Perfil “estagnador” da Carga Tributária Brasileira
Creio possível afirmar que grande parte da carga tributária brasileira incide sobre atividades produtivas da economia, preferindo a “geração de riquezas” à “acumulação de riquezas”. Ou melhor, quem decide “trabalhar” no Brasil, seja como pessoa física, seja como agente econômico, paga mais tributos do que aquele que decide imobilizar suas riquezas.
No relatório do SINPROFAZ, a que fizemos referência, a entidade concluiu que 94,4% da carga tributária recaiu em 2013 sobre bens, serviços, renda e folha de salários. Os tributos sobre propriedades oneraram apenas 1,4% do PIB (ou 3,9% da carga) e as transações financeiras representaram apenas 1,7% da carga tributária.
Portanto, parece lícito concluir que, no Brasil, quem investe recursos para gerar empregos e negócios paga muito mais tributos que aquele que prefere acumular riquezas e viver de especulação. Isso provoca o que chamo de perfil “estagnador”, na medida em que a carga tributária produz como efeito colateral o desestímulo à produção de novas riquezas, tendendo a estagnar a circulação na economia.
Tal efeito, provavelmente involuntário por parte do Estado, explica a imensa “mortalidade infantil”[19] que aflige as pequenas empresas no Brasil. As pequenas empresas, aliás, dificilmente deixam de ser pequenas em nosso país, e muitos empreendedores acabam fracassando e convertendo-se em devedores da Fazenda Pública.
Não resta dúvidas que esse perfil estagnador afeta a arrecadação. Se o Estado sobrevive retirando uma parte da produção da economia, quanto menor for esta produção pior para a arrecadação do Estado.
Reflexos da Atividade Criminosa no Brasil
As atividades consideradas ilícitas pelo nosso Direito Penal são realizadas por seus autores diante de motivações diversas. Embora alguns crimes sejam cometidos por razões não econômicas, não se pode negar que, especialmente no Brasil, tem crescido o percentual de crimes com nítida motivação econômica. Podemos citar, como exemplos, os “crimes de colarinho branco”, contrabando, descaminho, tráfico de drogas e armas, crimes contra a administração pública, etc.
Toda vez que uma atividade ilícita com motivação econômica obtém êxito, o produto desta arrecadação passa ao campo da informalidade e, por consequência, é prejudicada a arrecadação do Estado.
Assim, por exemplo, quando uma quadrilha consegue desviar recursos públicos num esquema de corrupção e o dinheiro não é restituído integralmente, o erário é prejudicado de múltiplas formas:
a) O dinheiro desviado precisará ser reposto por mais arrecadação, daqueles mesmos contribuintes fiéis e honestos;
b) Este mesmo dinheiro desviado será em algum momento utilizado pelos autores do crime, mas não necessariamente em nosso território e em favor da economia brasileira;
c) O triunfo do crime estimula a sonegação, pois o contribuinte que entrega uma fatia cada vez maior do produto suado de seu trabalho ao Estado sente-se injustiçado, assim como o irmão do filho pródigo[20] ou o “Homem Honesto” de Rui Barbosa[21]. Este contribuinte é convidado, pela própria incompetência do sistema, a deixar de arrecadar ou, pelo menos, deixar de empreender.
Mesmo quando o patrimônio lesado é estritamente privado, a arrecadação também é prejudicada. A sensação de insegurança e de impunidade desestimula as pessoas a empreender e a realizar novas atividades. Menos ativa, a Economia é menos próspera e, sem dúvida, menos rentável ao Estado.
Alguns números dão a dimensão do problema. O custo de crimes contra o varejo, somado aos investimentos em prevenção, chegou a US$ 2,1 bilhões em 2009, segundo pesquisa da BBC News[22]. Outra pesquisa do IBGE e ETCO, em 2014, demonstrou que a economia informal movimentou R$ 830 bilhões, ou 16,2% do PIB brasileiro. Claro que nem todas as atividades consideradas integrantes da informalidade são necessariamente criminosas, mas penso lícito afirmar que boa parte destas atividades estão relacionadas direta ou indiretamente ao crime organizado, tráfico de drogas ou armas.
Em 2004 o Ministério da Justiça criou o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI). Este Departamento tem por principal finalidade empreender esforços para aumentar o percentual de recuperação de produtos de crimes, mas apresenta números modestos. Em seus dez anos de existência, conseguiu repatriar apenas R$ 34,2 milhões. Estima-se que os resultados em recuperação são muito inferiores aos custos do próprio órgão[23].
As leis que prevêem condutas ilícitas penais-tributárias têm uma forte tendência a reprimir condutas que busquem ludibriar a fiscalização, tais como emissão de documentos falsos ou inidôneos e outros. Não se vê nos tipos penais um real interesse em prevenir crimes com potencial impacto sobre a arrecadação, ou mesmo na efetiva recuperação do produto do crime e respectiva parcela de arrecadação. Embora não seja especialista em matéria penal, a impressão que o conjunto desta legislação me causa é do interesse maior em intimidar os contribuintes habitualmente adimplentes, do que reprimir os verdadeiros e convictos inadimplentes.
Boa parte dos atuais tipos penais (em especial os da Lei 8137) poderiam muito bem converter-se em ilícitos administrativo-tributários, com previsão de penalidades compatíveis e severas (multas mais altas, interdição de exercício de atividades quando necessário, etc.).
Parece-nos que esta legislação precisa sofrer uma ampla e cuidadosa reforma, com vistas a gerar um elenco de tipos penais mais adequado ao enfrentamento correto da questão. Em primeiro lugar, parece-me essencial que a legislação demonstre capacidade de separar a situação do devedor insolvente, do devedor criminoso. É que nem todos os devedores do Estado brasileiro são criminosos.
Na verdade, a grande maioria é composta de ex-empreendedores, que fracassaram em seus empreendimentos e, em vista da conjuntura tributária vigente, acabaram tragados pela famosa “bola de neve” tributária.
Mas não há como negar que uma parte da Dívida Ativa é reflexo das atividades ilícitas e, para esta parcela, parece-me que a solução deve ocorrer simultaneamente a solução em seara penal.
Para cada situação cabe uma solução diferente. Para os devedores insolventes, cabe aumentar as oportunidades de composição extrajudicial. Por exemplo, aumentar as possibilidades de compensação, transação, remissão, parcelamentos, moratórias, etc. Falaremos adiante sobre algumas sugestões, hoje rejeitadas pelo nosso ordenamento.
Para os devedores criminosos, a solução da dívida ativa reflexa deve ser integrada à persecução penal, havendo uma cooperação habitual e obrigatória entre as Procuradorias Fiscais, Ministério Público e Polícias. Hoje esta cooperação é episódica e insuficiente na maioria dos casos. O uso sábio da tecnologia da informação pode ser um caminho para concretizar este ideal.
Outra providência necessária é a integração e aperfeiçoamento dos registros públicos no Brasil. Não parece adequado que uma Procuradoria Fiscal precise aguardar por vários dias para receber uma cópia de matrícula de registro de imóveis. E não parece adequado também que existam ainda (em pleno século XXI) matrículas que não correspondem a realidade dos imóveis existentes.
A inconsistência e a fragmentação dos bancos de dados oficiais no Brasil faz com que a Fazenda Pública atue, quase sempre, sem ter acesso aos fatos reais, o que explica o excesso de presunções previstas em nossa legislação. Parece-nos que se a Administração Tributária tivesse acesso, em tempo real, a verdadeira e completa situação fiscal, financeira e econômica do contribuinte, teria condições de ter maior eficiência na prevenção e recuperação de casos de sonegação e evasão fiscal. Mas também teria condições de realizar atos mais perfeitos e justos, em proveito dos próprios contribuintes.
Aumentando e facilitando a base de informações, a Administração Tributária poderia detectar, mais rapidamente, casos de ilícitos penais e desencadear mais eficazmente a reação estatal. Poderia também evitar o ajuizamento inútil de milhares de execuções fiscais, que só oneram o erário e humilham inutilmente os devedores insolventes. Poderia também aplicar as soluções mais adequadas para cada caso, conforme a atual capacidade contributiva de cada devedor.
Um Novo Processo Legislativo Tributário
Para aumentar a carga tributária no Brasil basta que o executivo edite medidas provisórias, as quais podem tratar sobre a maioria dos assuntos tributários e são, via de regra, concebidas e aprovadas apressadamente.
Este cenário cria uma situação extremamente desfavorável ao planejamento da Atividade Financeira do Estado, e é uma das principais causas da legislação confusa e pouco eficiente que temos no Brasil em matéria tributária.
O Executivo tem superpoderes para instituir ou aumentar tributos no Brasil, graças a este sistema. Como consequência, a instituição e aumento de tributos passa a fazer parte da política econômica do governo, quando deveria submeter-se ao planejamento financeiro-orçamentário geral do ente federativo.
Em que pese, oficialmente, o ordenamento preceitue sistemática diversa, na prática as coisas se dão da seguinte maneira: o Estado descobre, inesperadamente, que precisa aumentar as receitas; os Ministros são cobrados a achar uma solução, em especial o da Fazenda; este então propõe texto de medida provisória, aumentando tributos que serão pagos pelos mesmos contribuintes fiéis de sempre; o Presidente assina e pressiona o Congresso a aprovar (o que quase sempre ocorre); a doutrina protesta inutilmente; os poucos contribuintes melhor aparelhados vão ao Judiciário que, às vezes, estabelece limites (normalmente insuficientes e parciais).
O que menos se faz, entretanto, é perquirir porque o Estado, inesperadamente, fica sem recursos. Não existe um planejamento orçamentário no País? E a previsão da Receita, obrigatoria e previamente constante da Lei Orçamentária? Será que um país que não está em guerra, não é assolado por desastres naturais constantes precisa trabalhar dentro deste nível de imprevisão?
Matéria tributária, creio, deveria ser fruto de prévia e expressa autorização legislativa, assim como ocorre com as leis orçamentárias. Por isso, necessário que seja vedado o uso de medidas provisórias para matéria tributária, salvo em casos de guerra, grave comoção interna e calamidade pública.
Na elaboração dos projetos de Lei em matéria tributária, ainda, necessária maior fundamentação e rigor. Relatórios de impacto orçamentário-financeiro e pareceres prévios de órgãos de controle técnico são necessários para a análise pelo Congresso.
Gerar leis tributárias mais legítimas, melhor planejadas e elaboradas também pode aumentar a arrecadação. Leis mais perfeitas fecham espaço para a sonegação, para a litigância habitual maliciosa[24], para controvérsias administrativas ou judiciais e aumentam o compromisso dos próprios contribuintes com seu cumprimento, na medida em que foram (ao menos) ouvidos no processo de sua criação.
Por outro lado, as autoridades, cientes que não poderão contar com novas fontes de receitas a curto prazo, vincular-se-ão mais ao planejamento orçamentário e certamente serão forçadas a administrar melhor os recursos públicos.
Uma Nova Instância Administrativa
No meu sentir, a solução de conflitos tributários no Brasil deveria ser predominantemente resolvida em instância administrativa, e somente em casos raros e específicos pelo Poder Judiciário. Tal cenário, todavia, vem sendo prejudicado em especial pela falta de autonomia financeira, orçamentária e jurisdicional dos órgãos de Instância Administrativa.
É princípio basilar do Direito Processual que o julgador deve ser equidistante às partes e a situação sob julgamento. Contudo, os órgãos de Instância Administrativa no Brasil são subordinados ao Ministro da Fazenda e seus pares nos entes descentralizados. Ficam, estranhamente, presos ao Princípio da Hierarquia, obrigados a julgar atos e decisões que, em última análise, foram ordenados pelos chefes do Executivo ou seus Ministros e Secretários.
Como decorrência deste cenário, é vedado (em regra) aos órgãos julgadores administrativos afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade. As exceções existentes são raras e se restringem a aplicar decisões já tomadas por outras autoridades ou Poderes[25].
Tribunais e órgãos administrativos de julgamento independentes, gozando de autonomia administrativa e financeira, com prerrogativas e obrigações semelhantes aos membros do Poder Judiciário causariam aumento da arrecadação, e não diminuição, como seria de se supor.
Assim acredito porque a existência de tais órgãos representaria uma aliança entre os contribuintes e o Fisco em prol da arrecadação. Para ser autenticamente equidistante, é preciso que a Instância Administrativa seja mantida por representação paritária de entidades representativas dos contribuintes e do Estado. Tal composição já ocorre na maioria dos Conselhos de Contribuintes e no CARF[26], mas não consegue produzir os efeitos desejados graças à falta de autonomia frente ao Poder Executivo e demais impedimentos a seu pleno funcionamento.
Independente, a Instância Administrativa passaria a ser a inteligência por trás do sistema tributário nacional, gerando soluções e inovações capazes de manter e aprimorar a arrecadação, dentro de bases aceitáveis para ambas as partes (contribuintes e Fisco). Outras vantagens são detectáteis neste cenário.
Uma das vantagens da independência da Instância Administrativa seria estabelecer uma maior uniformidade na aplicação da legislação tributária. Quanto mais eficiente e justas forem as decisões proferidas pelos órgãos administrativos, menor divergência terão em relação às decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Tal uniformidade, quanto maior, mais estimula a arrecadação espontânea e dificulta a atuação dos litigantes habituais maliciosos (estatais ou privados).
Outra vantagem ocorre na medida em que os parâmetros estabelecidos para julgamento serão fruto do consenso entre representação paritária, substituindo a política de confronto pela de cooperação entre contribuintes e Fisco. É intuitivo, segundo a experiência humana, que a cooperação gera melhores resultados que o conflito, pois estimula a consciência, por parte de todos, que a arrecadação é um bem comum, e não um ritual de sacrifício de uma das partes.
A ascensão da Instância Administrativa traria outro fator importantíssimo: o surgimento de um órgão especializado em matéria tributária, com condições de estar mais presente às relações tributárias. Tal cenário permitiria ao Estado conhecer melhor a situação real dos contribuintes, avaliar sua real capacidade contributiva e, também, detectar e reagir mais rapidamente a atitudes criminosas.
Mas algumas mudanças são necessárias para que ocorra esta ascenção. A seguir, elencamos algumas, sem a intenção de estabelecer numerus clausus.
A primeira é estabelecer um regime jurídico sólido, que assegure aos órgãos de instância administrativa a independência e autonomia que precisam. Os órgãos administrativos precisam ter a liberdade e a responsabilidade de tomarem decisões, ainda que desagradem à cúpula do Executivo ou de quem quer que seja.
A segunda é que estes órgãos atuem integrados com a sociedade. Sejam dirigidos por conselhos compostos de representantes dos contribuintes, dos meios acadêmicos (em especial das Faculdades de Direito), do Fisco, do Ministério Público, do Legislativo, do Judiciário e de toda e qualquer representação que assegure a imparcialidade do órgão.
A terceira é que sejam assegurados recursos para que o órgão tenha corpo técnico qualificado, de forma a se transformar um órgão de excelência em matéria tributária, capaz de gerar decisões que sejam referências aceitáveis pela maioria.
A quarta é que o método democrático seja a base da constituição e funcionamento de tais órgãos.
A quinta, seja assegurado a tais órgãos acesso pleno a todas as bases de dados disponíveis, de forma que possa tomar decisões coerentes com a realidade, tornando o uso das presunções raro e subsidiário.
A sexta, sejam estes órgãos intensamente fiscalizados por órgãos dele independentes, de forma a garantir a idoneidade e a regularidade de sua atuação.