Embora a leitura dos primeiros artigos do texto do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) já seja o suficiente para nos certificarmos de que estamos diante de um sistema de normas procedimentais absolutamente inovador, ousado, e sem precedentes na história do Processo Civil brasileiro, devemos estar cientes de que cabe a nós (advogados, magistrados, membros do Ministério Público, da Defensoria Pública e servidores do judiciário), na condição de intérpretes deste novo código, dar-lhe o melhor sentido prático, à luz das suas diretrizes fundamentais, visando alcançar a máxima efetividade da prestação jurisdicional sob a sua égide.
E é através desta tarefa hermenêutica a qual estamos convidados a participar, que será construída a nova doutrina do sistema processual civil brasileiro, que, ao lado da jurisprudência, a ser formada pelos juízes de 1º grau, tribunais estaduais, regionais e superiores, a partir da entrada em vigor do novo código, auxiliará na percepção da comunidade jurídica, e da sociedade em geral, acerca do impacto real da mudança proposta pelo novo texto legal.
Importante observar, ainda, que diferentemente da jurisprudência que, por razões óbvias, precisa ainda dar as suas primeiras lições sobre a aplicação das normas, a doutrina (aqui referida ao conjunto de intérpretes da norma legal), encontra terreno fértil para se reunir, discutir e produzir as suas primeiras conclusões em torno das novas regras processuais.
Neste cenário, necessários são os congressos, simpósios, fóruns, encontros, que tenham por propósito reunir o maior número de pessoas que se predisponham a contribuir com um debate propositivo e elucidativo em torno das regras inovadoras do Novo CPC.
Foi com este espírito que, nos dias 25 e 26 de setembro de 2015, sob a coordenação científica do notável processualista baiano Fredie Didier Jr., realizou-se na cidade de Salvador/BA o I SIMPÓSIO AVANÇADO SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, evento com metodologia bastante inovadora, em que os componentes da mesa respondiam (e debatiam) perguntas previamente formuladas sobre temas polêmicos do novo código.
Ao longo destes dois dias de evento, que ainda contou com uma Conferência Magna do mestre Nelson Nery Júnior, foram selecionados 14 (catorze) temas-perguntas, divididos em três painéis temáticos, que foram exaustivamente respondidos e debatidos por processualistas do quilate de Eduardo Talamini, Daniel Assumpção, Dierle Nunes, Leonardo Carneiro da Cunha, Hermes Zaneti Jr., Heitor Sica, Rodrigo da Cunha Lima Freire, Paula Sarno, Antônio Adonias, Antônio do Passo Cabral, Luiz Henrique Volpe Camargo, além do próprio Fredie Didier Jr., na condição de mediador dos painéis.
Não é difícil imaginar que todos os temas debatidos no evento foram altamente relevantes e geraram uma discussão de altíssimo nível entre os palestrantes, que manifestaram, muitas vezes, entendimentos diametralmente opostos em relação à determinado tema proposto, de modo que o saldo final do evento superou qualquer expectativa.
Decerto, dentre os 14 (catorze) temas-perguntas propostos no simpósio, um deles chamou a atenção de cara deste articulista pela sua redação curiosa, motivo pelo qual resolveu escrever o presente artigo para apresentar, nas linhas que se seguem, a resposta construída pelos processualistas no referido evento.
Eis a pergunta: Admite-se a apelação independente do vencedor contra decisão interlocutória que lhe foi desfavorável? Em outras, palavras, quer se perguntar: Existe, no novo CPC, ou a partir dele, a previsão de interesse recursal autônomo do vencedor em face de decisão interlocutória proferida contra si na fase de conhecimento?
Muito bem, para começar a construir a resposta desta indagação assaz interessante, primeiro faz-se necessário chamar a atenção para um novo aspecto trazido pelo CPC/15, qual seja, o elenco taxativo do cabimento do agravo de instrumento previsto no artigo 1.015. Buscando familiarizar o leitor com o novo texto, vale a transcrição do referido dispositivo, in verbis:
Art. 1.015. Cabe agravo de instrumento contra as decisões interlocutórias que versarem sobre:
I - tutelas provisórias;
II - mérito do processo;
III - rejeição da alegação de convenção de arbitragem;
IV - incidente de desconsideração da personalidade jurídica;
V - rejeição do pedido de gratuidade da justiça ou acolhimento do pedido de sua revogação;
VI - exibição ou posse de documento ou coisa;
VII - exclusão de litisconsorte;
VIII - rejeição do pedido de limitação do litisconsórcio;
IX - admissão ou inadmissão de intervenção de terceiros;
X - concessão, modificação ou revogação do efeito suspensivo aos embargos à execução;
XI - redistribuição do ônus da prova nos termos do art. 373, § 1o;
XII - (VETADO);
XIII - outros casos expressamente referidos em lei.
Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário.
Neste particular, a vontade do legislador processual civil foi emprestar celeridade à tramitação do processo, a partir da adoção da regra da irrecorribilidade imediata das decisões interlocutórias (excepcionando, claro, as hipóteses taxativas previstas no citado art. 1.015), sobretudo aquelas que tratam de questões referentes à produção de prova, neste aspecto, inspirada na experiência de há muito vigente na seara trabalhista.
Aqui, vale abrir um parêntesis para dizer que nem mesmo a hipótese da impetração de Mandado de Segurança contra as decisões interlocutórias que não comportem agravo de instrumento parece ser a solução, na medida em que um dos requisitos de admissibilidade do mandamus é a irrecorribilidade da decisão (ato coator) combatido, conforme prevê o inciso II, do art. 5º, da Lei nº 12.016/2009[1] (Lei do Mandado de Segurança).
Ora, no sistema processual civil vindouro, as decisões interlocutórias são, salvo as exceções previstas no art.1.015, de irrecorribilidade imediata, ou seja, “inagraváveis”, o que não significa dizer que são irrecorríveis, uma vez que contra elas cabe apelação, com efeito suspensivo, de regra (vide o caput do art. 1.012[2] do CPC/15). Portanto, a única diferença é o momento da recorribilidade, deixando de ser imediata (via agravo de instrumento), passando a ser mediata (via apelação).
Fechado o parêntesis, de se registrar, ainda, que o Novo CPC não prevê o recurso de agravo retido, de modo que protrai a ocorrência da preclusão das questões resolvidas no curso da fase de conhecimento para a oportunidade do manejo da apelação, onde referidas questões devem ser suscitadas em sede preliminar, agora sim, sob pena de preclusão (art. 1.009 , §1º, CPC/15)[3].
Há ainda a previsão no CPC/15, notadamente no §2º do art. 1.009, da possibilidade do pedido de apreciação de questão resolvida na fase de conhecimento em sede de contrarrazões, que passa a ter, nestes casos, natureza híbrida. Referido parágrafo prevê, ainda, em homenagem ao princípio do contraditório, a intimação do recorrente para apresentar a correspondente manifestação sobre o pedido formulado nas contrarrazões, o que já está sendo chamado doutrinariamente de “contrarrazões das contrarrazões”.
Até aqui, nada além da regra, da interpretação literal do texto do novo CPC, que nos permite concluir que pode o vencedor, em sede de contrarrazões recursais, reavivar matéria que restou decidida em seu desfavor no curso da fase de conhecimento.
No entanto, como visto, a pergunta que pretendemos responder é outra. Vale repetir, em novas palavras: O Novo CPC permite que o vencedor interponha apelação autônoma, ou seja, independentemente da interposição, ou não, da apelação por parte do sucumbente, para discutir questão interlocutória na qual restou vencido na fase de conhecimento?
A resposta a esta pergunta não está prevista em qualquer dispositivo do código, assim como tantas outras que a experiência do dia-a-dia forense, na vigência do novo código, certamente nos obrigará a responder.
Com efeito, sem a ajuda da jurisprudência, cuja atuação segue em condição suspensiva diante da vacatio legis da Lei nº 13.105/2015 (Novo CPC), resta somente a criatividade dos intérpretes para a solução deste problema.
Assim, portanto, vejamos, finalmente, a construção da resposta, proposta pelo grande processualista Eduardo Talamini, na oportunidade do painel inaugural do I SIMPÓSIO AVANÇADO SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Imaginemos o seguinte caso hipotético: João, motorista de táxi da cidade de Salvador/BA, entrou com ação de reparação por danos patrimoniais e extrapatrimoniais em face de Maria, passageira que, no dia 28.08.2015, adentrara ao seu táxi e, por não gostar da música que tocava no veículo naquele momento, solicitou-lhe que mudasse de estação. Educadamente, João se negou a mudar de estação, o que gerou a ira de Maria, que começou a dirigir-lhe impropérios. João, paciente, não reage aos impropérios da sua passageira, mas também não muda a estação do rádio. Ao final da corrida, João é surpreendido com o fato de que Maria desceu do táxi e se negou a pagar a corrida, em razão da negativa de João em trocar a estação do rádio do táxi.
Protocolada a petição inicial pelo advogado de João, e, após a tentativa frustrada de conciliação entre as partes, o juiz recebe a contestação oferecida por Maria, que além de pugnar pela improcedência da demanda, requer ainda a condenação de João por litigância de má-fé, com base no inciso II, do art. 80 do CPC/15, em razão de João ter alterado a verdade dos fatos no bojo da petição inicial, ao ter acrescido supostos danos provocados por Maria na lataria do seu veículo, fato que não ocorreu.
No curso da fase de conhecimento, o juiz decide condenar João pela litigância de má-fé denunciada por Maria em sua contestação, sendo certo que, na sentença, julga procedente a demanda em favor de João, de modo que se estabelece a seguinte situação: João é vencedor da ação, contudo, vencido em questão resolvida no curso da fase de conhecimento, qual seja, condenação em litigância de má-fé.
Pois bem, neste caso, sem prejuízos de outros que venham a surgir na prática forense a partir da entrada em vigor do Novo CPC, segundo entendimento manifestado pelo processualista paranaense Eduardo Talamini, seria possível sim que João, mesmo que a parte sucumbente, no caso Maria, não interponha recurso de apelação da referida sentença, maneje recurso de apelação autônomo, na condição de vencedor da demanda, para discutir a questão resolvida no curso da fase de conhecimento que restou sucumbente (condenação em litigância de má-fé) e que, contra a qual, não pode se insurgir imediatamente, devido à ausência de previsão da referida hipótese no rol taxativo do artigo 1.015 do CPC/15 (hipóteses de cabimento do agravo de instrumento).
Em outras palavras, à exemplo do caso hipotético criado neste artigo, é plenamente possível, a partir da nova sistemática processual civil inaugurada pelo Novo CPC, se falar em interesse recursal autônomo do vencedor da demanda, já que, a despeito da sentença favorável, remanesce contra si decisão desfavorável proferida no curso da fase de conhecimento, cuja recorribilidade, como visto, não é mais imediata.
Assim, portanto, respondida a questão proposta ao longo deste artigo, que, vale repetir, foi um dos temas-perguntas posto em debate ao longo do I SIMPÓSIO AVANÇADO SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, fica reafirmada a crença deste articulista de que a doutrina, reunida em eventos como este, pode, e deve, contribuir ainda mais para o debate em torno das inovações normativas propostas pelo Novo CPC.
Notas
[1] Eis a redação do art. 5º da Lei do Mandado de Segurança, com especial atenção ao inciso II, mencionado no texto:
Art. 5o Não se concederá mandado de segurança quando se tratar:
I - de ato do qual caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independentemente de caução;
II - de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo;
III - de decisão judicial transitada em julgado.
Parágrafo único. (VETADO)
[2] Eis a redação do art. 1.012 do CPC/15, que trata do efeito suspensivo da apelação, chamando atenção para o quanto disposto no caput, que preserva a regra do efeito suspensivo automático da apelação:
Art. 1.012. A apelação terá efeito suspensivo.
§ 1o Além de outras hipóteses previstas em lei, começa a produzir efeitos imediatamente após a sua publicação a sentença que:
I - homologa divisão ou demarcação de terras;
II - condena a pagar alimentos;
III - extingue sem resolução do mérito ou julga improcedentes os embargos do executado;
IV - julga procedente o pedido de instituição de arbitragem;
V - confirma, concede ou revoga tutela provisória;
VI - decreta a interdição.
§ 2o Nos casos do § 1o, o apelado poderá promover o pedido de cumprimento provisório depois de publicada a sentença.
§ 3o O pedido de concessão de efeito suspensivo nas hipóteses do § 1o poderá ser formulado por requerimento dirigido ao:
I - tribunal, no período compreendido entre a interposição da apelação e sua distribuição, ficando o relator designado para seu exame prevento para julgá-la;
II - relator, se já distribuída a apelação.
§ 4o Nas hipóteses do § 1o, a eficácia da sentença poderá ser suspensa pelo relator se o apelante demonstrar a probabilidade de provimento do recurso ou se, sendo relevante a fundamentação, houver risco de dano grave ou de difícil reparação.
[3]Para efeito de fixação do novo texto, eis a redação do artigo 1.009 do Novo CPC, que trata do recurso de apelação:
Art. 1.009. Da sentença cabe apelação.
§ 1o As questões resolvidas na fase de conhecimento, se a decisão a seu respeito não comportar agravo de instrumento, não são cobertas pela preclusão e devem ser suscitadas em preliminar de apelação, eventualmente interposta contra a decisão final, ou nas contrarrazões.
§ 2o Se as questões referidas no § 1o forem suscitadas em contrarrazões, o recorrente será intimado para, em 15 (quinze) dias, manifestar-se a respeito delas.
§ 3o O disposto no caput deste artigo aplica-se mesmo quando as questões mencionadas no art. 1.015 integrarem capítulo da sentença.