A imunidade parlamentar como pressuposto da democracia deliberativa

21/08/2015 às 17:20
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O presente artigo visa demonstrar a importância da imunidade parlamentar, prevista constitucionalmente, e visualizar seus desdobramentos no âmbito da democracia deliberativa. Analisa-se, especificamente, o instituto no contexto brasileiro.

A imunidade parlamentar está prevista no Título IV - "Da organização dos Poderes", Capítulo I - "Do Poder Legislativo" -, Seção V - "Dos Deputados e dos Senadores"- da Constituição Federal, junto às principais permissões e restrições dirigidas aos parlamentares, para que possam exercer suas funções de forma livre e independente.

Tal instituto surge com o pretexto de manter a Separação dos Poderes, proposta por Montesquieu[1], consagrando, portanto, a independência e harmonia entre os Poderes Legislativo e Judiciário. A imunidade parlamentar está prevista no topo da pirâmide Kelseniana. Não bastasse isso, está prevista desde a primeira Constituição Brasileira, de 1824. Apesar de sofrer algumas alterações durante o tempo, manteve-se presente em todas as nossas Constituições:

Constituição de 1824: Art. 26. Os Membros de cada uma das Camaras são inviolaveis pelas opiniões, que proferirem no exercicio das suas funcções.

Constituição de 1891: Art. 19 - Os Deputados e Senadores são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato.

Constituição de 1934: Art. 31 - Os Deputados são invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício das funções do mandato.

Constituição de 1937: Art. 43 - Só perante a sua respectiva Câmara responderão os membros do Parlamento nacional pelas opiniões e votos que emitirem no exercício de suas funções; não estarão, porém, isentos da responsabilidade civil e criminal por difamação, calúnia, injúria, ultraje à moral pública ou provocação pública ao crime.

Parágrafo único - Em caso de manifestação contrária à existência ou independência da Nação ou incitamento à subversão violenta da ordem política ou social, pode qualquer das Câmaras, por maioria de votos, declarar vago o lugar do Deputado ou membro do Conselho Federal, autor da manifestação ou incitamento.

Constituição de 1946: Art. 44 - Os Deputados e os Senadores são invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos.

Constituição de 1967: Art. 34 - Os Deputados e Senadores são invioláveis no exercício de mandato, por suas opiniões, palavras e votos.) O texto da Emenda Constitucional nº 01, de 1969, limitou a imunidade material, dispondo em seu art. 32 que “Os deputados e senadores serão invioláveis no exercício do mandato, por suas opiniões, palavras e votos, salvo no caso de crime contra a segurança nacional”.

Constituição de 1988: Art. 53. Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 35, de 2001)

Sendo assim, fica clara a sua importância no ordenamento jurídico brasileiro, tendo sido prestigiada por todos os constituintes, e a sua apresentação como condição necessária à democracia deliberativa. Observa-se que as alterações feitas ao longo do tempo foram, em sua maioria, no sentido de ampliar o alcance da imunidade parlamentar. Percebemos isso, por exemplo, através da adição dos termos “palavras” e “votos” na Constituição de 1891, que estavam ausentes na anterior e se mantiveram em todas as posteriores, bem como na Constituição atual, que acrescentou as expressões “civil e penalmente” e “quaisquer”.

No entanto, observa-se grande retrocesso na Constituição de 1937, quando ocorre uma série de restrições aos parlamentares. Não nos surpreende, devido ao contexto social da época, composto por um governo autoritário, em meio a ditadura. Getúlio Vargas instaurou o Estado Novo em 1937, sob o pretexto de um “perigo vermelho”, alusão ao Comunismo. Nesse período (1937- 1945), ocorreu uma forte concentração de poder no Executivo, ou seja, a imunidade parlamentar, garantidora da Separação dos Poderes, encontrou-se fragilizada. Em 1945 ocorre a redemocratização, refletindo no ordenamento jurídico a volta da imunidade parlamentar ampla. Em 1969, Ditadura Militar no Brasil, esta é novamente restringida. Nota-se que tanto em 1937 como em 1969 as limitações de tal imunidade têm um teor visivelmente político, ou seja, objetivam manter os regimes autoritários vigentes da época.

Finalmente, em 1988, quando a democracia se instala novamente, a imunidade parlamentar retorna com sua amplitude, prevista no art. 53 da Constituição Federal.

A Separação dos Poderes exige a atuação de forma harmônica, porém independente. Assim como existem diversas restrições a todos os Poderes, existem várias concessões exclusivas aos seus membros, para que possam se concentrar no exercício de suas funções e, ao mesmo tempo, praticá-las de forma livre. Nessa seara, a imunidade garante que os parlamentares possam expor suas ideias e opiniões, sem interferência dos demais Poderes, protegendo a liberdade do Legislativo.

A Constituição Federal também prevê garantias dos demais Poderes, como forma de assegurar a sua independência e harmonia (assim, por exemplo, as garantias da magistratura: irredutibilidade de subsídios, inamovibilidade e vitaliciedade).[2]

A violação da Separação dos Poderes é uma afronta ao Estado Democrático de Direito, sendo, portanto, a imunidade parlamentar necessária para a manutenção de tal paradigma.

“Dessa forma, imprescindível a existência das imunidades parlamentares á prática da democracia, significando verdadeira condição de independência do Poder Legislativo em face dos demais Poderes e garantia de liberdade de pensamento, palavra e opinião, sem a qual inexistirá Poder Legislativo independente a autônomo que possa representar, com fidelidade e coragem, os interesses do povo e do país, pois, e é sempre importante ressaltar, essas imunidades não dizem respeito à figura do parlamentar, mas à função por ele exercida, no intuito de Artigo escrito em 03/08/2011 Dra. Elisabeth Catanese e Dra. Camila Cristina Murta - Sócias Escritório Catanese e Murta Sociedade de Advogadas resguardá-la da atuação do executivo ou do Judiciário, consagrando-se como garantia de sua independência perante outros poderes constitucionais”.[3]          

  A imunidade parlamentar é composta por dois elementos: Freedom of Speech (Imunidade material) e Freedom from Arrest (Imunidade formal). A imunidade formal está explicitada em nossa Constituição, no art. 53, § 2º: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão.”. Já a imunidade material está atrelada à liberdade de expressão do parlamentar, prevista no caput do art. 53: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos.”.

A única exceção para a não aplicação da imunidade parlamentar formal é a situação de flagrante em crime inafiançável. A prática do racismo, por exemplo, é caracterizada na Constituição Federal de 1988 como crime inafiançável (Art. 5º, XLII: A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei). Por outro lado, os crimes contra a honra (delitos contra a honra objetiva - calúnia e difamação - ou contra a honra subjetiva – injúria), incitamento a crime, apologia de criminoso, vilipêndio oral a culto religioso, todas essas ações deixam de ser criminosas quando vindas de um parlamentar dentro de seu ofício congressual.

Os deputados são eleitos com o intuito de representar a sociedade, sendo assim, é natural que tenham opiniões, ideias, convicções morais e religiosas diversas. Isso deve ser visto como positivo, dado que a população é plural, portanto, é necessário que também haja uma pluralidade no Congresso, sendo representadas todas as camadas da sociedade. Os parlamentares necessitam da imunidade parlamentar para que essa representação aconteça de forma transparente e o mais próxima possível da realidade.

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As instituições e os processos democráticos devem contemplar a participação de todas as pessoas, tanto em sociedades homogêneas como em sociedades heterogêneas, a fim de salvaguardar a diversidade, o pluralismo.[4]

Se estes forem privados de imunidade, não ocorrerá o debate necessário para a democracia deliberativa na qual nos encontramos. É apenas através da exposição de opiniões e de discussões que se chega a uma conclusão justa, em que todos têm o direito de fala. Isso deve ser enfatizado em relação aos membros do Congresso, visto que suas decisões afetarão toda a sociedade. Afinal, todos estão lá por terem sido eleitos pelo povo, democraticamente. É necessário perceber, então, que a imunidade parlamentar é garantidora da soberania do povo.

A partir do momento em que se priva um deputado de sua imunidade, o que acontece é a prevalência de um grupo sobre outro. Assume-se uma verdade e qualquer opinião que divergir desta será silenciada. De acordo com Gadamer [5], verdades são construídas, ou seja, dependem do tempo e da história, estando em constante mudança. Sendo assim, não se pode assumir uma única verdade numa sociedade complexa e plural. A Declaração Universal da Democracia assim dispõe:

O estado democrático pressupõe a liberdade de opinião e expressão. Esse direito implica a liberdade de emitir opiniões sem interferências e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.[6]

A imunidade parlamentar é válida mesmo quando o deputado não estiver em ambiente parlamentar ou sessão de votação. No entanto, só detém tal proteção quando suas ações tiverem relação com seu ofício congressual, pois a imunidade parlamentar existe para proteger o exercício do mandato. Conforme pronunciamento de Michel Temer, “Mesmo que o parlamentar esteja fora do Congresso Nacional, mas exercendo sua função parlamentar federal, em qualquer lugar do território nacional estará resguardado, não praticando qualquer crime por sua opinião, palavra ou voto”[7], pensamento em conformidade com o de Guilherme de Souza Nucci, que afirma: “Exige-se o nexo de causalidade entre as declarações tidas como ofensivas e a prática funcional do Parlamentar. Sem esse liame, não há que prosperar a incidência da imunidade material.”.[8]

No momento em que parlamentares fazem, no exercício de suas funções, declarações tidas, por alguns, como chocantes, acabam por instaurar um debate na sociedade com dimensões imensuráveis, que se transformam em debates nacionais. Como já foi dito, o debate é um pressuposto da democracia deliberativa, e as opiniões parlamentares que têm repercussão geram a retirada da exclusividade do debate do Congresso e levam-no para a população, para o Brasil, de forma transparente, fazendo com que todos reflitam sobre o assunto, discutam com outras pessoas, construindo argumentos e assumindo posições.

Por todo o exposto, conclui-se pela grande importância da imunidade parlamentar, garantidora do pluralismo de ideias no âmbito do Poder Legislativo, fazendo-se imprescindível para o aprimoramento do Direito e para a consagração de uma democracia.


Notas

[1] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. São Paulo: 2000. (Martins Fontes).

[2] MONTEIRO, Maurício Gentil. A limitação da imunidade parlamentar: Apontamentos sobre a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 35/2001. Visto por último em 21.08.2015, em http://jus.com.br/artigos/3005/a-limitacao-da-imunidade-parlamentar/2.

[3] MORAES, Alexandre de. Constituição Do Brasil Comentada e Legislação Constitucional. 9ª ed. São Paulo, 2013. (Editora Atlas S.A.).

[4] Declaração universal da democracia: resolução A/62/7 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, setembro de 2007. – Brasília : Senado Federal, Secretaria Especial de Edito- ração e Publicações, 2012.

[5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

[6] Declaração universal da democracia: resolução A/62/7 da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas – ONU, setembro de 2007. – Brasília : Senado Federal, Secretaria Especial de Edito- ração e Publicações, 2012.

[7] TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 24ª edição: 2014.

[8] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª edição: 2014.

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Sobre a autora
Luísa Rodrigues Ferreira

Advogada; Graduada em Direito na Universidade de Brasília - UnB; Pós-Graduanda no Curso de Especialização "Ordem Jurídica e Ministério Público" da Fundação Escola Superior do MPDFT.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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