As políticas de ação afirmativa e seus reflexos na atual conjuntura

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19/08/2015 às 17:00
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AÇÕES DE ESTATAIS COM A FINALIDADE DE PROMOÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS

A sociedade brasileira está a cada momento enfrentando novos desafios e quebrando paradigmas, herança de um passado de preconceitos e exclusão. São desafios na medida em que há obstáculos a serem vencidos, direitos a serem concretizados e lutas a serem travadas. Após a Constituição promulgada em 1988, várias conquistas podem ser citadas como atos garantidores de direitos fundamentais. A liberdade e a igualdade, direitos indissociáveis num Estado Democrático de Direito, estão sempre em constante mutação (ou construção). Como já alhures explanado, a realidade brasileira caracteriza-se por uma heterogeneidade, fruto de um processo histórico que se iniciou com a colonização portuguesa, que escravizou e exterminou os indígenas e patrocinou a utilização da mão de obra escrava do negro africano nos diversos ciclos econômicos (mineração, cana-de-açúcar e café).

Não é possível a adoção de medidas que englobam ações de inclusão que não seja dentro de um ambiente democrático, onde toda esta problemática seja amplamente discutida. Jürgen Habermas, com propriedade, assim se refere à democracia como garantidora de toda inclusão:

O lado contrário está convencido de que o próprio processo democrático pode assumir o papel de fiador em caso de falta de integração social, numa sociedade que cada vez mais se diferencia internamente. Assim é que, nas sociedades pluralistas, esse ônus não pode ser desviado do nível formação de vontade política e da comunicação pública e aberta para o substrato cultural, aparentemente de origem natural, de um povo supostamente homogêneo. 22

E continua Habermas:

As minorias étnicas e culturais se defendem da opressão, marginalização e desprezo, lutando, assim, pelo reconhecimento de identidades coletivas, seja no contexto de uma cultura majoritária, seja em meio à comunidade dos povos. São movimentos de emancipação cujos objetivos políticos coletivos se definem culturalmente, em primeira linha, ainda que as dependências políticas e desigualdades sociais e econômicas também estejam sempre em jogo. 23

Neste viés, também o jurista americano Ronald Dworkin demonstra a necessidade de um ambiente democrático para a busca da igualdade no início da sua obra A virtude soberana:

A consideração igualitária é a virtude soberana da comunidade política – sem ela o governo não passa de tirania – e, quando as riquezas da nação são distribuídas de maneira muito desigual, como o são as riquezas de nações muito prósperas, então sua igual consideração é suspeita, pois a distribuição das riquezas é produto de uma ordem jurídica: a riqueza do cidadão depende muito das leis promulgadas em sua comunidade – não só as leis que governam a propriedade, o roubo, os contratos e os delitos, mas suas leis de previdência social, fiscais, de direitos políticos, de regulamentação ambiental e de praticamente tudo o mais. 24

As ações afirmativas (ações voltadas à inclusão) necessitam de um amplo processo de debate e de discussão, para a construção de uma mentalidade no seio social que seja caracterizada por um sentimento de promoção da igualdade. Jamais haverá efetividade quando a mera atividade legislativa do Estado tenta promover ações afirmativas. Combate-se com ações afirmativas vícios que por anos e anos a fio mancharam a história humana.

Verifica-se que as ações afirmativas se iniciam, em grande parte na educação. O acesso universal à educação é garantia fundamental e que merece ser tratada com maior atenção pelo Estado. Pode-se citar como iniciativa de ação afirmativa o sistema de cotas para ingresso em instituições de ensino superior, estabelecendo-se o critério racial. Outra iniciativa é a criação do sistema de seleção unificado (SISU) que oferece vagas a participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em instituições públicas. Quanto ao sistema de cotas, sua constitucionalidade já foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 186, ajuizada pelo partido Democratas (DEM) e relatada pelo Ministro Ricardo Lewandowski. A ação questionava o sistema de cotas adotado na Universidade de Brasília. Em seu voto, o relator se referiu às universidades como sendo um verdadeiro símbolo das políticas de ação afirmativa. Neste rumo, assentou o Ministro Ricardo Lewandowski:

Todos sabem que as universidades, em especial as universidades públicas, são os principais centros de formação das elites brasileiras. Não constituem apenas núcleos de excelência para a formação de profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas representam também um celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos altos cargos públicos e privados do País.

O relevante papel dos estabelecimentos de ensino superior para a formação de nossas elites tem, aliás, profundas raízes históricas. 25

Importa destacar que as políticas de ação afirmativa devem ser marcadas por um traço de transitoriedade, tendo, assim, o condão de estimular a diminuição das desigualdades. Assim dissertou o Ministro Ricardo Lewandowski:

É importante ressaltar a natureza transitória das políticas de ação afirmativa, já que as desigualdades entre negros e brancos não resultam, como é evidente, de uma desvalia natural ou genética, mas decorrem de uma acentuada inferioridade em que aqueles foram posicionados nos planos econômico, social e político em razão de séculos de dominação dos primeiros pelos segundos.

Assim, na medida em que essas distorções históricas forem corrigidas e a representação dos negros e demais excluídos nas esferas públicas e privadas de poder atenda ao que se contém no princípio constitucional da isonomia, não haverá mais qualquer razão para a subsistência dos programas de reserva de vagas nas universidades públicas, pois o seu objetivo já terá sido alcançado. 26

As ações afirmativas constituem um grande leque de iniciativas que tem como alvo não somente as minorias negras, mas também são dirigidas às crianças e adolescentes, idosos, portadores de necessidades especiais, dentre outras minorias27. Contudo, diante da grande importância dessas políticas, os Poderes Legislativo e Executivo deveriam, em boa parte das vezes, ser os grandes condutores deste grande processo de inclusão. Entretanto, num quadro de crise da representatividade e de paralisia estatal, o Judiciário acaba tomando a frente para garantir a efetividade das ações afirmativas. Este cenário é preocupante, pois a judicialização de determinados temas e o ativismo judicial daí nascido inibem o salutar debate que fomenta e enriquece estas iniciativas. Não é uma sentença de um juiz ou o poder decisório de um acórdão de um determinado tribunal que incrementam as ações afirmativas, mas a discussão na busca do consenso sobre aquilo que uma comunidade ambiciona. Uma das alternativas para busca de um destes objetivos está na ação comunicativa de Jürgen Habermas. Eis o que retrata o alemão da Escola de Frankfurt:

Apesar da distância em relação aos conceitos tradicionais da razão prática, não é trivial constatar que uma teoria contemporânea do direito e da democracia continua buscando um engate na conceituação clássica. Ela toma como ponto de partida a força social integradora de processos de entendimento não violentos, racionalmente motivadores, capazes de salvaguardar distâncias e diferenças reconhecidas, na base da manutenção e uma comunhão de convicções. 28

A ação comunicativa, como preconizada por Habermas, é certamente o instrumento mais adequado de promoção da igualdade em todos os sentidos. A democracia pressupõe fundamentalmente práticas que privilegiem a opinião de todos os indivíduos, uma vez que as decisões produzidas afetarão a vida da coletividade. A tensão entre direito e democracia (que Habermas denomina como sendo tensão entre facticidade e validade) deve figurar como ponto a ser observado para a promoção da verdadeira igualdade. Certamente, vivendo numa democracia, não há melhor instrumento para se definir ações concretas da sociedade para um determinado fim que não seja ouvir a voz do sujeito que mais é afetado por uma decisão. Privilegiar o debate nos pequenos grupos das periferias, bem como nas arenas institucionalizadas (como os parlamentos) é o caminho que confere maior legitimidade para o agente que conduz uma dada política ou iniciativa.

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AS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA E O SEU PAPEL NA PROMOÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Boa parte do mundo respira os ares trazidos pelos ventos do Estado Democrático de Direito. Ventos estes que pretendem garantir liberdade e igualdade a todos os seres humanos. Nos dias atuais, é inconcebível que se inferiorize o outro pelo simples fato de ser diferente. É importante refletir as palavras de Boaventura de Sousa Santos:

[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades. 29

Nos Estados Unidos, a discriminação esteve sempre presentes na vida cotidiana. Dessa experiência é possível buscar uma compreensão do que seja propriamente igualdade formal e igualdade material, principalmente em casos cujo tema de fundo é o acesso à educação e a discriminação racial. Acerca das decisões da Suprema Corte, o caso Brown versus Board of Education, de 1954, foi o grande marco para mudança do entendimento daquele Tribunal que por meio do caso Plessy versus Ferguson firmara aquilo que se convencionou “separados mas iguais” 30. Além deste caso, outros se somam para assegurar a igualdade entre os seres humanos, independente de qualquer característica que os diferencie, como Bakke versus Regents of the University of Califórnia, de 1978; Gratz versus Bollinger, 2003; e Grutter versus Bollinger, também de 2003. Ronald Dworkin também expõe com propriedade acerca da igualdade:

Proponho que o direito a ser tratado como igual deve ser visto como fundamental na concepção liberal de igualdade, e que o direito mais restritivo a igual tratamento somente tenha validade naquelas circunstâncias específicas nas quais, por alguma razão especial, ele decorra do direito mais fundamental, como talvez seja o caso na circunstância especial dos casos de realinhamento dos distritos eleitorais. Proponho igualmente que os direitos individuais a diferentes liberdades devam ser reconhecidos somente quando se puder mostrar que o direito fundamental a ser tratado como igual exige tais direitos. Se isso for correto, o direito a diferentes liberdades não entra em conflito com nenhum suposto direito à igualdade concorrente; ao contrário, decorre de uma concepção de igualdade que se admite como mais fundamental. 31

Conclui-se que as políticas de ação afirmativa notabilizam-se como sendo a maior expressão de materialização da igualdade, em seu mais amplo sentido. Partindo da adoção de políticas de caráter afirmativo, os demais direitos fundamentais se concretizam com mais facilidade e efetividade. Apura-se que o âmago de toda temática acaba sendo o ser humano na sua mais elementar essência. Ser humano que busca o seu reconhecimento perante o diferente na sociedade. Habermas questiona se o tratamento tão individualista pode construir um reconhecimento de uma identidade coletiva:

As constituições modernas devem-se a uma idéia advinda do direito racional, segundo a qual os cidadãos, por decisão própria, se ligam a uma comunidade de jurisconsortes livres e iguais. A constituição faz valer exatamente os direitos que os cidadãos precisam reconhecer mutuamente, caso queiram regular de maneira legítima seu convívio com os meios do direito positivo. Aí já estão pressupostos os conceitos do direito subjetivo e da pessoa do direito enquanto indivíduo portador de direitos. Embora o direito moderno fundamente relações de reconhecimento intersubjetivo sancionadas por via estatal, os direitos que daí decorrem asseguram a integridade dos respectivos sujeitos em particular, potencialmente violável. Em última instância, trata-se da defesa dessas pessoas individuais do direito, mesmo quando a integridade do indivíduo – seja no direito, seja na moral – dependa da estrutura intacta das relações de reconhecimento mútuo. Será que uma teoria dos direitos de orientação tão individualista pode dar conta de lutas por reconhecimento nas quais parece tratar-se sobretudo da articulação e afirmação de identidades coletivas? 32

Certamente a construção de uma identidade coletiva passa, necessariamente, pelo fortalecimento de relações intersubjetivas e da compreensão que o semelhante merece tratamento com igual dignidade. O acesso a oportunidades, de maneira universal, reveste-se de grande significado e o Direito deve ser o meio que concretize esta universalidade. Mais uma vez pontua o teólogo alemão Cardeal Joseph Ratzinger:

O problema de que o direito não pode ser instrumento do poder de uns poucos, pois precisa ser a expressão do interesse comum de todos, parece resolvido, pelo menos provisoriamente pelos instrumentos de formação da vontade democrática, uma vez que por meio dessa todos participam da criação do direito, que, por isso mesmo, se torna o direito de todos, podendo e devendo ser respeitado como tal. 33

Enfim, o Direito é fruto de um amplo debate, resultante da vontade democrática. Somente a formação de uma consciência, que enfatize a necessidade de inclusão, de respeito às diferenças e de promoção da ideia de igualdade, concretizará os direitos fundamentais constitucionalmente albergados. A tensão entre constitucionalismo e democracia será fundamental, neste aspecto, para garantir, num grau máximo, a igualdade no seu sentido material.

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