O cheque, por definição é uma ordem de pagamento à vista, e sua função precípua é servir como meio de pagamento, substituindo vantajosamente a mobilização de moeda, razão por que assumiu importante função econômica em todo o mundo, ensina-nos JORGE ALCIBÍADES PERRONE DE OLIVEIRA1. Sua utilidade é facilmente perceptível em transações financeiras não tão diminutas, em que é mais prático e seguro pagar através de um único documento do que através de grande volume de moeda. Bem por isto, são raros os exemplos de pessoas que não utilizam o cheque ou que não aceitam recebê-los.
O viés negativo dessa forma de pagamento é a possibilidade de inexistência de fundos disponíveis por ocasião de sua apresentação para pagamento - daí falar-se em cheque sem fundos - situação corriqueira atualmente e motivo pelo qual muitos comerciantes se negam, peremptoriamente, a recebê-los, ou impõem a seus clientes o preenchimento de uma série de garantias.
Eis uma faculdade que lhes socorre, pois a norma legislada não obriga ninguém a receber um título de crédito como o cheque, isto é, um documento representativo de um crédito cujo exercício pode não vir a ser concretizado. O artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988 é claro a esse respeito: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".
Do mesmo modo, não há norma que obrigue o empresário a comunicar a seus clientes a opção de não receber cheques, não obstante recomendável tal precaução para que sejam evitadas situações constrangedoras. A regra, aliás, é o pagamento em moeda: tanto o antigo como o atual Código Civil Brasileiro, artigos 947 e 315, respectivamente, dispõem que o pagamento em dinheiro far-se-á em moeda corrente. A jurisprudência não destoa desse entendimento: "O cheque, que pode fazer às vezes de moeda, não o é, e não tem curso forçado, de sorte que a recusa, por estabelecimento comercial, não se reveste de ilicitude"2.
Essa faculdade, todavia, não possui a mesma amplitude quando analisada, no caso concreto, a situação dos fornecedores de produtos e serviços que regularmente aceitam receber cheques, assim como daqueles que divulgam essa praxe, ou ainda daqueles outros que repentinamente suspendem o seu recebimento, pois a boa-fé objetiva não se coaduna com a frustração desleal das expectativas criadas nos consumidores. Citemos como exemplo o caso de lojas de shoppings centers e dos postos de gasolina, que, podendo consultar aos sistemas informatizados de cadastro de devedores inadimplentes, normalmente trabalham com cheques. A estes incumbe, respeitadas opiniões em contrário, o dever de dar publicidade, junto à boca do caixa de seu estabelecimento, de forma visível e precisa, à política de recebimento de cheques praticada pela empresa, sendo de todo interessante o registro deste estatuto no Cartório de Títulos e Documentos.
É esse o comportamento que se deve esperar para que não sejam cometidos abusos, nem adotadas práticas discriminatórias, atentatórias à dignidade da pessoa humana, valor este que se constitui fundamento do Estado Democrático de Direito. Não se pode deixar ao livre arbítrio do comerciante a possibilidade de receber cheques de algumas pessoas e rejeitar os de outras, de acordo com critérios que só ele conhece, como, por exemplo, valor da mercadoria ou serviço, entrega do produto ou serviço mediante compensação do cheque, idade da conta bancária etc.
Nas condições aventadas, ofende a boa-fé a conduta do empresário que intempestivamente informa ao consumidor a impossibilidade de receber cheques com base neste ou naquele regramento interno do estabelecimento comercial, quiçá pelo vestuário do cliente, muitas vezes após longo tempo gasto na escolha do bem almejado. A hipótese abordada ocorre com freqüência no dia-a-dia de milhares de brasileiros, e quem já passou por tal situação sabe o quão constrangedora e frustrante se torna a recusa de um cheque por parte da loja, mormente após meses e meses de economias ou de luta pela aquisição da dignidade que um emprego "fixo" é capaz de oferecer. Afinal, ninguém gosta de ser rejeitado, principalmente aqueles que muito se esforçaram para ser aceitos.
A cláusula da boa-fé objetiva está prevista no Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90 (artigos 4º, III, e 51, IV) e consagrada no Novo Código Civil em três distintos artigos, a saber: artigo 113 - "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração", artigo 187 - "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes", e, por fim, artigo 422 - "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.".
Desde há muito sobreleva em importância o Princípio da Boa-fé Objetiva, cujo significado, explica JUDITH MARTINS COSTA, representa "um modelo de conduta social, arquétipo ou standart jurídico, segundo o qual ´cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade, probidade´"3.
Vale lembrar aos mais desavisados que a Lei e o contrato não são mais as únicas fontes de obrigações no Direito Brasileiro. É forçoso reconhecer, dentre as funções da boa-fé objetiva, a de criação de deveres jurídicos chamados deveres anexos ou deveres acessórios de conduta, inclusive na fase pré-contratual, e a de limitação de direitos subjetivos.
A jurista antes mencionada esclarece que entre os deveres acessórios de conduta encontram-se: "b) os deveres de aviso e esclarecimento, como os da fase pré-contratual, o do sujeito que entra em negociações, de avisar o futuro contratante sobre os fatos que podem ter relevo na formação da declaração negocial"; c) os deveres de informação, de exponencial relevância no âmbito das relações jurídicas de consumo, seja por expressa disposição legal (CDC, arts. 12, in fine, 14, 18, 20, 30 e 31, entre outros), seja em atenção aos mandamentos da boa-fé objetiva; e) os deveres de colaboração e cooperação, como o de colaborar para o correto adimplemento da prestação principal, ao qual se liga, pela negativa, o de não dificultar o pagamento, por parte do devedor".4
Como exemplo desses deveres acessórios de conduta se apresenta o dever de dar publicidade à política de recebimento de cheques, e, como exemplo de limitação de direitos subjetivos, o estreitamento do direito de recusar cheques.
Sustentamos, por esses motivos, que o direito de recusar o pagamento por meio de cheques sofre significativas restrições nas hipóteses em que o fornecedor de produtos e serviços cria em seus consumidores a expectativa de pagamento através de cheques, ou, dito de outra forma, que a eventual recusa somente pode ocorrer de acordo com as regras tornadas disponíveis ao consumidor de forma clara e acessível. Fora desse contexto, configura-se o ato ilícito por parte do comerciante, forte nos artigos 187 e 927 do novo Código Civil, ensejador, dependendo do caso, de indenização por perdas e danos. Medidas simples e relevantes como a ora propugnada devem ser incentivadas por todos, pois favorecem a parte que possui o ônus de refutar eventuais alegações de quebra da confiança ou de frustração de expectativas geradas.
Feitas estas observações, não podemos concordar com CARLOS ETCHEVERRY5, quando este autor, escorado no elevado índice de emissão de cheques sem provisão de fundos, tenta desencorajar "pretensões dezarrazoadas" alegando ser dever incondicional do consumidor "se informar previamente sobre a política seguida pelos fornecedores" e "que a inexistência de informações específicas sobre a política seguida em tais casos, através de cartazes ou por outros meios, não confere ao consumidor qualquer direito: é intuitivo, notório até, que os comerciantes, sempre que há proposta de pagamento através de cheque, utilizam procedimentos verificatórios destinados a assegurar a satisfação dos seus direitos creditórios e fazem exigências quanto ao tempo de existência da conta corrente bancária."
Pensamos possuir maior juridicidade, em face das regras e princípios invocados neste artigo, a tese de SÉRGIO TANNURI6, quando defende a ilegalidade da conduta dos "comerciantes em shopping centers" que, apesar de "anunciarem em suas vitrines que aceitam o pagamento através de cheques pré-datados"7, "para atrair a clientela", "em sedutoras formas de parcelamento", "recusam o cheque" do cliente "porque a conta corrente dele tem menos de um ano", mas fazemos as seguintes ressalvas: (a) a ilegalidade somente restará configurada na hipótese de o comerciante não ter tornado público o seu posicionamento pelo não-recebimento de cheques cujas contas bancárias possuem as aludidas características; (b) qualquer discussão judicial dependerá da prova da quebra da confiança gerada; (c) a ilicitude não reside na conduta de "presumir que a pessoa estaria passando cheques sem fundos"8, mas na inobservância dos deveres acessórios de conduta oriundos da boa-fé objetiva elencados ao longo deste texto.
Referências Bibliográficas
1- Títulos de Crédito, Doutrina e Jurisprudência, 3ª edição, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1999, p. 195 e ss.
2- Apelação Cível nº 599303781, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Relatora a Desembargadora Mara Larsen Chechi, julgado em 13/10/99.
3- A Boa-Fé no Direito Privado: Sistema e Tópica no Processo Obrigacional, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 411.
4- Obra citada, p. 445.
5- Magistrado Gaúcho, titular do 3º Juizado Especial Cível de Porto Alegre, em artigo publicado na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 10/02/2003, intitulado Recusa de cheque: Comércio pode ditar condições para receber pagamento, contrariando o pensamento defendido por Sérgio Tannuri, no artigo citado na nota subseqüente.
6- Prática abusiva, publicado na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 03/02/03.
7- Melhor nominados de cheques pós-datados.
8- Idem nota 6.