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Crítica à nova sistemática da incapacidade de fato segundo a Lei 13.146/15:

Estatuto da Pessoa com Deficiência

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6. A questão da suspensão da prescrição e da decadência para o incapaz.

O artigo 198 do CC afirma que não corre prescrição contra os incapazes de que trata o artigo 3o do Código Civil (absolutamente incapazes). Assim, pela nova sistemática, a suspensão da prescrição deixaria de contemplar os deficientes, continuando a correr normalmente prescrição contra eles.

Estamos certos de que muitos magistrados, consternados pela injustiça da alteração, aplicarão analogicamente a suspensão da prescrição e da decadência (artigo 198) aos deficientes. Ocorre que as hipóteses de suspensão e interrupção de prescrição são taxativas, como se depreende das lições do maior especialista no tema que o Direito Brasileiro já conheceu – Antônio Luís da Câmara Leal. Assevera o festejado jurista[20]:

“Os intérpretes são unânimes em reconhecer que a enumeração das causas suspensivas da prescrição pelo Código é taxativa, e não exemplificativa.

Quer isso dizer que, sendo de direito estrito, não admitem ampliação por analogia.”

O seu raciocínio é dotado de irretorquível lógica. Ora, se violado o direito, nasce a pretensão, que, não exercida no prazo previsto, será encoberta pela prescrição (art. 189), é porque a fluência do mencionado lapso prescricional, por força de lei, é ininterrupta. Qualquer exceção a tal comando deve estar prevista em lei, pois, do contrário, a hipótese se subsumirá à regra geral (da fluência ininterrupta do prazo). O que buscamos dizer é que não há lacuna aqui a ser colmatada, porquanto, ou a fluência do prazo é ininterrupta, por força do artigo 189, ou pode ser obstada, suspensa ou interrompida, por força apenas de um dos dispositivos constantes do artigos 197 e seguintes. Não há limbo, não há lacunas... logo, não haverá analogia.

Mas e se o magistrado, tocado pela infelicidade da mutação legislativa, resolver analogicamente aplicar a regra suspensiva do artigo 198, I aos deficientes? Bem... ele estará a agir como legislador, inovando onde não há lacuna. O mais surreal, porém, é que o fim da suspensão da prescrição, derivada da deficiência mental ou intelectual, embora prejudicialíssimo a este, iguala-o aos não deficientes, contemplando da pior forma possível o pressuposto igualitário do Estatuto. O irônico é que talvez desigualar os atores jurídicos com deficiência, em algumas hipóteses, atendesse mais ao princípio da isonomia, no sentido material, do que dispensar regramento jurídico idêntico ao das pessoas sem deficiência, mormente quando a diferenciação está justificada pelo caráter protetivo.

Conhecendo, porém, a forma pouco científica, quase emotiva, como se trata o direito no Brasil, cremos, abismados, que, no futuro, os tribunais aplicarão analogicamente o artigo 198, I aos hoje (plenamente capazes) deficientes simplesmente por parecer-lhes o mais justo, seja isso técnico ou não.


7. A questão da relativa incapacidade daqueles que, por causa provisória ou permanente, não possam expressar sua vontade.

A inclusão da presente hipótese entre os casos de incapacidade relativa parece ser a mais absurda interferência do Estatuto da Pessoa com Deficiência no Código Civil. Não é necessário dispensar muitas linhas para se compreender o equívoco. Ora... se a pessoa NÃO pode expressar sua vontade, como demandaria a presença de um assistente (e não representante) que lhe acompanharia na prática dos negócios jurídicos. Repita-se: é imprescindível, nas hipóteses de assistência, que o assistido manifeste sua vontade, estando apenas acompanhado pelo curador, que lhe afere a oportunidade e a não lesividade. Fica quase impossível imaginar como alguém em coma profundo serpa assistido, por ser relativamente incapaz, e não representado, o que demandaria fosse enquadrado como absolutamente incapaz. Nesse aspecto, pode-se taxar como desastrosa a interferência legislativa.


8. A questão da validade dos atos praticados pelo deficiente para o qual não se nomeou curador.

Os artigos 166, I e 171, I  do Código Civil, respectivamente, taxam de nulos os atos praticados pelos absolutamente incapazes e anuláveis aqueles levados a cabo pelos relativamente incapazes.

Na sistemática originária do Código Civil, estando ou não interditado o agente, ele era incapaz e os seus atos já eram inválidos. Ocorre que os deficientes não são mais considerados incapazes. Temos, portanto, que os atos por eles praticados são válidos. Caso seus pais, tutores, cônjuges, o Ministério Público ou o próprio deficiente entendam necessário, poderão solicitar a nomeação de curador, feito com caráter nitidamente constitutivo. A partir daí, os atos praticados pelo deficiente necessitarão da presença do curador cujos poderes, na forma do artigo 1.772, se circunscreverão aos limites impostos pelo artigo 1782, que determina:

“Art. 1.782. A interdição do pródigo só o privará de, sem curador, EMPRESTAR, TRANSIGIR, DAR QUITAÇÃO, ALIENAR, HIPOTECAR, DEMANDAR OU SER DEMANDADO, E PRATICAR, EM GERAL, OS ATOS QUE NÃO SEJAM DE MERA ADMINISTRAÇÃO.”

(grifo não constante do original)

Mas e o curador – será representante ou assistente do deficiente? E os atos praticados sem a sua presença, serão nulos ou anuláveis? Novamente nada se indica na lei. Assim, somos obrigados a combinar o artigo 85 do Estatuto da Pessoa com Deficiência com o artigo 166, VII do Código Civil, pois, se atos negociais e patrimoniais devem contar com a presença do curador, a sua ausência, por não haver sanção disciplinada em expressamente em lei, haverá de ser a nulidade do ato. São esses, portanto, apenas alguns dos problemas que podemos vislumbrar pela açodada intervenção no Código Civil.

Um Código Civil representa um todo orgânico. A alteração de alguns artigos pode estabelecer a quebra de sistemas lógicos articulados, trazendo inúmeras perplexidades, não obstante a nobreza das intenções em jogo. Temo que o nosso Direito Civil esteja sendo reformulado de maneira inadequada. Pode-se afirmar, em resposta à crítica, que vivenciamos o alvorecer de nova era, em que a dignidade da pessoa humana suplanta anacrônicos textos. Se é assim, sugerimos um total revisão das nossas leis civis, para que sejam adaptadas de forma harmônica ao dito princípio. O problema é que as mutilações parciais do nosso Código criam um sistema híbrido e incoerente, remetendo ao intérprete a extenuante missão de harmonizar antinomias quase insuperáveis.


9. Conclusão

A título de conclusão, pode-se afirmar que a incapacidae de fato não tem e nunca teve uma conotação pejorativa, em termos jurídicos. Ela se refere apenas ao exercício dos atos da vida civil, por si só. A alteração do regime das incapacidades para afastar eventual caráter pejorativo de uma terminologia jurídica não pode ser o motivo para alterações tão profundas em temas tão fundamentais do direito como um todo. Há outros termos jurídicos, como incompetência, que, na linguagem quotidiana, também conotação pejorativa e nem por isso, seu regime jurídico foi alterado.

A livre manifestação do consentimento de certos sujeitos nem sempre é possível e, nestes casos, deve haver um regime de proteção aos sujeitos que não conseguem expressar sua vontade. O regime das incapacidades sempre foi uma dessas formas de proteção e sua alteração em nada vai contribuir para tal proteção.

As pessoas com deficiência merecem e devem ser protegidas, mas não é alteração do regime das incapacidades de fato que vai fazê-lo. Na verdade, tais alterações correm o risco de gerar insegurança e, eventualmente, causar prejuízo às pessoas com deficiência. O afastamento das pessoas com deficiência do regime das incapacidades, na forma das alterações inseridas pelo Estatuto, sem considerar as peculiaridades do caso concreto, não é uma garantia de proteção às pessoas com deficiência. Institutos como a incapacidade sempre existiram para proteção e não para punição do sujeito.


10. Referências

ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Coimbra, 1997, v. 1.

BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Campinas: RED, 1999.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. APC 70040298879. Voto do Desembargador Rubem Duarte. Acórdão publicado no DJ de 22/06/2011.

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CÂMARA LEAL, Antônio Luíz da. Da Prescrição e da Decadência. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias.4 ed. São Paulo: RT, 2006.

FLORES, Paulo Roberto Moglia Thompson. Direito Civil – Parte Geral. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.

GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

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LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Traducción y notas de Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1978.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 1.

PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil – tomo XVI. Rio de Janeiro: Forense, 1977.

SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil – v. 3.8 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.


Notas

[1] ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Coimbra, 1997, v. 1, p. 2.

[2] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 2, p. 10.

[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 1, p. 141.

[4] BEVILAQUA, Clóvis. Theoria geral do direito civil. Campinas: RED Livros, 1999, p. 147.

[5] BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria geral do direito civil. Campinas: RED, 1999, p. 82.

[6] PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria geral do direito civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999, p. 535.

[7] LARENZ, Karl. Derecho civil: parte general. Traducción y notas de Miguel Izquierdo y Macías-Picavea. Madri: Editoriales de Derecho Reunidas, 1978, p. 755.

[8] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 1, p. 176.

[9] Disponível em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=167262&tp=1, acesso em 07/07/2015.

[10] FLORES, Paulo Roberto Moglia Thompson. Direito Civil – Parte Geral. Brasília: Gazeta Jurídica, 2013.

[11] Disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/estado, consultado em 09-07-2015.

[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil – tomo XVI. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 367/368.

[13] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias.4 ed. São Paulo: RT, 2006, p 551.

[14] SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de Direito Processual Civil – v. 3.8 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p 437.

[15] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro – v. 6.8 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p 714.

[16] BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. APC 70040298879. Voto do Desembargador Rubem Duarte. Acórdão publicado no DJ de 22/06/2011.

[17] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 171.

[18] Tradução livre da versão original do Código Civil Italiano, disponível em http://www.jus.unitn.it/cardozo/obiter_dictum/codciv/Lib1.htm, acesso em 6 de agosto de 2015.

[19] CÂMARA LEAL, Antônio Luíz da. Da Prescrição e da Decadência. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 164.

[20] CÂMARA LEAL, Antônio Luíz da. Da Prescrição e da Decadência. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 178. 

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Sobre os autores
Marlon Tomazette

procurador do Distrito Federal, advogado em Brasília (DF), professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal

Rogério Andrade Cavalcanti Araújo

Procurador do Distrito Federal Advogado Professor de Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZETTE, Marlon ; ARAÚJO, Rogério Andrade Cavalcanti. Crítica à nova sistemática da incapacidade de fato segundo a Lei 13.146/15:: Estatuto da Pessoa com Deficiência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4449, 6 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42271. Acesso em: 23 abr. 2024.

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