Acidente do trabalho com viés de crime: responsabilidade penal

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O acidente do trabalho pode ter repercussão na área penal, se tiver havido descumprimento do dever de cuidado de alguém, não somente da vítima, que tenha sido a causa das ofensas físicas à integridade ou à saúde do corpo humano.

O acidente do trabalho está definido no artigo 19, da Lei nº 8.213/91, que diz:

Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal[1] ou perturbação funcional[2] que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho[3].

Quando, a serviço da empresa, o acidente ocorre por culpa exclusiva da vítima, o fato se define como acidente do trabalho, sem consequências na área penal.

No entanto, diante de um acidente do trabalho devemos ter a preocupação de analisar se houve algum descumprimento do dever de cuidado por parte de alguém, que não a vítima, e que tal descumprimento possa ter causado o acidente.

Se da análise obtivermos a constatação de que isto ocorreu, em princípio estaremos diante de um crime e não somente de um acidente do trabalho. Normalmente, o crime de lesão corporal ou de homicídio decorrente do acidente do trabalho é de natureza culposa – sem intenção –, por ter o causador agido com imprudência, negligência ou imperícia. No entanto, para que o crime culposo (sem intenção) se tipifique é imprescindível que, subjetivamente (percepção concreta do causador), fosse possível prever o resultado danoso. Mas, isto não significa que não possa ser doloso, ou que a conduta, ainda que culposa, seja confundida com a dolosa. Isto porque o formato do dolo eventual (dolo de perigo), que por vezes emerge nos acidentes do trabalho, se delineia nas atitudes de descaso para com a vida do trabalhador. Estaria embutido, por exemplo, na determinação de um superior hierárquico aos seus subordinados, para que cumprissem uma ordem de serviço de alto risco, mas sem o treinamento adequado e sem se importar se sofreriam um acidente possivelmente previsível. Poderíamos imaginar aquele chefe inconsequente que diz ao executante para cumprir uma tarefa, sem a prevenção necessária, e se o trabalhador se ferir que se dane (expressão popular).

Mas, onde se embasa a obrigação legal e contratual para que as normas de segurança do trabalho sejam cumpridas rigorosamente?

Para responder a esta questão temos que recorrer à Consolidação das Leis do Trabalho – CLT. O alicerce legal do vínculo contratual de trabalho, entre empregador e empregado, está na CLT, dela emanando os instrumentos particulares dessa vinculação. Estão solidificadas aí as obrigações a serem observadas pelas partes e dentre elas as que se aplicam à segurança do trabalho.

O artigo 157 da CLT[4] estabelece caber às empresas cumprir e fazer cumprir com as normas de segurança e medicina do trabalho e instruir os trabalhadores através de ordens de serviço, com a finalidade de evitar o acidente do trabalho.

Consequentemente, ao interpretarmos o artigo citado vemos que tanto o elenco das normas públicas ou daquelas criadas pela empresa nele se encaixam. Isto porque o legislador teve a clara intenção de tornar a obrigação das empresas muito ampla, registrando a expressão normas de segurança sem fazer nenhuma restrição a ela. Ademais, não podemos deixar de considerar que o legislador usou o verbo cumprir para impor a obrigação das empresas com a segurança dos trabalhadores. Assim, fica evidente que o antônimo do verbo – o descumprir –, nos leva ao seguro entendimento de implicar em responsabilidade. No que tange à obrigação de instruir os trabalhadores através de ordens de serviço, entendemos que, aqui, estão envolvidas todas as formas de ordens de serviço convencionadas pela empresa. Podemos atribuir a elas desde um simples e-mail até uma fundamentada análise de risco.

Porém, não podemos nos furtar a considerar as normas públicas, para as quais nosso alerta vai para as Normas Regulamentadoras (NR) do Ministério do Trabalho e Emprego (M. T. E.). O fundamento legal das NR está na CLT, entre os artigos 154 a 200. Ou seja, ainda que as Normas Regulamentadoras sejam atos administrativos, têm elas um sólido embasamento legal.

Voltando-nos para o outro lado do vínculo entre empresa e empregado, a fim de localizarmos a responsabilidade legal dos executantes de serviço, coletamos no artigo 158 da CLT[5] a obrigação de observarem as instruções da empresa, oriundas da obrigação prevista para ela no artigo 157 da CLT, constituindo ato faltoso deles a inobservância dessas instruções. Vale dizer, o executante tem o dever de observar as instruções de serviço, ficando sujeito a uma demissão por justa causa, se houver recusa de sua parte.

Onde se embasa, então, a responsabilidade penal que decorre do acidente do trabalho?

Diz o artigo 13, § 2º, do Código Penal[6] que a omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. Complementa determinando que o dever de agir incumbe a quem tenha por lei obrigação de cuidado, proteção e vigilância.

Diante dessa norma, se nos indagarmos sobre o descumprimento do dever de cuidado, que tenha causado a morte de um trabalhador em acidente do trabalho, e obtivermos um sim, sem dúvida alguma estaremos diante de um fato definido como crime de lesões corporais ou de homicídio a ser apurado na Justiça Penal. Todavia, importa ressaltar que não basta ter havido o descumprimento de um dever de cuidado, mas que tenha sido este descumprimento a causa da ofensa física à integridade ou à saúde do corpo humano.

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Concluindo, evidente está que a obrigação de fazer cumprir com o dever de cuidado está a cargo dos diversos níveis de gestores das empresas, também dos membros da CIPA – Comissão Interna de Prevenção de Acidentes[7], do SESMT – Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho[8] etc. (artigo 157 da CLT). Uma vez que o dever de cuidado é imposto por lei, descumpri-lo implica em crime, na forma prevista no Código Penal (artigo 13, § 2º, do CP).


Notas

[1] Lesão corporal é a ofensa física à integridade ou à saúde do corpo humano.

[2] Perturbação (alteração) relativa às funções vitais. Função é a ação própria de um órgão do corpo humano, como a função circulatória, por exemplo.

[3] Capacidade para o trabalho difere de ocupação habitual. A ocupação habitual é toda e qualquer atividade desenvolvida pela vítima, independentemente da que se liga ao trabalho. Até mesmo uma pessoa que não trabalha tem ocupações habituais.

[4] Art. 157 da CLT - Cabe às empresas:

I - cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;

II - instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais.

[5] Art. 158 da CLT - Cabe aos empregados:

I - observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior;

Il - colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo.

Parágrafo único - Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada:

a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior.

[6] Art. 13 do Código Penal - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.  Relevância da Omissão § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância.

[7] Veja a Norma Regulamentadora nº 5 (NR 5), no site do Ministério do Trabalho e Emprego. (http://portal.mte.gov.br/legislacao/normas-regulamentadoras-1.htm)

[8] Veja a Norma Regulamentadora nº 4 (NR 4), no site do Ministério do Trabalho e Emprego. (http://portal.mte.gov.br/legislacao/normas-regulamentadoras-1.htm)

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Sobre o autor
Antônio Claudio Rodrigues Barbosa Vianna

Tendo me desligado da Companhia Siderúrgica Nacional, em dezembro/2018, onde atuei como advogado e consultor jurídico por vinte e seis anos, passo agora a me dedicar, novamente, à advocacia na área Penal e Empresarial, como autônomo. Assim, retomei a profissão de advogado autônomo que exerci por vinte anos - 10 em Belo Horizonte e 10 em Volta Redonda e Região (RJ).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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