CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de toda esta exposição, pode-se afirmar que as políticas de ação afirmativa são remédios imprescindíveis para a concretização de direitos fundamentais, já que o ambiente vivido pela humanidade (e o Brasil não foge a regra) é revestido de desigualdade e de intolerância. Estas ações visam dar concretude a anseios expressos nas constituições de forma textual, no que tange à igualdade. Tradições e práticas culturalmente arraigadas no seio dos diferentes grupos sociais merecem de toda coletividade o respeito e a harmoniosa convivência com intuito de se garantir direitos.
A diferença entre igualdade formal e material é algo que deve ser compreendido num primeiro momento, para que a problemática que envolve, sobremaneira, a interpretação e a aplicação do direito seja nitidamente visualizada. Aliás, percebe-se que este problema atravessou a história da humanidade, desde a Grécia de Aristóteles até os dias atuais. O abismo existente entre os diferentes seres humanos (e consequentemente entre os diferentes grupos sociais) apresenta proporções incomensuráveis. Este fato atravessou a Idade Média, a modernidade e foi motivo de grande reflexão nas revoluções liberais, sobressaindo a Revolução Francesa. Todavia, ainda, continua sendo um problema da pós-modernidade ou modernidade líquida, para usar uma expressão de Bauman. Em pleno século XXI, constata-se a prática de atos de intolerância e de “ódio” 34, o que deve ser combatido.
Tais ações de caráter afirmativo não podem estar dissociadas do cotidiano da política e do debate que a ela é peculiar. Se uma sociedade busca a convivência harmoniosa entre os indivíduos que a compõem, faz-se necessário o combate a todo tipo de discriminação, desigualdade ou discurso de ódio. Portanto, o papel do Direito, seja pela produção legislativa ou pela atividade jurisdicional do Estado, é importante para concretização desses ideais. O mundo da globalização é o mundo do estreitamento das relações. Relações que são construídas entre indivíduos e grupos de diferentes origens e culturas.
Ao se tratar de ações afirmativas, a iniciativa que mais é abordada é a promoção da igualdade no acesso à educação superior, por meio do sistema de cotas. Esta característica não se restringe somente ao Brasil, mas é muito evidente nos Estados Unidos, como se constata nos diversos precedentes da Suprema Corte americana (Brown versus Board of education, de 1954; Bakke versus Regents of the University of Califórnia, de 1978; Gratz versus Bollinger, de 2003; e Grutter versus Bollinger, de 2003). Já no Brasil, dentre os casos mais notórios acerca das políticas de ação afirmativa destacam-se a ADPF 186 e o RE 597.285/RS, julgados recentemente pelo Supremo Tribunal Federal.
A sociedade brasileira mostra que há ainda muito a fazer para que se tenha, verdadeiramente, um ambiente social onde a liberdade e a igualdade sejam os alicerces de uma República. Certamente o acesso à educação tem um cunho simbólico ao tratar de ações afirmativas diante da relevância e da importância que a escola e as universidades têm na promoção de políticas de inclusão; seja de forma direta, com sistema de cotas, ou indireta através da formação da opinião pública e na difusão do conhecimento.
Todos os conceitos e abordagens que foram apresentadas no presente texto, leva à conclusão de que as caminhadas das sociedades contemporâneas são duras, complexas e cheias de obstáculos. A tão sonhada igualdade é uma conquista diária, de todo tempo. O que é tão óbvio na retórica, não o é na prática. Nunca é demais lembrar os horrores patrocinados pelo nazismo em Auschwitz – Birkenau ou Mauthausen há pouco mais de sessenta anos. A mentalidade da segregação e do antissemitismo ainda está longe de fazer parte do passado. É algo presente e preocupante. Este anseio por igualdade é, certamente, um dos maiores desafios para o Direito no século XXI.
REFERÊNCIAS
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Notas
1 Com a finalidade de exemplificar a influência de Aristóteles em todo pensamento de São Tomás de Aquino, notadamente acerca da igualdade, a ideia de que a mulher é um “homem inacabado” é na verdade uma herança aristotélica que se estendeu e ganhou força no período medieval. Assim, a mulher era aqui vista como mero receptáculo passivo para a força generativa única do varão, acrescentando ainda São Tomás de Aquino que “a mulher necessita do homem não somente para engendrar, como fazem os animais, mas também para governar, porquanto o homem é mais perfeito por sua razão e mais forte por sua virtude”.
2 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 108-109.
3 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 22.
4 LAFER, Celso. Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Paz e Terra, 2003, p. 38.
5 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 64.
6 [...] el principio de igualdad, que – en las constituciones democráticas – tiende a afirmarse más allá de la mera prohibición de la discriminación, situándose en el plano del acceso a los bienes fundamentales de la convivencia civil, tal como la instrucción o el trabajo, poniendo así de mainifiesto la otra gran cuestión de la garantía y de la realización de los derechos sociales. Cf. FIORAVANTE, Maurizio. Constituición: de la antigüedad a nuestros días. Madrid: Trotta, 2001, p. 150.
7 A controvérsia surgiu em 1996, quando Barbara Grutter, uma mulher branca, moradora de Michigan, com notas relativamente altas no teste de admissão para faculdades de direito norte-americanas, não foi aceita na Faculdade de Direito da Universidade daquele Estado. No final de 1997, ingressa em juízo contra a Universidade, sob o argumento de que havia sofrido discriminação racial, o que violaria tanto a cláusula de proteção da igualdade prevista na XIV Emenda à Constituição dos Estados Unidos como no Título VI da Lei de Proteção aos Direitos Civis de 1964 (Civil Rights Act).
8 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 159.
9 BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
10 O conceito de mundo da vida, Habermas toma de Edmund Husserl e possui três características básicas: é dado aos sujeitos de modo que não pode ser problematizado, mas pode desmoronar; os pontos em comum estão a frente de qualquer dissenso; e a conjuntura muda mas o mundo da vida possui barreiras intransponíveis. Por fim, o agir comunicativo depende de contextos situativos que, se sua parte, representam recortes do mundo da vida concernentes aos participantes da interação. É tão somente esse conceito de mundo da vida – tomado como complementar ao agir comunicativo por conta de análises do saber contextual estimuladas por Wittgenstein – que assegura a ligação entre a teoria da ação e conceitos básicos da teoria social. Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo, 1. Trad. Paulo Astor Soethe; revisão Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 485.
11 RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: WMF Martins Fontes, 1997, p. 3.
12 BAUMAN, Zygmund. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 7.
13 O Brasil terminou Nov/12 com 260 milhões de celulares e 131,99 cel/100 hab. As adições líquidas de 738 mil celulares no mês foram inferiores as de Nov/11 quando foram adicionados 4,5 milhões de celulares, reforçando a tendência de um crescimento menor que 10% em 2012. O pós-pago, com adições líquidas de 588 mil, voltou a superar o pré-pago (158 mil) em novembro. (http://www.teleco.com.br/ncel.asp. Acesso em 7 jan 2013).
14 BAUMAN, Zygmund. Capitalismo parasitário. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 33-34.
15 SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive / Jessé Souza ; colaboradores André Grillo ... [et al.] – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009, p. 41.
16 HABERMAS, Jürgen. RATZINGER, Joseph. Dialética da secularização: sobre razão e religião. Org. Florian Schüller. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 61-62.
17 SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive / Jessé Souza ; colaboradores André Grillo ... [et al.] – Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009, p. 80.
18 A teoria do labeling approach se insere no contexto das teorias do processo social, ao lado das teorias de aprendizagem social e de controle social. Para este grupo de teorias psicosociológicas “o crime é uma função das interações psicossociais do indivíduo e dos diversos processos da sociedade.
19 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 89.
20 HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do direito penal (Einführung in die Grundlagen des Strafrechts). Trad. Pablo Rodrigo Alflen da Silva. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed., 2005, p. 101-102.
21 As normas penais que compõem o Direito Penal são as matizes legais da violência institucional concretizada no processo de criminalização, como conjunto de práticas e procedimentos policial, judiciário e prisional delimitados e determinados por aquelas matizes legais. O processo de criminalização representa a forma de existência social concreta do sistema penal, modalidade superestrutural específica constituída de normas penais, que descrevem os caracteres essenciais das ações puníveis e fixam limites penais mínimos e máximos aos autores e fixam limites penais mínimos e máximos aos autores dessas ações (comprovado o conjunto dos pressupostos da pena, como a tipicidade, a antijuridicidade e a reprovabilidade do comportamento, objeto da chamada teoria do crime) e de aparelhos do Estado, que movimentam o processo de criminalização (polícia, justiça e prisão). Se a violência institucional do Direito Penal se concretiza no processo de criminalização, cujas matizes são as normas penais, e cujos órgãos são a polícia, a justiça e a prisão, o estudo do processo de criminalização, deve destacar o modo de integração e a significação real do funcionamento das normas e aparelhos punitivos que o constituem. Cf. CIRINO DOS SANTOS. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 102.
22 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 151-152.
23 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 246.
24 DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. IX-X.
25 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf (Acesso em 12 jan. 2013).
26 http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf (Acesso em 12 jan. 2013).
27 É relevante mencionar que os Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso também são exemplos de ações afirmativas, tendo em vista o seu caráter inclusivo. Além disso, a Constituição no artigo 37, inciso VII, dispõe “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”.
28 HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo, 1. Trad. Paulo Astor Soethe; revisão Flávio Beno Siebeneichler. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 22.
29 SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 56.
30 Separate but equal. Sob esta doutrina, serviços, instalações e acomodações públicas podiam ser separados por raça, com a condição de que a qualidade dos serviços oferecidos a cada grupo fosse a mesma.
31 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011, p. 421.
32 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro – estudos de teoria política. (Die Einbeziehung des Anderen – Studien zur politischen Theorie). Trad. George Sperber, Milton Camargo Mota e Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 1997, p. 229.
33 HABERMAS, Jürgen. RATZINGER, Joseph. Dialética da secularização: sobre razão e religião. Org. Florian Schüller. Aparecida: Idéias & Letras, 2007, p. 66.
34 A fim de ilustrar a abordagem pode-se citar o chamado “Caso Ellwanger”, em que Siegfried Ellwanger, editor de livros de conteúdo antissemita. Trata-se do HC 82.424, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2003.