que foi por ele indicado conforme o paragrafo 5º, do art. 20, da Lei 8935/94) é que recebeu competência para lavrar testamentos, nas ausências, impedimentos ou impossibilidades do tabelião pessoalmente fazê-lo.
O código civil, na medida em que foi editado posteriormente à vigência da Lei 8.935/94, poderia ter tido uma redação mais precisa do que a efetivamente utilizada? Certamente que sim. A expressão “substituto legal”, grande novidade em relação ao texto do código anterior, ao que parece, não levou em consideração o regulamento editado pela Lei 8.935/94.
Provavelmente, foi mais um dentre os pequenos deslizes que ocorreram quando se decidiu acelerar a tramitação daquele projeto de Código Civil, que repousava nos arquivos do Congresso Nacional há tantos anos. Pelo que consta, são várias as pequenas inconformidades decorrentes da vontade política de apressar a promulgação do novo código.
Entretanto, é preciso convir, se o regulamento do art. 235 da CF, a Lei 8.935, decidisse por manter as denominações que tradicionalmente existiam para os prepostos do tabelião (auxiliares, escreventes e oficial maior), não haveria problema algum para o entendimento da nova disposição sobre as formalidades necessárias à validade do testamento público. Apenas o tabelião e o oficial maior poderiam fazê-lo, mas não qualquer outro eventual preposto (ou substituto) que venha a atuar em nome do tabelião e por ele autorizado.
NOTA - (1) Este autor já se manifestou em outra ocasião sobre esta ordem de argumentação. Talvez tenha ocorrido algum excesso na redação da Lei 8.935, regulamento do artigo 235 da CF. Vide o texto “Cartório, um nome a ser preservado” – acesso possível em http://www.notariado.org.br/blog/?link=visualizaArtigo&cod=399 - “ ... não se usou o termo cartório por entendê-lo, à época, pejorativo, arcaico e representativo de um passado que se buscava superar.... A esperança de mudanças e a expectativa de um futuro verdadeiramente novo, como de se esperar, eram os vetores ... Era uma época de mudanças necessárias; limiar de uma nova era; tempo de abandonar o passado - velha roupa suja e desgastada - e imaginar um futuro novo e diferente - radiante vestimenta imaginada, ainda em processo de modelagem. Entretanto, não é raro, que no meio de um processo evolutivo, o homem fique nu, pois, tendo se despido dos farrapos e sem ainda possuir a nova roupa tão cuidadosamente concebida, a ele resta apenas a nudez de um presente em mutação.”.