A partir desse texto damos início a uma série de artigos cujo objetivo é analisar as características inerentes ao inquérito policial. Trata-se de um tema muito discutido na doutrina e constantemente cobrado em concursos públicos e provas da Ordem dos Advogados do Brasil. Daí a importância de algumas reflexões sobre o assunto.
Não por acaso, iniciamos a série com um estudo sobre a sigilosidade do inquérito policial, uma característica essencial para o sucesso da investigação, tendo o condão de restabelecer a igualdade quebrada pelo criminoso no momento do crime, proporcionando ao Estado-Investigação a reunião de elementos de prova em ralação à autoria.
Primeiramente, consignamos que a publicidade é um princípio que rege a Administração Pública em geral e, sendo assim, também deve influenciar os atos de polícia judiciária, ao menos em regra. Como uma garantia constitucional, a publicidade assegura o acesso dos cidadãos ao conteúdo de processos e procedimentos, o que denota uma postura democrática por parte do Estado, uma vez que fomenta a transparência e viabiliza a fiscalização dos atos realizados.
Nas lições de Scarance Fernandes, com a publicidade “são evitados excessos ou arbitrariedades no desenrolar da causa, surgindo, por isso, a garantia como reação aos processos secretos, proporcionando aos cidadãos a oportunidade de fiscalizar a distribuição da justiça”.[1]
Sem embargo dessa previsão constitucional, a publicidade, assim como todos os outros direitos, não possui um caráter absoluto. Em outras palavras, ela pode perfeitamente ser limitada em situações que o interesse público prepondere diante de um confronto com o interesse privado, nos termos do postulado da proporcionalidade.
Considerando a finalidade do inquérito policial, é natural e até necessário o sigilo das investigações, haja vista que a publicidade, ao menos inicialmente, coloca em risco a efetividade do procedimento, ameaçando, outrossim, a própria Justiça. Nesse contexto, o Código de Processo Penal expõe de maneira clara a característica em estudo ao estabelecer no seu artigo 20 que a autoridade policial “assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
Percebe-se, destarte, que o princípio da publicidade é limitado dentro da investigação criminal, fazendo com que surja a sigilosidade, sem que isso, todavia, represente uma ofensa à Constituição da República. Aliás, o Pacto de São José da Costa Rica também autoriza o sigilo em alguns casos, dispondo que “o processo penal deve ser público, salvo no que for necessário para preservar os interesses da justiça”.
Para Nucci, “o inquérito policial, por ser peça de natureza administrativa, inquisitiva e preliminar à ação penal, deve ser sigiloso, não submetido, pois, à publicidade que rege o processo”[2].
Advertimos, porém, que o sigilo do inquérito policial não se estende ao Poder Judiciário e ao Ministério Público, que têm a função de fiscalizar os atos de polícia judiciária, tendo, justamente por isso, acesso irrestrito ao seu conteúdo. Da mesma forma, a parte interessada, ou seja, o investigado, também terá acesso aos autos através de seu advogado, conforme previsão do Estatuto da OAB (art.7°, XIV, da Lei n°8.906/94).
Nesse sentido, o STF editou a Súmula Vinculante n°14, com o seguinte teor: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Note-se que a Súmula faz menção apenas aos elementos de prova já documentados, vale dizer, já autuados no inquérito policial. Isso significa que, diferentemente do Poder Judiciário e Ministério Público, que têm amplo acesso à investigação, para o investigado essa acessibilidade é mitigada ou diferida. Em outras palavras, no que se refere ao investigado, a publicidade do inquérito policial não é absoluta, sendo perfeitamente possível o sigilo de alguns procedimentos.
Conforme ensinamento de Mougenot
Instaura-se, assim, uma publicidade diferida, solução encontrada para acomodar a necessidade de sigilo imposta pela natureza dos atos investigatórios e a garantia, à parte, do exercício de seu direito de defesa, por meio do acesso aos autos do inquérito policial[3].
Divergindo um pouco do restante da doutrina, Denílson Feitoza entende que o Estatuto da OAB e a própria Súmula Vinculante merecem uma interpretação restritiva, ao menos nos casos em que for decretado “segredo de justiça” na investigação. Assim, somente o advogado do investigado poderia ter acesso aos autos, pois se “qualquer advogado pudesse ter acesso aos autos em tais casos, seria o mesmo que não haver segredo de justiça”.[4]
Mister salientar, nesse ponto, que a sigilosidade do inquérito policial tem fundamento legal no princípio da supremacia do interesse público e no princípio da igualdade. Isto, pois, ao praticar uma infração penal o criminoso atua às margens do Estado, agindo de maneira escamoteada e muitas vezes premeditada, com a nítida intenção de furtar-se à aplicação da lei penal. Não é outro o escólio de Scarance Fernandes, senão vejamos:
“na fase indiciária justifica-se alguma desigualdade em favor do Estado, a fim de realizar melhor colheita de indícios a respeito do fato criminoso. É o que diz Jimenez Asenjo, em trecho citado por Tourinho Filho: ‘É difícil estabelecer igualdade absoluta de condições jurídicas entre o indivíduo e o Estado no início do procedimento, pela desigualdade real que em momento tão crítico existe entre um e outro. Desigualdade provocada pelo próprio criminoso. Desde que surge em sua mente a idéia do crime, estuda cauteloso um conjunto de precauções para subtrair-se à ação da Justiça e coloca o Poder Público em posição análoga à da vítima, a qual sofre o golpe de surpresa, indefesa e desprevenida. Para estabelecer, pois, a igualdade nas condições de luta, já que se pretende que o procedimento criminal não deve ser senão um duelo nobremente sustentado por ambos os contendores, é preciso que o Estado tenha alguma vantagem nos primeiros momentos, apenas para recolher os vestígios do crime e os indícios de culpabilidade do seu autor.”[5]
Salta aos olhos, portanto, a necessidade da sigilosidade no início das investigações, vez que é por meio desta característica que o Estado-Investigador consegue reunir os primeiros elementos em relação à autoria e materialidade criminosa, restabelecendo a igualdade quebrada no momento da prática do crime.
Nesse cenário, o princípio da supremacia do interesse público vem apenas para reforçar o caráter sigiloso do inquérito policial, pois a garantia da publicidade dos atos investigativos vai de encontro com o interesse público na consecução da justiça e na aplicação da lei penal.
Com o objetivo de melhor ilustrar a face sigilosa do inquérito policial, ousamos dividir esse procedimento em duas fases distintas: investigação criminal em sentido estrito e investigação criminal em sentido lato.
A investigação criminal em sentido estrito tem espaço no início da apuração, logo após a constatação da ocorrência do crime. Conforme exposto alhures, tendo em vista que a ação criminosa se dá de maneira sorrateira e sigilosa, com o intuito de não chamar a atenção das autoridades incumbidas de evitá-la, é imprescindível que na fase inicial da investigação o Estado também aja sigilosamente visando o esclarecimento da infração penal. Contudo, a partir do momento em que a investigação consegue reunir elementos suficientes sobre a autoria, não mais se faz necessário o sigilo, sobretudo porque já foi restabelecida a igualdade inicialmente quebrada no instante do delito.
A partir desse ponto o sigilo não é imprescindível para o restante da investigação, que já avançou o suficiente e agora deve se preocupar com o sujeito investigado, observando-se todos os seus direitos e dando-lhe a possibilidade de influenciar no resultado final. O investigado não pode ser tratado como objeto de direito, mas como sujeito de direito. Nesse sentido, afasta-se a sigilosidade do procedimento e dá-se voz ao interessado, fomentando, assim, a ampla defesa e o contraditório[6]. Surge, então, a denominada investigação criminal em sentido lato, que se desenvolve com a participação do investigado.
Exemplificando, imaginemos um caso de homicídio em que o Estado-Investigador tem um suspeito, mas as provas contra ele são ínfimas. Por óbvio, o criminoso arquitetou toda a sua ação visando furtar-se à aplicação da lei penal. Com o objetivo de reequilibrar essa “contenda”, a investigação se desenvolve inicialmente de forma sigilosa, através de um procedimento de interceptação telefônica. Por meio desse modelo investigativo, consegue-se reunir elementos suficientes em relação à autoria, ficando claro que o suspeito é realmente o responsável pelo homicídio (investigação criminal em sentido estrito). Nesse instante, a sigilosidade do procedimento já cumpriu o seu papel, não sendo mais necessária, devendo a investigação seguir com a participação do investigado, que deverá ser ouvido acerca dos fatos, podendo, eventualmente, se manifestar sobre o conteúdo da interceptação telefônica realizada, apresentando a sua versão sobre o tema (investigação criminal em sentido lato).
Percebe-se, assim, uma perfeita observância ao artigo 20, do Código de Processo Penal, que prevê que o Delegado de Polícia assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato. Em outras palavras, isso significa que a sigilosidade do inquérito policial deve perdurar pelo tempo necessário à reunião de indícios suficientes de autoria, sendo que a partir desse ponto deve ser viabilizada a participação do investigado, que poderá influenciar no resultado final do procedimento investigativo de seu interesse.
Referências
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. 9ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis.ed.6ª. Niterói: Impetus, 2009.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 1999.
NUCCI, Guilherme de Sousa. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 4ª edição. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
Notas
[1] FERNANDES, AntonioScarance. Processo Penal Constitucional. p. 68.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Excecução Penal. p.174.
[3] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. p.156.
[4] FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal – Teoria, Crítica e Práxis. p.183.
[5] SCARANCE FERNANDES, Antonio. Op. cit.p.51.
[6] Somos entusiastas da observância do contraditório no inquérito policial, mas dentro do possível, sem que a sua aplicação prejudique o sucesso das investigações.