As políticas de ação afirmativa e seus reflexos na atual conjuntura

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19/08/2015 às 17:00
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Diante dos avanços da globalização, as políticas de inclusão e de promoção da igualdade, em todos os sentidos, mostram-se fundamentais para a estabilização social.

INTRODUÇÃO

É inegável que a diversidade e o multiculturalismo estão cada vez mais presentes na vida da humanidade. Diversidades étnicas, religiosas, econômicas, culturais, de gênero e também etárias são fatores que desagregam naturalmente. Tendo a democracia como um pressuposto indispensável (o que conferirá legitimidade) e o direito como instrumento de concretização, as políticas de ação afirmativa consubstanciam a mais clara e evidente iniciativa de promoção da igualdade em seu sentido maior.

Inicialmente, são traçadas linhas gerais do que seja igualdade formal e igualdade material. O que parece tão óbvio e que percorreu toda a história da civilização ocidental (de Aristóteles, passando pelo medievo até os dias atuais), sob um prisma teórico, é penoso e muitas vezes incompreensível de se concretizar. O caráter formal da norma jurídica desprovida de qualquer absolutismo e arraigada de um desejo de máxima satisfação, sob a perspectiva material, envolve aquilo que se convencionou chamar isonomia. Mostra-se que se deve nutrir a consciência de que as diferenças aparentes não podem ser motivo de segregação, mas mero traço de identidade, individual ou coletiva, carregado de tradição.

Já num segundo momento, abordam-se aspectos conjunturais relevantes a serem considerados na adoção de políticas de ação afirmativa. O mundo envolto na globalização apresenta um novo perfil. Perfil este caracterizado por um consumismo e uma importância considerável do aspecto econômico em detrimento de outras questões. O individualismo e a interdependência das nações, criando uma maior permeabilidade nas relações internacionais, intensificam os conflitos e consequentemente a intolerância, a segregação e as desigualdades. Esta é uma realidade a ser vencida. Dentro deste contexto global, a realidade brasileira apresenta características singulares que mostram toda problemática de exclusão, de abandono e de descaso de anos a fio, notadamente do Estado que sempre adotou uma postura tecnicista desprovida de qualquer objetivo voltado à concretização de direitos fundamentais.

A democracia e mais recentemente o Estado Democrático de Direito são entes presentes na cultura ocidental. O culto à liberdade e à igualdade, surgidos nas revoluções liberais, fortaleceu-se ao longo dos tempos e hoje são praticamente indispensáveis para a vida dos povos europeus e americanos. O debate público nas diferentes arenas (institucionais ou não) configura-se importante instrumento na promoção de tais iniciativas, o que se procura demonstrar nesta apresentação. O processo de inclusão gera conflitos e fomenta ódios, o que merece do Estado uma atenção especial no desenvolvimento de políticas que sejam garantidoras da igualdade em seu sentido maior. Direitos como acesso à educação, saúde, saneamento devem ser, sobretudo, não simples deveres do Estado, mas instrumentos efetivos de inclusão e de promoção da cidadania.

É inegável o importante papel que as ações afirmativas exercem neste contexto de globalização, onde o consumismo e o individualismo são marcas fortes e importantes. Esta exposição não visa esgotar o debate, mas procura iniciar uma reflexão em torno da aceitação de todos os seres humanos como indivíduos merecedores de respeito e dignidade.

O tema não pode se perder em debates filosóficos ou ser tratado como quimera teológica, mas deve ser enfrentado pelo Direito com o rigor e a seriedade que a problemática exige.


IGUALDADE FORMAL VERSUS MATERIAL

Ao longo da história, a humanidade buscou, em meio a lutas até mesmo sangrentas, a igualdade em sua plenitude. A busca incansável pelo reconhecimento de todos os indivíduos como sujeitos dotados de direitos e merecedores de dignidade é algo que se mantém latente na vida cotidiana e é objetivo a ser constantemente almejado pelo Direito. Já na Grécia antiga, Aristóteles já tratava a ideia de igualdade ligada à ideia de justiça, o que, ao longo dos tempos, ganhou novos contornos adequados às realidades que surgiriam. Também na Idade Média, o pensamento aristotélico influenciou pensadores a respeito do tema, como São Tomás de Aquino1. Assim ensinava Aristóteles:

Ora, a igualdade implica pelo menos dois elementos. Portanto, o justo deve ser ao mesmo tempo intermediário, igual e relativo (justo para certas pessoas, por exemplo); como intermediário, deve estar entre determinados extremos (o maior e o menor); como igual, envolve duas participações iguais; e, como justo, ele o é para certas pessoas. O justo, portanto, envolve no mínimo quatro termos, pois duas são as pessoas para quem ele é de fato justo, e também duas são as coisas em que se manifesta – os objetos distribuídos. E a mesma igualdade será observada entre pessoas e entre as coisas envolvidas, pois do mesmo modo que as últimas (as coisas envolvidas) são relacionadas entre si, as primeiras também o são. Se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais; mas isso é origem de disputas e queixas (como quando iguais têm e recebem partes desiguais, ou quando desiguais recebem partes iguais). Ademais, isso se torna evidente pelo fato de que as distribuições devem se feitas “de acordo com o mérito de cada um”, pois todos concordam que o que é justo com relação à distribuição, também o devem ser com o mérito em um certo sentido, embora nem todos especifiquem a mesma espécie de mérito: os democratas o identificam com a condição de homem livre, os partidários da oligarquia com a riqueza (ou nobreza de nascimento), e os partidários da aristocracia com a excelência.2

Destarte, a desigualdade, ao longo da história, configurou-se como uma das maiores violências contra aquilo que se pode denominar dignidade humana. A humanidade se conformou com este grande hiato, que divide os seres humanos por critérios étnicos, econômicos, culturais e até mesmo de gênero. Determinados grupos carregam uma espécie de “maldição”, já que a certas características que os diferenciam acabam sendo causa de privação de direitos, bem como motivo de discurso de ódio. No período medieval, o caráter religioso de distinção era preponderante. Ou seja, quem não fosse seguidor da religião cristã era considerado infiel e, portanto, merecedor de discriminação. O alemão Jürgen Habermas dispõe com propriedade a influência da religião como fundamento desta concepção:

As doutrinas religiosas da criação e da história da salvação haviam fornecido razões epistêmicas para que os mandamentos divinos não fossem vistos como advindos de uma autoridade cega, mas sim como razoáveis ou “verdadeiros”. Ora, quando a razão se retira da objetividade da natureza ou da história da salvação e se transfere para o espírito de sujeitos atuantes e julgadores, tais razões “objetivamente razoáveis” para os julgamentos e os atos morais têm de ser substituídas por outras, “subjetivamente razoáveis”. 3

As revoluções liberais, ocorridas no final do século XVIII, revestem-se de singular importância como estopim de um processo de conquistas de direitos fundamentais, notadamente a igualdade e a liberdade. Aliás, não há qualquer inovação sob uma perspectiva racional, mas a busca de um avanço no caminhar do curso histórico que rejeita qualquer comportamento despótico.

Analisando a realidade vivida pela humanidade nos dias atuais, este discurso não foi abandonado. No Oriente Médio, o fundamentalismo islâmico e as práticas religiosas ainda são consideradas a base para sustentação de toda uma sociedade que vive, de alguma forma, num grande isolamento cultural e também econômico.

O discurso da igualdade pode parecer óbvio, porém na linha do tempo mostra-se novo e carecedor de inúmeras medidas implementadoras. Há pouco mais de meio século o mundo assistia as atrocidades praticadas nos campos de concentração nazistas onde judeus e outros grupos minoritários eram barbaramente eliminados sob o argumento de se purificar a raça ariana, cultivando um antissemitismo doentio, visto sob um prisma moderno. Celso Lafer, fazendo alusão a Hannah Arendt, assim discorre:

O anti-semitismo moderno, ao contrário, resulta das transformações ocorridas na Europa a partir do século XVIII. Estas induziram a uma dissolução da sociedade tida como tradicional, através do processo que se convencionou chamar de modernização. Entre os importantes fatores deste processo de transformação, cabe os judeus – que antes não participavam como sujeitos da vida política e social mais ampla. Este processo de inclusão e assimilação dos judeus e dos outros grupos à civitas – a lógica, por assim dizer, da liberação, trazida pela ilustração e pela Revolução Francesa – gerou, em relação aos judeus, manifestações de intolerância que fizeram do anti-semitismo um instrumento de poder que o prefigura, nas suas características, como uma pré-história do totalitarismo. Neste sentido, o anti-semitismo moderno constitui uma ruptura com a tradição ocidental do mesmo tipo que outras tantas rupturas, que no seu conjunto assinalam as tendências históricas do mundo contemporâneo. 4

A partir das Declarações de Direitos oriundas das revoluções liberais e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o discurso da igualdade não pode ser lido de forma linear, absoluta. As características e principalmente as diferenças de cada indivíduo devem constituir fator preponderante para busca desta igualdade. Norberto Bobbio assim destaca conceitos relevantes sobre igualdade:

Com relação ao terceiro processo, a passagem ocorreu do homem genérico – do homem enquanto homem – para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (o sexo, a idade, as condições físicas), cada um dos quais revela diferenças específicas, que permitem igual tratamento e igual proteção. A mulher é diferente do homem; a criança, do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente normais, dos deficientes, etc. 5

Maurizio Fioravante aborda com propriedade a igualdade sob uma perspectiva de um constitucionalismo visto na atualidade:

[...] O princípio da igualdade, que - nas constituições democráticas - tende a afirmar-se para além da mera proibição de discriminação, atingindo o nível de acesso a bens básicos de uma sociedade, como a educação ou trabalho, refletindo assim a outra grande questão da garantia e da realização dos direitos sociais. (Tradução livre) 6

A concretização da igualdade, em seu sentido material, exige, sobremaneira, o respeito às diferenças o que leva a um necessário contraponto ao direito à liberdade. Tal evidência se confirma no caso Grutter v. Bollinger, julgado pela Suprema Corte Americana em 20037. Neste rumo, Ronald Dworkin assim dissertou:

Será mesmo mais importante que a liberdade de algumas pessoas seja protegida para melhorar a vida que essas pessoas levam, do que outras pessoas, que já estão em pior situação, disponham dos diversos recursos e de outras oportunidades de que elas precisam para levar uma vida decente? Como poderíamos defender essa tese? Talvez o dogmatismo seja tentador: declarar nossa intuição de que a liberdade fundamental que não se deve sacrificar à igualdade, e afirmar que não é preciso dizer mais nada. Mas isso é por demais superficial e insensível. Se a liberdade tem importância transcendente, deveríamos estar aptos a dizer algo, pelo menos, que a justificasse.8

Toda história do constitucionalismo se funda sobre ideais de igualdade e liberdade, constituindo verdadeiro rompimento com antigas práticas que aprisionavam o indivíduo e o tornavam mero objeto perante o soberano. Contudo, liberdade e igualdade coexistem dentro de um ambiente social, consubstanciado por um paradigma chamado Estado Democrático de Direito, por meio de uma forte tensão que impõem mitigações e concessões para que haja um aumento no nível de satisfação desses direitos fundamentais. A conjuntura atual caracteriza-se por aquilo que Zygmund Bauman chama de “Modernidade Líquida” 9. Ou seja, a liquidez ou fluidez conjuntural refere-se às mudanças rápidas e as múltiplas diversidades acerca do mundo da vida10.

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Neste contexto, absolutamente heterogêneo, a concretização dos direitos fundamentais em sua plenitude deve ser um objetivo a ser alcançado. A igualdade em seu sentido formal, expressada no artigo 5º, caput, da Constituição da República, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", não pode deixar de lado o caráter universalista deste enunciado, devendo ser materialmente concretizado por meio de políticas que abarquem um número indefinido de cidadão, por meio de ações de cunho afirmativo, cujo alvo sejam grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas, culturais, étnicas ou quaisquer outras que caracterizem um diferença particular.

Neste cenário, é salutar mencionar aquilo que John Rawls chamou de “justiça distributiva”. Assim discorreu Rawls: “As desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos” 11.

Não há, portanto, outro caminho para uma verdadeira concretização do direito à igualdade que não seja a adoção de ações afirmativas, que caráter universalista, que possa atingir a vulnerabilidade de certos grupos. Assim, é imperioso identificar os grandes problemas que atingem a sociedade, para que, de forma pró-ativa, possa-se adotar ações eficazes para promoção da igualdade em sentido material.


ASPECTOS CONJUNTURAIS ACERCA DA NECESSIDADE DE POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA

Aspectos de cunho econômico asseveram a insensibilidade humana. Não se observa nos indivíduos aquilo que se traduz na alteridade. Vive-se numa sociedade consumista, individualista e que se abstém da convivência interpessoal, gerando novos problemas que se configuram próprios de uma realidade caracterizada por influências incontroversas da chamada globalização. Mas, o que seria esta globalização? O sociólogo polonês Zygmund Bauman dispõe:

A “globalização” está na ordem do dia; uma palavra da moda que se transforma rapidamente em um lema, uma encantação mágica, uma senha capaz de abrir as portas de todos os mistérios presentes e futuros. Para alguns, “globalização” é o que devemos fazer se quisermos ser felizes; para outros, é a causa da nossa infelicidade. Para todos, porém, “globalização” é o destino irremediável do mundo, um processo irreversível; é também um processo que nos afeta a todos na medida e da mesma maneira. Estamos todos sendo “globalizados” – e isso significa basicamente o mesmo para todos. 12

A globalização é um caminho sem volta. É um dado da nossa realidade. Abertura e expansão de mercados, comunicações rápidas e eficazes e acesso fácil a bens de consumo13 marcam este fenômeno que envolve toda a humanidade. Também Bauman assim procura retratar esta realidade por meio daquilo que ele chama de cultura de oferta:

A cultura de hoje é de ofertas, não de normas. Como observou Pierre Bourdieu, a cultura vive de sedução, não de regulamentação; de relações públicas, não de controle policial; da criação de novas necessidades/desejos/exigências, não de coerção. Esta nossa sociedade é uma sociedade de consumidores. E, como o resto do mundo visto e vivido pelos consumidores, a cultura também se transforma num armazém de produtos destinados ao consumo, cada qual concorrendo com os outros para conquistar a atenção inconstante/errante dos potenciais consumidores, na esperança de atraí-la e conservá-la por pouco mais de um breve segundo. 14

Dado todo arcabouço conceitual já exposto, salutar se torna destacar a realidade brasileira. De uma cultura considerada primitiva, inferior, mas, ao mesmo tempo, rica em diversidades e também em problemas. O Brasil é um país que tem um território com dimensões continentais, superando 8 milhões de quilômetros quadrados. Neste vasto território, as diferenças regionais são gritantes para não dizer preocupantes. No sudeste, considerada uma das regiões mais desenvolvidas, dentro de uma mesma cidade é possível se verificar um grande abismo: bairros nobres, com serviços públicos de qualidade, ruas pavimentadas e limpas coexistindo com comunidades pobres sem disponibilidade de serviços públicos essenciais, como fornecimento de água, captação de esgoto, coleta de lixo, serviço de saúde, escolas e creches. É este o pano de fundo que ilustra o cenário que se descortina e desafia a sociedade em geral a promover ações que promovam, de maneira efetiva, a inclusão, a dignidade, enfim, a igualdade em sua plenitude. O primeiro grande desafio é certamente a compreensão desta realidade. É abrir os olhos para este cenário. Jessé Souza bem explora esta necessidade de compreensão da realidade:

O tema da gênese da identidade nacional peculiar a cada sociedade moderna é fundamental para a compreensão da forma como essa sociedade e seus membros se percebem a si próprios. Tal autocompreensão, por sua vez, é o que permite e explica o desenvolvimento social e político em uma dada direção e não em outra qualquer. É ela que permite explicar por que existem sociedades mais ou menos justas, igualitárias ou liberais. Nesse sentido, o mito de pertencimento nacional faz parte de uma espécie de “núcleo político” do senso comum. O “senso comum” é a forma como as pessoas comuns, ou seja, nós todos, conferimos sentido às nossas vidas e ações cotidianas. 15

A realidade brasileira dos últimos vinte anos demonstra avanços significativos do ponto de vista econômico, com a conquista da estabilidade e melhora das relações comerciais internacionais. Todavia, outros aspectos avançaram muito pouco, não caminharam, ou, até, retrocederam. O Brasil, como uma federação, necessita de uma rediscussão do pacto federativo, revendo a repartição do bolo tributário entre a União, os Estados e os Municípios, a fim de melhorar os serviços públicos, que atualmente são ineficientes. Os grandes problemas que concretizam as severas desigualdades acontecem nas periferias, longe dos centros de concentração de poder.

É mister destacar dentro deste conteúdo, que o mundo vive as consequências da globalização, com a evidente influência e dependência das nações umas das outras. O então Cardeal Joseph Ratzinger, atual Papa Bento XVI, durante debate com Jürgen Habermas na Academia Católica da Baviera, em Munique – Alemanha, em 2004, assim expôs sua visão da realidade:

Na fase de aceleração do desenvolvimento histórico em que nos encontramos hoje, destacam-se, a meu ver, sobretudo dois fatores marcantes de um processo que teve um início bastante lento: Por um lado, temos a formação de uma sociedade mundial em que as diversas potências políticas, econômicas e culturais passam a depender cada vez mais uma da outra, tendo contato mútuo e permeando-se cada vez mais nos diversos âmbitos. Por outro lado, temos o desenvolvimento das possibilidades do ser humano, do poder de criar e destruir que, superando tudo o que até hoje era habitual, levanta a questão do controle jurídico e moral do poder. 16

Percebe-se que o discurso de Ratzinger não é puramente teológico, mas disserta sobre algo relevante da realidade vivida pela humanidade. A bipolarização do poder no mundo do pós-guerra está superada e certamente o aspecto econômico é preponderante para o exercício de influência no âmbito internacional.

Trazendo este pensamento para a realidade brasileira, vê-se a realidade do patrimonialismo, que é absoluta, sectária e desagregadora. Em severa crítica ao livro A cabeça do brasileiro, de Alberto Carlos Almeida, Jessé Souza esclarece a existência desta organização social que estimula a desigualdade.

O nordestino “arcaico” de Almeida é percebido como o tipo ideal do “preguiçoso”, “conservador”, “machista” e, ao fim e ao cabo, do “tolo” culpado do próprio destino trágico. Na verdade, não é o “nordestino” que está em jogo aqui, mas a “ralé” e a classe baixa brasileira apenas sobrerrepresentada no Nordeste. E essa classe social, conceito que Almeida desconhece, posto que associa classe à renda como todo liberal, foi produzida e continua sendo reproduzida pelo esquecimento secular da sociedade brasileira em relação aos seus membros mais necessitados. Precisamente àquele sentimento compartilhado de solidariedade social que faz com que um europeu ocidental julgue, hoje em dia, inimaginável que exista um sistema de saúde e um escolar para uma classe de privilegiados, e um outro sistema escolar e de saúde precarizado e muito pior para as classes baixas, como acontece tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. 17

A “ralé”, mencionada por Jessé Souza, engloba uma classe de pessoas cuja existência é negada pela sociedade, inclusive pelo Estado. Identifica a “ralé” por aquilo que a criminologia chama de labeling approach.18 O criminólogo italiano Alessandro Baratta preleciona acerca do labeling approach:

[...] uma direção conduziu ao estudo da “identidade” desviante, e do que se define como “desvio secundário”, ou seja, o efeito da aplicação da etiqueta de “criminoso” (ou também de “doente mental”) sobre a pessoa em quem se aplica a etiqueta; a outra direção conduz ao problema da definição, da constituição do desvio como qualidade atribuída a comportamentos e a indivíduos, no curso da interação e, por isto, conduz também para o problema da distribuição do poder de definição, para o estudo dos que detêm, em maior medida, na sociedade, o poder de definição, ou seja, para o estudo das agências de controle social. 19

Também o jurista alemão Winfried Hassemer também discorre acerca do labeling approach:

Neste ponto aparece o chamado labeling approach (enfoque do etiquetamento), que adota o seu nome a partir da sua tese central: a criminalidade não é característica de uma determinada conduta, mas o resultado de um processo de atribuição, de uma estigmatização; a criminalidade é uma etiqueta, a qual é aplicada pela polícia, pelo ministério público e pelo tribunal penal, pelas instâncias formais de controle social. Alguns representantes menos radicais desta teoria reconhecem (nisso) que os mecanismos do labeling existem não só no âmbito dos controles sociais formais, como também dos informais: os processos de “interação simbólica” em que as famílias definem prematuramente a ovelha negra entre os irmãos, ou os professores e os alunos o estranho da classe, e assim estigmatizam com os sinais do fracasso social aqueles que mais tarde serão percebidos e aprofundados por outras instâncias de controle social e assumirão esta marca como parte de suas biografias, como papel impingido e arrastado.20

Portanto, o Estado controla a “ralé” por meio do Direito Penal21, do cárcere e contribui para a manutenção deste status quo que se perpetua ao longo da história. História de opressão aos índios, massacrados no processo de colonização; aos negros, escravizados para sustentar a economia cafeeira; e outras minorias que por diferentes motivos se viram dentro do mundo da “ralé”.

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