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A inconstitucionalidade da súmula de efeito vinculante no Direito brasileiro

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4.0 - Da Inconstitucionalidade do Efeito Vinculante

A partir de agora, passa-se à análise da inconstitucionalidade da adoção do efeito vinculante no Direito brasileiro.

Serão abordados, como fontes desta inconstitucionalidade, os princípios do Devido Processo Legal, do Livre Convencimento do Juiz, do Duplo Grau de Jurisdição, da Obrigatoriedade de Fundamentação de toda decisão judicial, além do princípio da divisão e harmonia dos Três Poderes; todos garantidos pela Constituição Federal de 1988, e que, conforme será demonstrado, seriam desrespeitados na eventualidade da adoção das súmulas vinculantes.

4.1 - Do Devido Processo Legal

4.1.1 - Conceito

Como devido processo legal, ou due process of law, deve ser entendido: "...o conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, asseguram às partes o exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição. Garantias que não servem apenas aos interesses das partes, como direitos públicos subjetivos (ou poderes e faculdades processuais) destas, mas que configuram, antes de mais nada, a salvaguarda do próprio processo, objetivamente considerado, como fator legitimante do exercício da jurisdição." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 82).

Quanto ao conteúdo deste princípio, podemos elencar o contraditório, a ampla defesa, a igualdade processual, a publicidade, o dever de motivar as decisões judiciais, a inadmissão de provas obtidas por meios ilícitos, além de outros aplicáveis, mais especificamente, ao processo penal. (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., págs. 82 a 85).

A maioria destes sub-princípios decorrentes do princípio do devido processo legal (os que se contrapõem à adoção do efeito vinculante), por serem considerados como princípios autônomos, serão analisados à seguir, separadamente.

4.1.2 - Da súmula vinculante e o devido processo legal

O efeito vinculante não se amolda à um sistema jurídico que vise garantir o devido processo legal, como ocorre no Brasil (CF/88, art. 5º, incisos LIII, LIV, LV, LVI, além de outros), pois, conforme argumenta José Anchieta da Silva, o efeito vinculante "...é uma extensão da coisa julgada para além da lide singular. A afirmação contém em si, em termos científicos, uma heresia mas, na prática, este será o efeito do tal efeito vinculante amplo pretendido. E isto é conspirar contra o conceito mesmo da coisa julgada, em todas as latitudes. O mesmo Sérgio Sérvulo da Cunha [...] lembra que ‘os efeitos dessa decisão, porém, são circunscritos àqueles que puderam expor suas razões em juízo, fazer provas, debater o Direito e os fatos e recorrer das decisões contrárias [...] É impossível, em face desse direito fundamental, proferir-se decisão judicial cuja execução alcance quem não foi litigante, quem não teve a oportunidade de se defender, fazer prova, expor suas razões, discutir o fato e o Direito. [...] A força obrigatória (efeito vinculante) das decisões judiciais, o alcance executório da coisa julgada, restringe-se, portanto, aos que foram parte no respectivo processo.’ [...] Tais e pertinentes conclusões vêm secundada pela invocação do texto constitucional, exatamente no que ele contém de mais eloqüente, em torno das inderrogáveis prerrogativas de cidadania, segundo a qual aos litigantes e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, (art. 5º, inciso LV da Carta Política) e, segundo a qual a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV, do mesmo texto constitucional)." (Op. cit., págs. 48 a 50).

4.2 - Do Livre Convencimento do Juiz

4.2.1 - Conceito

Também (e mais acertadamente) chamado de princípio da persuasão racional do juiz, "tal princípio regula a apreciação e a avaliação das provas existentes nos autos, indicando que o juiz deve formar livremente sua convicção..." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 67).

Decorre deste princípio que "...o juiz não é desvinculado da prova e dos elementos existentes nos autos (quod non est in actis non est in mundo), mas a sua apreciação não depende de critérios legais determinados a priori. O juiz só decide com base nos elementos existentes no processo, mas os avalia segundo critérios críticos e racionais..." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 68).

Este princípio indica, também, independência do juiz em relação aos Tribunais Superiores, estando diretamente ligado à garantia de independência dos juízes, "...a qual retira o magistrado de qualquer subordinação hierárquica no desempenho de suas atividades funcionais; o juiz subordina-se somente à lei, sendo inteiramente livre na formação de seu convencimento e na observância dos ditames de sua consciência." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 161).

Apesar de não estar expressamente garantido pela Constituição Federal de 1988, este princípio está intimamente ligado ao princípio do devido processo legal (analisado acima - item 4.1), e ao princípio da obrigatoriedade de motivação das decisões judiciais (analisado mais adiante - item 4.4).

4.2.2 - Da súmula vinculante e o livre convencimento do juiz

Nota-se, facilmente, que a garantia ao livre convencimento do juiz é impraticável em face ao efeito vinculante, uma vez que, caso seja adotado este efeito vinculativo das súmulas dos tribunais, o juiz, mesmo que convencido do contrário, deverá decidir a lide da forma que foi previamente estabelecido pelos Tribunais Superiores, estando vinculado à decisão sumulada.

Tão gritante é a impossibilidade da garantia do livre convencimento do juiz frente ao efeito vinculante que maiores argumentações tornam-se desnecessárias.

4.3 - Do Duplo Grau de Jurisdição

4.3.1 - Conceito

"Esse princípio indica a possibilidade de revisão, por via de recurso, das causas já julgadas pelo juiz de primeiro grau (ou primeira instância), que corresponde à denominada jurisdição inferior. Garante, assim, um novo julgamento, por parte dos órgãos da ‘jurisdição superior’, ou de segundo grau (também denominada de segunda instância)." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 73).

Este princípio do duplo grau de jurisdição "...funda-se na possibilidade de a decisão de primeiro grau ser injusta ou errada, daí decorrendo a necessidade de permitir sua reforma em grau de recurso [...] é mais conveniente dar ao vencido uma oportunidade para reexame da sentença com a qual não se conformou [...] mas o principal fundamento para a manutenção do princípio do duplo grau é de natureza política: nenhum ato estatal pode ficar imune aos necessários controles..." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 74).

"Em princípio só se efetiva o duplo grau de jurisdição se e quando o vencido apresentar recurso contra a decisão de primeiro grau: ou seja, há necessidade de nova provocação do órgão jurisdicional, por parte de quem foi desfavorecido pela decisão..." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 75).

Este princípio é previsto pela Constituição Federal na parte final do inciso LV do artigo 5º.

4.3.2 - Da súmula vinculante e o duplo grau de jurisdição

Aqui também é facilmente notada a desarmonia que existiria entre o princípio do duplo grau de jurisdição e o efeito vinculante das súmulas, uma vez que seria desnecessário (ou inútil) o recurso interposto pela parte desfavorecida pela sentença, pois a decisão final do Tribunal já seria previamente conhecida.

O absurdo que poderia ocorrer é tão grande que não é possível encontrar argumentos favoráveis à adoção do efeito vinculante.

O que poderia ocorrer, por exemplo, seria um caso onde a parte pleiteasse em juízo um determinado direito e que tivesse uma sentença onde o juiz, apesar de não convencido pela súmula de efeito vinculante, julgasse a ação contrariamente ao esperado pela parte (e desejado pelo juiz), e que após recurso ao Tribunal imediatamente superior, o processo teria fim com um simples despacho do relator, onde este afirmaria apenas que tal recurso é contrário à decisão já proferida pelo STF, inviabilizando, por completo, o duplo grau de jurisdição; pois, como no caso hipotético, as provas do processo (que foram capazes de convencer o juiz de primeira instância, mas que apesar disso foi obrigado a julgar segundo a súmula) não seriam sequer analisadas para possível alteração da súmula vinculativa.

4.4 - Da Obrigatoriedade da Fundamentação da Decisão Judicial

4.4.1 - Conceito

"Na linha de pensamento tradicional a motivação das decisões judiciais era vista como garantia das partes, com vistas à possibilidade de sua impugnação para efeito de reforma. era só por isso que as leis processuais comumente asseguravam a necessidade de motivação [...] mais modernamente, foi sendo salientada a função política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e a legalidade e justiça das decisões" (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 68).

Tal princípio é previsto pelo inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, que prevê a nulidade para toda e qualquer decisão judicial que não esteja devidamente fundamentada.

4.4.2 - Da súmula vinculante e a obrigatoriedade da fundamentação de todas as decisões judiciais

Aqui também é nítido descompasso entre a fundamentação das decisões e o efeito vinculante das súmulas, uma vez que seria possível que uma decisão fosse fundamentada apenas de maneira formal, indicando simplesmente que a súmula de determinado Tribunal é no sentido da decisão, chegando, ao extremo nem se analisar as provas do processo, ou quem sabe, até mesmo de se decidir pela improcedência da ação quando do despacho inicial do processo, impossibilitando o acesso à justiça (outro princípio garantido pela Constituição Federal de 1988 - analisado a seguir, no item 4.5).

4.5 - Do Acesso à Justiça

4.5.1 - Conceito

"Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente um pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participntes do conflito e do processo. Por isso é que se diz que o processo deve ser manipulado de modo a proporcionar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente, em ‘acesso à ordem jurídica justa’. Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo..."[sic] (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 33).

Contudo, neste estudo, cumpre analisar somente os aspectos da admissão ao processo, ou ingresso em juízo, onde deve-se buscar efetivar a possibilidade jurídica do interessado à ingressar em juízo, e, mais que isso, analisar sua pretensão; ou do acesso à decisões justas, onde "...o juiz deve pautar-se pelo critério de justiça, seja (a) ao apreciar a prova, (b) ao enquadrar os fatos em normas e categorias jurídicas ou (c) ao interpretar os textos de direito positivo..." (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pelegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., pág. 35).

Tal garantia está expressa na Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea "a", e, mais especificamente, no inciso XXXV do mesmo artigo.

4.5.2 - Da súmula vinculante e a supervalorização do Poder Judiciário

Como visto o item 4.4.2, sobre a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais, podem ocorrer casos onde o juiz, no despacho inicial do processo, recuse receber a petição inicial sob o argumento de que tal pedido contraria determinada súmula de determinado Tribunal. Existe maior negação de acesso à justiça que este (não se chegar nem mesmo a dar início ao processo, ou por outro lado, não se chegar a analisar o pedido e as provas)?

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4.6 - Da Supervalorização do Poder Judiciário

4.6.1 - Conceito

Como é expressamente afirmado pelo artigo 2º da Constituição Federal de 1988, "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o executivo e o Judiciário."

Trata-se da consagração constitucional do princípio da Separação dos Poderes de Montesquieu.

4.6.2 - Da súmula vinculante e a supervalorização do Poder Judiciário

Afirma a Presidente da ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), Maria Helena Mallmann Sulzbach, que o efeito vinculante "...significa alterar o princípio constitucional que ‘ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’ (art. 5º, inc. II, da CF/88), cláusula pétrea não passível de alteração pelo poder constituinte derivado. Materializando a interpretação obrigatória que deve ser dada à lei, a súmula com efeito vinculante gera efeito que nem a lei provinda do Parlamento tem capacidade de produzir. Torna-se uma superlei, concentrando no Judiciário poderes jamais concedidos sequer ao poder constituinte originário, o qual não pode impor interpretação obrigatória às normas que disciplinam as relações sociais. A possibilidade de edição de súmula com efeito vinculante pelos tribunais de cúpula significa atribuir a esses competência de cassação e afirmação das normas, com evidente fragilização do Poder Legislativo e, acima de tudo, subtração de sua prerrogativa formal de legislar. Trata-se, ao nosso ver, de sucedâneo judiciário de Medida Provisória e, portanto, é mais uma forma de usurpação das funções legislativas do Congresso Nacional. E mais, sob o enfoque das conseqüências da edição de comando legislativo compulsório, ao qual o juiz se submete obrigatoriamente, há evidente supressão do processo de renovação do direito através da jurisprudência. Suprimindo-se o princípio do livre convencimento do juiz, suprime-se também uma das principais fontes desse processo que tem, em sua origem o exercício da advocacia, que fica restrito e limitado a requerer ao Judiciário simplesmente a aplicação do enunciado vinculativo. Com o engessamento do processo de renovação do direito fica a indagação: de que realidade e em que fatos sociais dinâmicos os tribunais de cúpula irão buscar inspiração para editar os seus comandos legislativos? Não tenho qualquer dúvida de que a busca da solução justa de cada processo é inerente à democracia, que não pode ser abalada a pretexto de descongestionamento do Judiciário." (Matéria "Efeito vinculante: prós e contras", em especial sobre a Reforma do Judiciário na Revista Consulex nº 3 de 31/3/1997).

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Sobre o autor
Enéas Castilho Chiarini Júnior

advogado e árbitro em Pouso Alegre (MG), especialista em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBDC) em parceria com a Faculdade de Direito do Sul de Minas Gerais (FDSM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHIARINI JÚNIOR, Enéas Castilho. A inconstitucionalidade da súmula de efeito vinculante no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 91, 2 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4248. Acesso em: 8 mai. 2024.

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