Persecutio criminis e Presidente da República

28/08/2015 às 06:46
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O artigo põe em discussão o artigo 86, parágrafo quarto, da Constituição Federal.

Na lição de Frederico Marques(Elementos de Direito Processual Penal, pág. 130) verifica-se a persecutio criminis em dois momentos distintos: o da investigação criminal e o da ação penal.

Quando alguém transgride a norma penal incriminadora, sua punição somente deve ocorrer após a efetivação do devido processo legal. Para que tal ocorra, é preciso que o Ministério Público, titular da ação penal pública, leve o fato ao conhecimento do Estado-Juiz, a fim de que, apreciando-o, declare se procede ou improcede, se é fundada ou infundada a pretensão estatal.

Para que o órgão do Ministério Público possa levar ao conhecimento do Juiz a notícia sobre um fato infringente da norma penal, apontando o autor, deverá ter em mãos os elementos comprobatórios do fato e da respectiva autoria.

  Para tanto necessário a investigação preliminar do fato, incumbência essa que geralmente é levada a efeito pela Policia Judiciária, oportunidade em que serão colhidos os elementos probatórios.

Feita a investigação as informações compiladas deverão ser levadas ao Ministério Público a fim de que este ofereça, se for o caso, a competente ação penal. Essa a lição de Fernando da Costa Tourinho Filho(Processo Penal 6ª edição, , volume I, pág. 160).

Poderá o Ministério Público exercer seu poder de investigação.

A matéria, que é polêmica, está hoje sujeita a repercussão geral como se lê do RE 593.727/RG/MG, Relator Ministro Cezar Peluso.

De um lado, fala-se no exercício de poderes implícitos pelo Ministério Público, na linha da jurisprudência americana, já que ao Parquet cabe a atividade de supervisão da atividade policial, por força do artigo 129 da Constituição Federal. É o que se lê do texto da norma fundamental:

VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais;

De outro lado, há os que entendem que tal tarefa é apenas das polícias civis e da polícia federal. Em razão disso, para esses, se o Ministério Público exerce sozinho o papel de condução da investigação,  a consequência seria a nulidade com a extração das provas dos autos colhidas que deram azo a denúncia. A propósito, Guilherme de Souza Nucci(Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, pág. 86) acentuou que é contrário a  investigação criminal conduzida, de forma isolada, pelo Ministério Público, uma vez que seria feita sem qualquer fiscalização e controle, e pelo fato de que não há previsão legal específica. Conclui seu raciocínio, entendendo que se ocorrer o acesso do advogado do investigado nos autos, precisa ele ser assegurado. É o que se lê no HC 88.190 – RJ, Relator Ministro Cezar Peluso, DJ de 6 de outubro de 2006.

Nessa linha, e a modo de conclusão, lembra-se  o Recurso Ordinário de HC n. 81.326-7, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal , unanimemente, sob o voto condutor do Min. Nelson Jobim, onde se decidiu que o Ministério Público não possui atribuições para realizar, diretamente, investigação de caráter criminal. Em seu voto, o Min. Jobim destaca que, historicamente, no direito processual penal brasileiro, as atribuições para realizar as investigações preparatórias da ação penal têm sido da polícia, pelas mais diversas razões, as quais têm prevalecido a ponto de todas as iniciativas no sentido de mudar as regras nessa matéria terem sido repelidas, desde a proposta de instituir Juizados de Instrução feita pelo então Ministro da Justiça, Dr. Vicente Ráo, em 1935, passando pela elaboração da Constituição de 1988, da lei complementar relativa ao Ministério Público, em 1993, até propostas de emendas constitucionais em 1995 e 1999, com o objetivo de dar atribuições investigatórias ao Parquet.

Exige-se, de toda sorte, que tal atividade se faça com respeito aos direitos individuais.

Acentua-se que a legitimidade do Ministério Público para a colheita de elementos probatórios essenciais à formação de sua opinio delicti decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 75/1993 (art. 129, incisos VI e VIII, da Constituição da República, e art. 8.º, incisos V e VII, da LC n.º 75/1993).

Vem a pergunta: Poderia o Presidente da República ser investigado por fatos anteriores a seu mandato e ter contra si ajuizada ação penal por conta desses fatos?

Interessa-nos o artigo 86, § 4º, da CF, com a seguinte redação:

Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.

§ 4º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

O assunto, a meu ver, deve permanecer em discussão uma vez que o Procurador-geral da República, em sua sabatina, no Senado Federal, disse: “A jurisprudência mais moderna do STF é no sentido de que não pode haver investigação, pois ela se destina exclusivamente à responsabilização”.

Realmente está certo o entendimento de que o inquérito policial destina-se à formação da opinião do Ministério Público e, não necessariamente será no sentido de deflagrar o processo criminal, podendo ocorrer o pedido de arquivamento do titular da ação penal(artigo 28 do Código de Processo Penal ou ainda nas hipóteses de ações penais originárias de competência do STF ou do STJ, artigo 3º, inciso I, da Lei 8.038, de 28 de maio de 1990).

O impeachment' na Constituição de 1988, no que concerne ao Presidente da Republica tem o seguinte procedimento: autorizada pela Câmara dos Deputados, por dois tercos de seus membros, a instauração do processo (C.F., art. 51, I), ou admitida a acusação (C.F., art. 86), o Senado Federal processará e julgará o Presidente da Republica nos crimes de responsabilidade. É dizer: o 'impeachment' do Presidente da Republica será processado e julgado pelo Senado Federal. O Senado Federal e não mais a Câmara dos Deputados formulará a acusação (juízo de pronuncia) e proferirá o julgamento. C.F./88, artigo 51, I; art. 52; artigo 86, § 1º, incisos I e II (MS no 21.564-DF).

A lei estabelecerá as normas de processo e julgamento. Constituição Federal,  art. 85, par. único. Essas normas estão  na Lei n. 1.079, de 1.950, que foi recepcionada, em grande parte, pela  Constituição Federal de 1988 (MS n. 21.564-DF).

Estabelece o art. 86, caput, da Constituição Federal de 1988, que admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade. Como já salientado, as infrações penais comuns opõem-se às infrações político-administrativas (crimes de responsabilidade), e tanto estas como aquelas podem ser cometidas pelo Presidente da República durante o exercício do mandato presidencial. Em sendo um crime comum (peculato, corrupção passiva, concussão,  etc.), admitida a acusação por maioria qualificada de dois terços da Câmara dos Deputados o Presidente da República sujeitar-se-á ao Supremo Tribunal Federal, que permitirá ou não a instauração de um processo contra o Chefe do Executivo Federal. Percebe-se, pois, que o Presidente da República dispõe de prerrogativa de foro (prerrogativa de função). Somente a Corte Suprema poderá processá-lo e julgá-lo por crimes comuns (CF, art. 102, I, b), obviamente após o juízo de admissibilidade da Câmara dos Deputados, que precisará do voto de 2/3 (dois terços) de seus membros para autorizar o processo. É importante notar, no entanto, que a admissão da acusação pela Câmara dos Deputados não vincula a Corte Suprema (STF), que poderá rejeitar a denúncia-crime ou queixa-crime, caso entenda, por exemplo, inexistirem elementos suficientes de autoria e materialidade. Recebida a denúncia, o Presidente da República ficará suspenso de suas funções por 180 (cento e oitenta) dias; decorrido este prazo voltará o Presidente a exercer suas funções presidenciais, devendo o feito prosseguir até a decisão derradeira. Registre-se que enquanto não sobrevier sentença condenatória, o Presidente da República não poderá ser preso (art. 86, § 3º, da CF/88). Não se admite prisões em flagrante, preventiva e temporária, mesmo em se tratando de crimes inafiançáveis. Ademais, durante a vigência do mandato presidencial, não poderá o Presidente ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (art. 86,§ 4º, da CF/88). Em outras palavras, só haverá a persecução criminal após o término do mandato executivo, tendo em conta que o delito praticado não tem conexão com o exercício da função presidencial. Obviamente, haverá suspensão do curso da prescrição até o término do mandato executivo.

Disse o Ministro Sepúlveda Pertence(Inq. 567 – DF), que o alcance concreto da cláusula constitucional que defere ao Presidente da República “imunidade temporária à persecução penal”, traduz-se na paralisação da própria atividade persecutória que incida sobre atos delituosos estranhos ao exercício das funções presidenciais(CF, art. 86, par. 4º), até que sobrevenha a cessação do mandato.

Sobre isso se tem de posição do Ministro Celso de Mello(Inq. 927 – 9/SP, Relator Ministro Celso de Mello, DJ 1, de 23 de fevereiro de 1995, pág. 3.507) quando disse:

“Os ilícitos penais cometidos em momento anterior ao da investidura do candidato eleito na Presidência da República – exatamente porque não configuram delicta in officio – também são alcançados pela norma tutelar positivada no § 4º do art. 86 da Lei Fundamental, cuja eficácia subordinante e imperativa inibe provisoriamente o exercício pelo Estado, do seu poder de persecução criminal”.

No inquérito 1.418 – 9, DJU de 8 de novembro de 2001, o Ministro Celso de Mello repetiu que:

“A cláusula de imunidade penal temporária, instituída, em caráter extraordinário, pelo art. 86, § 4\", da Constituição Federal, impede que o Presidente da República, durante a vigência de seu mandato, sofra persecução penal, por atos que se revelarem estranhos ao exercício das funções inerentes ao ofício presidencial. Doutrina. Precedentes”.

Mas é, na argumentação colhida no Inq 672 – 6 – DF, que o Ministro Celso de Mello registra:

“ Essa norma constitucional – que ostenta nítido caráter derrogatório do direito comum – reclama e impõe, em função de sua própria excepcionalidade, exegese estrita, do que deriva a sua inaplicabilidade a situações jurídicas de ordem extrapenal.

Sendo assim, torna-se lícito asseverar que o Presidente da República não dispõe de imunidade,quer em face de procedimentos judiciais que vissem a definir-lhe a responsabilidade civil, quer em face de procedimentos instaurados por suposta prática de infrações político-administrativas(ou impropriamente denominados crimes de responsabilidade), quer, ainda, em face de procedimentos destinados a apurar, para efeitos estritamente fiscais, a responsabilidade tributária do Chefe do Poder Executivo da União.”

Mas haveria impedimento constitucional de se proceder a qualquer investigação contra o Presidente da República por fatos anteriores ao mandato  de forma a ensejar a informatio delicti?

Interessa-nos, principalmente, o trecho, naquele pronunciamento, em que o Ministro Celso de Mello conclui:

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“De outro lado, impõe-se advertir que, mesmo na esfera penal, a imunidade constitucional em questão somente incide sobre os atos inerentes à persecutio criminis in judicio. Não impede, portanto, que, por iniciativa do Ministério Público, sejam ordenadas e praticadas, na fase pré-processual do procedimento investigatório, diligências de caráter instrutório destinadas a ensejar a informatio delicti e a viabilizar, no momento constitucionalmente oportuno, o ajuizamento da ação penal.”

Nesse entendimento exposto pelo Ministro Celso de Mello, somente estão abrangidas  pelo preceito inscrito no par. 4º do art. 86 da Constituição Federal as infrações penais comuns eventualmente praticadas pelo Presidente da República que não guardem – ainda que praticadas na vigência do mandato – qualquer conexão com o exercício do ofício presidencial.

Dir-se-á: Mas há o óbice de que determinados ilícitos, que teriam sido praticados pela Presidente, como os que envolvem “as chamadas pedaladas fiscais” teriam sido cometido no primeiro mandato?

Lembre-se  a lição de Paulo Brossard(O impeachment, 1965) quando explicou que “o fim do processo de responsabilidade é afastar do governo ou do tribunal um elemento mau; não se instaura contra governo renunciante, porém atinge o reconduzido”.

Nessa lógica de argumento, tem-se que não há poder do presidente sem a respectiva responsabilidade.

Realmente, como afirmou Gustavo Badaró(Poder e responsabilidade), “sendo possível a reeleição, com o pleito ocorrendo três meses antes do término do mandato, a impossibilidade do impeachment por ato do primeiro mandato significaria na prática que haveria um “bill de indenidade” para os atos nos momentos derradeiros, mas decisivos do mandato, pois não haveria tempo para um processo de impedimento”.

Soa fora do razoável, em absoluto delírio, que “se perdesse a reeleição, com o término do mandato, deixaria o cargo e perderia sentido o impeachment. Se fosse reeleito, o ato maléfico praticado no mandato anterior não seria possível de responsabilização.”

Realmente, isso significaria um poder sem responsabilidade, o que agride o estado de direito. Longe está o tempo quando se dizia: “The king can do not wrong”.

Esses argumentos me fizeram refletir melhor com relação a tese de que não haveria aplicação do principio da continuidade para o caso. Ora, a continuidade é principio da administração, um dos seus vetores e deve ser aplicado ao caso. Novo governo com reeleição é continuidade do anterior e como tal permite a responsabilidade com relação aos atos no mandato anterior.

Governo irresponsável não é governo democrático e o impeachment é um instituto democrático, próprio do presidencialismo. Não é golpe como anunciam alguns.

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Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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