Desconsideração inversa da personalidade jurídica

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analisar os aspectos materiais acerca da aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica, haja vista que não existe norma regulamentando o assunto.

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo analisar os aspectos materiais acerca da aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica dentro do ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que não existe norma regulamentando o assunto, sendo, no entanto, uma construção doutrinária e jurisprudencial, motivo pelo qual se faz necessário uma análise minuciosa da sua aplicabilidade dentro do Superior Tribunal de Justiça. Para tanto utilizou-se o método indutivo para o desenvolvimento da pesquisa.

PALAVRAS CHAVE

Desconsideração da Personalidade Jurídica. Desconsideração Inversa. Análise Jurisprudencial. Superior Tribunal de Justiça.

INTRODUÇÃO

Muito se debate acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica dentro do ordenamento jurídico, tendo em vista que não há previsão legal de tal instituto, sendo necessário haver uma construção doutrinária e jurisprudencial.

 No presente artigo, será analisado a forma de aplicação da desconsideração da personalidade jurídica em sua via inversa no que tange aos ensinamentos doutrinários, bem como os seus reflexos dentro do Superior Tribunal de Justiça.[3]

Para uma melhor compreensão sobre a pesquisa do presente trabalho, importante discorrer acerca de desconsideração da personalidade jurídica em sua forma tradicional.

1. DA AUTONOMIA PATRIMONIAL 

O princípio da autonomia patrimonial é de significante importância quando se trata sobre direito civil e comercial no que tange a separação do bens da pessoa jurídica, importante discorrer acerca da sua relevância e conceituação, eis que trata sobre a limitação da responsabilidade existente entre a pessoa jurídica e seus sócios instituidores. [4]

Tal princípio possui amparo legal no art. 1.024 do Código Civil de 2002[5], in verbis: “os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.”[6]

O Código de Processo Civil de 1973[7] em seu art. 596, deve ser analisado conjuntamente com o artigo supracitado, eis que dispõe que “os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.”[8]

Conforme se pode extrair do conceito do princípio autonomia patrimonial, como regra, os bens da própria pessoa jurídica e não de seus sócios deverão responder por suas dívidas, tendo em vista que com o seu nascimento e personalização, ganha aptidão para exercer os atos da vida civil, não misturando os bens dos membros instituidores com a sociedade.

Ocorre que diante deste princípio, sócios maliciosos se utilizam da separação patrimonial para fraudar os seus credores, utilizando-se para isso, da personalidade jurídica existente na empresa.[9]

Fabio Ulhoa Coelho leciona que:

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica não é uma teoria contrária à personalização das sociedades empresárias e à sua autonomia em relação aos sócios. Ao contrário, seu objetivo é preservar o instituto, coibindo práticas fraudulentas e abusivas que dele se utilizam.

A indisfarçável preocupação dos estudiosos do assunto diz respeito à reafirmação do princípio da autonomia. Os pressupostos da desconsideração são a pertinência, a validade e a importância das regras que limitam, ao montante investido, a responsabilidade dos sócios por eventuais perdas nos insucessos da empresa, regras que, derivadas do princípio da autonomia patrimonial, servem de estimuladoras da exploração de atividades econômicas, com o cálculo do risco.[10]

Desta forma, depreende-se que a personalidade que adquiri a sociedade empresária se baseia no princípio da autonomia patrimonial, que se constitui na separação dos bens da pessoa jurídica e de seus sócios instituidores.

Como demonstrado, muitos sócios se utilizam desta prerrogativa legal para fraudar negócios com terceiros vindo a ocasionar-lhes prejuízos, e assim, se depara o poder judiciário com a previsão legal da desconsideração da personalidade jurídica, devendo ser demonstrada a sua previsão legal e aplicabilidade dentro dos diversos ramos do direito, eis que a desconsideração não vai contra a ideia de personalização, muito pelo contrário, ela visa coibir o mau uso da pessoa jurídica que venha ocasionar danos a outrem.

O princípio da autonomia patrimonial bem como o da personalização das sociedades empresárias, no que se refere a responsabilidade patrimonial dos sócios não poderá ser deixada de lado quando se tratar da atividade econômica. [11]

Desta forma, a desconsideração deverá ser tratada como uma aplicação excepcional, não se justificando a aplicação do instituto somente pela insatisfação do crédito devido a um credor, necessário ficar demonstrada a indevida utilização da sociedade empresária.[12]

Diante da existência da autonomia patrimonial existente, não se deve atingir os bens dos sócios apenas para satisfação do crédito do credor, pois, a lei lhe garante a inviolabilidade de seus bens desde que não se utilize da pessoa jurídica para fraudar terceiros de boa-fé.

Ultrapassado o concepção sobre o princípio da autonomia patrimonial e a personalização das sociedades empresárias, pode-se avançar para um novo estágio apresentar o conceito e aplicação da desconsideração da personalidade jurídica dentro do ordenamento jurídico brasileiro.

2. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

Por desconsideração da personalidade jurídica, pode-se entender como a suspensão da personalidade da sociedade nos casos em que ficar comprovado fraude, abuso ou desvio de função. A sua finalidade é satisfazer o débito devido ao terceiro lesado com os patrimônios dos sócios, que passam a ter responsabilidade pela dívida da sociedade tendo em vista que esta foi utilizada como mecanismo para lesar outrem. [13]

Importante lembrar que não existe ato ilícito para ocorrer a perda da autonomia patrimonial para se atingir bens dos sócios, eis que a princípio a pessoa jurídica está dentro das regularidades para seu funcionamento, devendo assim, a parte ao pleitear o instituto da desconsideração da personalidade jurídica demonstrar o abuso de direito.[14]

Ricardo Negrão assevera que “[...] os atos cometidos abusivamente pelos sócios, na administração da sociedade, podem acarretar o superamento da personalidade jurídica com o fim exclusivo de atingir patrimônio dos sócios envolvidos.”[15]

Acerca da desconsideração da personalidade jurídica, disciplina Carlos Roberto Gonçalves que:

Permite tal teoria que o juiz, em casos de fraude e de má-fé, desconsidere o princípio de que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros e os efeitos dessa autonomia, para atingir e vincular os bens particulares dos sócios à satisfação das dívidas da sociedade (lifting de corporate veil, ou seja, erguendo-se o véu da personalidade jurídica).[16]

Diante o exposto, denota-se diante do conceito de desconsideração da personalidade jurídica que o instituto é utilizado para satisfazer o crédito de terceiro lesado pelo mau uso da sociedade empresária, necessário demonstrar a ocorrência de fraudes, abusos de direitos, etc.

Vale lembrar que não pode ser confundido o abuso de direito com ato ilício, tendo em vista que o primeiro não existe a violação ao direito do autor e no segundo fica caracterizado pela vontade dos sócios de fraudar e lesar o direito de outrem.

Importante salientar ainda que a desconsideração da personalidade jurídica não visa anular a personalidade da sociedade, ela é apenas tornada ineficaz para determinados atos, eis que todas as outras relações existentes com aquela pessoa jurídica não são abaladas, não devendo ser confundido assim a desconsideração com a despersonalização.[17]

No mesmo sentido, acerca das diferenciação das terminologias, Pablo Stolze Gagliano assevera que: [...] despersonalização, que traduz a própria extinção da personalidade jurídica, e o termo desconsideração, que se refere apenas ao seu superamento episódico, em função de fraude, abuso ou desvio de finalidade.[18]

Desta forma, como demostrado, há necessidade de se cuidar com as terminologias apresentadas diante a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, tendo em vista que neste caso, não há a sua extinção, apenas é levantado o seu véu protetivo e atingido os bens dos sócios na relação jurídica específica, sendo que as outras relações existentes não são atingidas pelo o instituto, e quando se trada de despersonalização existe a paralização e com consequência a extinção da pessoa jurídica. 

Superada as informações preliminares acerca da desconsideração da personalidade jurídica, plausível apresentar como ocorre a sua aplicabilidade dentro do ramo do direito civil no qual é tratado pela doutrina como aplicação correta ou teoria maior.

A aplicação correta ou teoria maior, deve ser encarada como a regra matriz da desconsideração da personalidade jurídica dentro do ordenamento jurídico brasileiro, eis que só é possível a sua aplicação a partir do momento em que ficar demonstrado o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de personalidade ou confusão patrimonial. [19]

O art. 50 do CC/02 dispõe:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

Ocorre que os pressupostos apresentados dentro da teoria maior, a desconsideração da personalidade jurídica divide-se ainda em objetiva e subjetiva.

Na objetiva o pressuposto necessário para se autorizar a desconsideração da personalidade jurídica depende apenas da comprovação do pressuposto da confusão patrimonial. Já na subjetiva, a doutrina entende que poderá ocorrer na hipótese em que ficar comprovada o desvio de finalidade e fraude.[20]

Fabio Ulhoa Coelho diz que “[...] pela formulação subjetiva, os elementos autorizadores da desconsideração são a fraude e o abuso de direito; pela objetiva, a confusão patrimonial. A importância dessa diferença está ligada à facilitação da prova em juízo.”[21]

Concluindo a ideia após apresentada a forma de atuação da desconsideração da personalidade jurídica, Fabio Ulhoa Coelho finaliza dizendo que:

Em suma, entendo que a formulação subjetiva da teoria da desconsideração deve ser adotada como o critério para circunscrever a moldura de situações em que cabe aplicá-la, ou seja, ela é a mais ajustada à teoria da desconsideração. A formulação objetiva, por sua vez, deve auxiliar na facilitação da prova pelo demandante. Quer dizer, deve-se presumir a fraude na manipulação da autonomia patrimonial da pessoa jurídica se demonstrada a confusão entre os patrimônios dela e de um ou mais de seus integrantes, mas não se deve deixar de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade, somente porque o demandado demonstrou ser inexistente qualquer tipo de confusão patrimonial, se caracterizada, por outro modo, a fraude.[22]

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Desta maneira, conclui-se que a desconsideração da personalidade jurídica dentro o Código Civil é denominada aplicação correta, também conhecida como teoria maior. Para a invocação do instituto se faz necessário ficar demonstrado o abuso de direito, caracterizado pela confusão patrimonial ou desvio de finalidade e fraude. O primeiro pressuposto é denominado pela doutrina de objetivo, já o segundo de subjetivo.

Por fim, finaliza-se a demonstração da aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, deve-se, em seguir, demonstrar como ocorre a aplicabilidade do instituto em sua via inversa.

3. desconsideração inversa da personalidade jurídica

Pela aplicabilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica pode-se dizer que ela é aplicável quando é afastado o princípio da autonomia patrimonial existente entre os bens da pessoa jurídica e seus sócios para responsabilizar a sociedade empresária por obrigação contraída por algum de seus sócios.[23]

Pablo Stolze Gagliano diz que a desconsideração inversa “[...] se dá quando o indivíduo coloca em nome da empresa seus próprios bens, visando a prejudicar terceiro”[24]

Sobre a desconsideração inversa da personalidade jurídica, são os ensinamentos de Fabio Ulhoa Coelho:

A teoria da desconsideração visa coibir fraudes perpetradas através do uso da autonomia patrimonial da pessoa jurídica. Sua aplicação é especialmente indicada na hipótese em que a obrigação imputada à sociedade oculta uma ilicitude. Abstraída, assim, a pessoa da sociedade, pode-se atribuir a mesma obrigação ao sócio ou administrador (que, por assim dizer, se escondiam atrás dela), e, em decorrência, caracteriza-se o ilícito. Em síntese, a desconsideração é utilizada como instrumento para responsabilizar sócio por dívida formalmente imputada à sociedade. Também é possível, contudo, o inverso: desconsiderar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizá-la por obrigação de sócio.[25]

Conceituando ainda a desconsideração inversa da personalidade jurídica, André Luiz Santa Cruz Ramos observa que “[...] consiste, como a própria expressão indica, aplicar os fundamentos da disregard doctrine para permitir que a pessoa jurídica, eventualmente, responda por obrigações pessoais de um ou mais de seus integrantes.”[26]

A respeito do tema, já foi aprovado no Enunciado 283 da IV Jornada de Direito Civil que ao comentar o art. 50 do Código Civil expõe “É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.”[27]

O aspecto fraudulento que a desconsideração inversa busca reprimir gira em torno do desvio de bens. O que ocorre aqui é que o sócio devedor transmite seus bens para a sociedade empresária da qual faz parte e que obtém o controle absoluto. Assim, ele continua na posse dos bens, utilizando-os, sem, no entanto, possuir a titularidade/propriedade do bem, que é da pessoa jurídica. [28]

Deste modo, seus credores em regra não poderão executar tais bens. Ressalvando a hipótese de se penhorar as quotas do saciedade empresária, na forma permitida pelo texto processual (art.655, VI, do CPC), sendo só aplicável a desconsideração inversa quando o contrato social da pessoa jurídica veda tal possibilidade, tendo em vista o affectio societa, que se constitui de forma simplificada na vontade dos sócios de constituir sociedade.[29]

Sobre o requisito de aspecto fraudulento e a invocação da desconsideração inversa, Fabio Ulhoa Coelho leciona que:

A fraude que a desconsideração invertida coíbe é, basicamente, o desvio de bens. O devedor transfere seus bens para a pessoa jurídica sobre a qual detém absoluto controle. Desse modo, continua a usufruí-los, apesar de não serem de sua propriedade, mas da pessoa jurídica controlada. Os seus credores, em princípio, não podem responsabilizá-lo executando tais bens. É certo que, em se tratando a pessoa jurídica de uma sociedade, ao sócio é atribuída a participação societária, isto é, quotas ou ações representativas de parcelas do capital social. Essas são, em regra, penhoráveis para a garantia do cumprimento das obrigações do seu titular. Quando, porém, a pessoa jurídica reveste forma associativa ou fundacional, ao seu integrante ou instituidor não é atribuído nenhum bem correspondente à respectiva participação na constituição do novo sujeito de direito. Quer dizer, o sócio da associação ou o instituidor da fundação, desde que mantenham controle total sobre os seus órgãos administrativos, podem concretizar com maior eficácia a fraude do desvio de bens.[30]

Assim, pode-se dizer que a desconsideração inversa da personalidade jurídica se constitui no levantamento do véu existente que protege a autonomia patrimonial da sociedade empresária para pagar dívidas de sócios administradores, que a utilizam de forma a fraudar seus credores utilizando os bens como se fossem seus, tendo a posse dos mesmos, porém sem a devida titularidade do bem.

Assim, explanado o conceito de desconsideração inversa da personalidade jurídica, importante demonstrar como ocorre a aplicabilidade dentro do STJ.

O julgado em análise é o Recurso Especial n. 948.117/MS, que possui o seguinte acórdão:

PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE.

I - A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial. Súmula 211/STJ.

II - Os embargos declaratórios têm como objetivo sanear eventual obscuridade, contradição ou omissão existentes na decisão recorrida.

Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal a quo pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos, assentando-se em fundamentos suficientes para embasar a decisão, como ocorrido na espécie.

III - A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.

IV - Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.

V - A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, ?levantar o véu? da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa.

VI - À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular.

VII - Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos.

Recurso especial não provido.[31]

Trata-se de recurso especial interposto contra o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul[32] nos autos da ação de execução de título judicial, que determinou o levantamento do véu protetivo entre os bens da empresa em que o recorrido e sua esposa são sócios para satisfazer o crédito do credo por dívida do recorrido, no qual foi determinado a penhora de um automóvel, sob a fundamentação que ficou demonstrada a infração a lei, diante do fato que a sociedade possui como sócios a parte recorrente e sua cônjuge e tendo como capital o valor de R$ 5.000,00, e o veículo que a sociedade empresária possui é de valor muito superior sendo que este é utilizado pelos recorrente e sua esposa para fins não destinados ao exercício da empresa.

Ficou reconhecido ainda a lesão ou direito do recorrido, pois deixou de receber o seu crédito tendo em vista que o recorrente não possuía bens em seu nome. Entendendo o TJMS que a pessoa jurídica estava servindo para blindar os bens do recorrente, confundindo-se assim os bens do recorrente com o da sociedade empresária, motivo pelo qual ensejou a desconsideração da personalidade jurídica na sua via inversa.

Da referida decisão o recorrente foi ao STJ com o argumento que foi dado interpretação extensiva ao art. 50 do CC/02 que determina a desconsideração tradicional da personalidade jurídica o que não se aplicaria no caso inverso, pois provento de fundamente legal e alegou ainda dissídio jurisprudencial.

No que diz respeito a delimitação da controvérsia, a Ministra Nacy Andrighi, relatora do processo, votou no sentido de que o art. 50 do CC/02 autoriza a desconsideração inversa.

No que se refere a impugnação do recorrente acerca da decisão que desconsiderou a personalidade jurídica da sociedade para atingir seu bem para quitar dívida do sócio decisão que se fundou na aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, alegando que a sua aplicação na forma inversa não possui respaldo legal, a Ministra votou no sentido de afastar a insurgência do recorrente.

Primeiramente pelo fato de ser perfeitamente possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica na sua via inversa eis que em sua essência é a mesma que a desconsideração tradicional que visa de forma simplificada combater a errônea utilização da sociedade empresário por seus sócios, a ministra ainda explica que a desconsideração inversa “[...] mostra-se como um instrumento hábil para combater a prática de transferência de bens para a pessoa jurídica sobre o qual o devedor detém controle, evitando com isso a excussão de seu patrimônio pessoal.”[33]

Desta forma a aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada no caso em apreço, haja vista que se busca o objetivo principal do art. 50 do CC/02 que é combatendo a utilização indevida do ente societário.[34]

A utilização indevida da sociedade empresária fica configurada na hipótese de um de seus sócios liquidar seus bens, transferindo-os para o ente societário com a finalidade de fraudar terceiros, pois, enquanto pessoa natural não haverá bens a serem executados.

Desta feita, a Ministra Nancy Andrighi diz que:

Feitas essas considerações, tem-se que a interpretação teleológica do art. 50 do CC/02 legitima a inferência de ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.

 Ademais, ainda que não se considere o teor do art. 50 do CC/02 sob a ótica de uma interpretação teleológica, entendo que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos a própria disregard doctrine, que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores.[35]

Nesta seara, acerca da forma que deve ocorrer a aplicabilidade da desconsideração inversa a Ministra lembra que “[...] a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica exige especial cautela do Juiz, sobretudo quando importa em aplicação inversa.”[36]

Tal cautela há de ser observada primeiro porque a sociedade empresária é importante pra economia, sendo que gera empregos e riquezas sociais, respeitando assim o princípio da manutenção da empresa e seu fim social; e segundo que não poderá ser invocada a desconsideração inversa pelo simples fato de não se lograr êxito na cobrança de um determinado crédito de um dos sócios; logo, só poderá ocorrer quando estiverem presentes os requisitos da  desconsideração tradicional, qual seja a confusão patrimonial ou o desvio de finalidade, conforme adotado pela teoria maior ou aplicação correta. Tendo em um desses casos a figura do sócio utilizando-a com a finalidade de fraudar terceiros de boa-fé.

Retornando ao caso dos autos, na fase probatória ficou comprovado a confusão patrimonial e o desvio de finalidade do recorrente, eis que se utilizava do ente societário para adquirir bens de uso comum seu e de sua esposa.

Diante o exposto, entendeu a Ministra que pelo fato de ficar comprovado os requisitos do art. 50 do CC/02 e considerando ainda que a ação de execução corre por mais de 9 anos sem que a parte credora obtenha êxito em ver satisfeito o seu crédito, votou no sentido de manter a decisão recorrida na sua integra julgando possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica na via inversa no caso em comento, negando provimento ao recurso especial.

Os outros ministros seguiram o voto, negando provimento ao recurso especial.

4. CONCLUSÃO

Diante todo o exposto, conclui-se que é perfeitamente possível se invocar a desconsideração inversa da personalidade jurídica, eis que se trata da possibilidade de se atingir os bens da pessoa jurídica para se satisfazer a dívida de um dos seus sócios, quando esgotados todos os meios de se executar os bens do devedor, devendo, para tanto, demonstrar o abuso de direito representado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial (art. 50, CC/02), sob pena de se atingir o princípio da autonomia patrimonial.

Já no que diz respeito a possibilidade de se penhorar as quotas da sociedade ao invés de desconsiderar a pessoa jurídica, vale lembrar que em homenagem ao princípio da affectio societatis e o princípio da celeridade processual, é muito mais fácil e favorável se executar os bens da sociedade empresária que foi utilizada erroneamente com a finalidade de prejudicar terceiros, do que leiloa-la vindo causar danos a terceiros estranhos a relação processual, motivo pelo qual ao se deparar com a situação deve o aplicador da norma jurídica preferir invocar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica em sua via inversa.

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Sobre os autores
Marisa Schmitt Siqueira Mendes

Mestranda do Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI, Linha de pesquisa Hermenêutica e Principiologia Constitucional; Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES

Mayke Éricson Furtado

Pós-Graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho; Pós-Graduando em Direito Empresarial; Professor de curso preparatório para OAB do grupo OAB Social. Advogado da OAB/SC 46.422; Corretor de Imóveis CRECI 20851; e-mail: [email protected]. Linkedin: https://www.linkedin.com/in/mayke-furtado-1333b612b/

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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