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O tabelião do cartório e o concurso público

31/08/2015 às 14:36
Leia nesta página:

O artigo traz à discussão a necessidade de realização de concurso público para provimento de vagas de tabelião nos cartórios.

O Supremo Tribunal Federal já apresentou entendimento de que, após a promulgação da Constituição de 1988, o ingresso nas atividades notariais só pode ser efetuado mediante aprovação em concurso público, nos termos dos artigos 37, II, e 236, § 3º da Constituição do Brasil.

Essa posição jurisprudencial foi confirmada quando do julgamento da ADI 3.978, Relator Ministro Eros Grau, DJe de 11 de dezembro de 2009.

É o que se lê do artigo 236 da Constituição:

Art. 236, CF/88: "Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

§ 1º - Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

§ 2º - Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

§ 3º - O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses".

O art. 236. da CF estabelece quatro normas básicas:

1) Cabe ao Judiciário a fiscalização (mas não estabelece qual).

2) A forma de provimento das serventias é por concurso público.

3) O serviço é exercido por natureza privada.

4) É prestado mediante delegação.

De fato, o STF, em diversas oportunidades, reconheceu a autoaplicabilidade da norma insculpida no referido dispositivo constitucional, que estabelece a exigência de concurso público para ingresso nos serviços notariais e de registro (RE 182.641/SP, RE-AgR 302739/RS, RE-AgR 252313/SP, REAgR 527573/ES, entre muitos outros). Nem poderia ser diferente, uma vez que o princípio do concurso público simplesmente decorre do da isonomia, direito fundamental dos cidadãos, que encontra assento até na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948: “toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país” (art. 21).

Além disso, a obrigatoriedade de aprovação em concurso público para a obtenção da delegação em comento está imbricada com os princípios republicanos e democráticos que regem toda a Carta de 1988, tais como: legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência.

Veio a Lei 8.935, de 18 de novembro de 1994, que regulamenta o artigo 236 da Constituição Federal e dispõe sobre serviços notariais e de registro (Lei dos cartórios), que, no artigo 20, dispõe:

Art. 14. A delegação para o exercício da atividade notarial e de registro depende dos seguintes requisitos:

I - habilitação em concurso público de provas e títulos;

II - nacionalidade brasileira;

III - capacidade civil;

IV - quitação com as obrigações eleitorais e militares;

V - diploma de bacharel em direito;

VI - verificação de conduta condigna para o exercício da profissão.

Art. 15. Os concursos serão realizados pelo Poder Judiciário, com a participação, em todas as suas fases, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Ministério Público, de um notário e de um registrador.

§ 1º O concurso será aberto com a publicação de edital, dele constando os critérios de desempate.

§ 2º Ao concurso público poderão concorrer candidatos não bacharéis em direito que tenham completado, até a data da primeira publicação do edital do concurso de provas e títulos, dez anos de exercício em serviço notarial ou de registro.

A lei federal 8.935/94 remeteu aos estados a responsabilidade de estabelecer as normas dos concursos e não especificou a situação dos substitutos que já ocupavam, na prática, a titularidade dos cartórios.

Em 2009, o Conselho Nacional de Justiça determinou a vacância dos serviços notariais e de registro ocupados após 1988 por quem não passou em concurso. Muitos substitutos de cartórios, contudo, permanecem nas funções já que alguns Tribunais de Justiça não organizaram concursos públicos.

Distancia-se a Constituição de uma rotina do passado em que os tabeliães eram nomeados por governadores. A concessão do serviço era hereditária.

Tem-se a adoção do sistema de documento público (também conhecido, devido à sua origem, como sistema do notariado latino). Tal sistema caracteriza-se, principalmente, pelo fato de serem os serviços notariais exercidos em caráter privado, mediante delegação estatal. Essas características estão, inclusive, bem explicitadas na Resolução de 18 de Janeiro de 1994, do Parlamento Europeu:

1. Delegación especial del poder del Estado para asegurar el servicio público de la autenticidad de los contratos y de las pruebas;

2. Actividad independiente que se ejercita en el marco de un cargo público, bajo la forma de una profesión liberal, pero sometida al control de los poderes públicos en cuanto a la observancia de las normas referentes al documento notarial y a la reglamentación de las tarifas en interés de los clientes.

3. Función preventiva a la del Juez, encaminada a reducir los litigios y funciones de asesor imparcial.

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Bem acentuou o Ministro Celso de Mello que o que se revela essencial é que a outorga de delegação registral ou notarial, para legitimar-se constitucionalmente, supõe a prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. Essa regra constitucional é muito clara.

Tem-se algumas conclusões na matéria:

a) Na conformidade com o artigo 236 da Constituição Federal, as atividades notariais e de registro devem ser consideradas como uma particular espécie de função administrativa do Estado (função pública), e, por isso, submetida a disciplina ao regime jurídico do direito administrativo, todavia, seu exercício poderá ser delegado a particulares;

b) Os notários e registradores não são espécies de servidores públicos, devendo ser considerados como agentes públicos integrados à categoria dos particulares em colaboração com o Poder Público que atuam mediante delegação;

Daí porque entendeu o Supremo Tribunal Federal:

“O art. 236, § 3º, da CF é norma auto aplicável. Nos termos da CF, sempre se fez necessária a submissão a concurso público para o devido provimento de serventias extrajudiciais eventualmente vagas ou para fins de remoção. Rejeição da tese de que somente com a edição da Lei 8.935/1994 teria essa norma constitucional se tornado auto aplicável. (...) Situações flagrantemente inconstitucionais como o provimento de serventia extrajudicial sem a devida submissão a concurso público não podem e não devem ser superadas pela simples incidência do que dispõe o art. 54. da Lei 9.784/1999, sob pena de subversão das determinações insertas na CF. (...) Reafirmada a inexistência de direito adquirido de substituto que preenchera os requisitos do art. 208. da Carta pretérita à investidura na titularidade de Cartório, quando a vaga tenha surgido após a promulgação da Constituição de 1988, pois esta, no seu art. 236, § 3º, exige expressamente a realização de concurso público de provas e títulos para o ingresso na atividade notarial e de registro. Os princípios republicanos da igualdade, da moralidade e da impessoalidade devem nortear a ascensão às funções públicas.” (MS 28.279, rel. min. Ellen Gracie, julgamento em 16-12-2010, Plenário, DJE de 29-4-2011.) No mesmo sentido: MS 29.282-AgR, rel. min. Teori Zavascki, julgamento em 24-2-2015, Segunda Turma, DJE de 11-3-2015;MS 28.273-AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 13-12-2012, Plenário, DJE de 21-2-2013”

“Cartório de notas. Depende da realização de concurso público de provas e títulos a investidura na titularidade de Serventia cuja vaga tenha ocorrido após a promulgação da Constituição de 1988 (art. 236, § 3º) não se configurando direito adquirido ao provimento, por parte de quem haja preenchido, como substituto, o tempo de serviço contemplado no art. 208, acrescentado, à Carta de 1967, pela Emenda 22, de 1982.” (RE 182.641, rel. min. Octavio Gallotti, julgamento em 22-8-1995, Primeira Turma,DJ de 15-3-1996.) No mesmo sentido: AI 829.502-AgR, rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 11-9-2012, Segunda Turma, DJE de 24-9-2012. Vide: AI 541.408-AgR, rel min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 23-6-2009, Primeira Turma,DJE de 14-8-2009; ADI 417, rel. min. Maurício Corrêa, julgamento em 5-3-1998, Plenário, DJ de 8-5-1998.”.

A obrigatoriedade de aprovação em concurso público para obtenção da delegação discutida está em conformidade com o princípio maior da igualdade, coaduna-se com o princípio republicano e democrático do acesso aos cargos públicos por concurso público e, ainda, coaduna-se aos princípios norteadores da legalidade, moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência que regem a Administração Pública.

Estar-se-á, portanto, diante de cláusula pétrea, prevista no artigo 60, §4º, da Constituição que diz respeito a direitos e garantias individuais. É matéria que é própria do Constituinte originário, não cabendo falar numa intervenção do constituinte derivado nessas matérias.

Ocorre que se noticia iniciativa no Congresso Nacional que dá conta que a Câmara dos Deputados aprovou proposta para efetivar dono de cartório sem concurso público.

A emenda foi apresentada em 2005 pelo deputado João Campos (PSDB-GO) e vem sendo incluída na pauta da Câmara há anos, sem ser aprovada. Em maio de 2012, um texto que restringia um pouco a efetivação dos interinos foi derrotado pelo plenário, mas os que defendiam a PEC original de Campos não tiveram força para aprovar seu texto, tamanha a repercussão negativa.

Quando apresentou a emenda, João Campos argumentou que, apesar da lei, em 1994, ter determinado a realização de concursos para ter direito a explorar os serviços de registro e cartório, em muitos estados não foi feito concurso.

O texto aprovado no dia 26 de agosto do corrente ano é mais amplo que o substitutivo da comissão especial, por não exigir um período mínimo de exercício da atividade notarial e de registro. De acordo com o substitutivo rejeitado em 2012, a titularidade seria concedida àqueles que assumiram os cartórios até 20 de novembro de 1994 e que estivessem à frente do serviço há pelo menos cinco anos ininterruptos, anteriores à promulgação da futura emenda. Essa data é a de publicação da Lei 8.935/94, que regulamentou a matéria.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. O tabelião do cartório e o concurso público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4443, 31 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42226. Acesso em: 22 dez. 2024.

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