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Direito ambiental: espaço de construção da cidadania

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17/10/2003 às 00:00
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"Vivemos tempos de desordem e desonra. Um mundo desgastado que perdeu a oportunidade de tomar consciência de suas usuras. Tempos que precisam de memória e afirmação emancipadora, que requerem alguma audácia, uma sensibilidade que efetue a experiência da esperança. As fantasias da liberdade que atualizem a esperança, façam reaparecer a busca da emancipação. As fantasias que vigiam a história fazendo com que a violência, a marginalidade e a fome (em seu ‘menu’ variado: fome de comida, fome de ética, fome de dignidade e justiça, fome de uma vida que possa ser vivida) se dissimulem sob o triunfo da democracia liberal."

(Luis Alberto Warat)


Ciência: da fragmentação à interdisciplinaridade em construção

A chamada "crise do Direito" não é um fenômeno isolado, um pecado exclusivo das ciências jurídicas. A fragmentação advinda do pensamento mecanicista fez com que as diversas áreas do conhecimento se compartimentalizassem em especialidades, ou "disciplinas", levando também o homem a atomizar-se num "mundo social", separado do "mundo natural".

Foi nos séculos XVI e XVII que a noção de um mundo orgânico, vivo e espiritual foi substituído pela noção de máquina, que se tornou a metáfora dominante da era moderna. A ciência restringiu-se à quantificação e medição dos fenômenos, com Galileu Galilei. Com Descartes, criou-se o método analítico, que quebra os fenômenos complexos em partes para a partir destas se compreender o todo. Lineu propôs a classificação dos seres vivos segundo suas características físicas.

Assim, dentro desse arcabouço conceitual, o mundo tornou-se como uma máquina perfeita, governada por leis matemáticas exatas. Embora tenha se modificado em muitos aspectos, o princípio mecanicista cartesiano sobrevive até hoje nas diversas áreas da ciência, como assinala GUSDORF, no Prefácio à obra de JAPIASSU(1976):

" A ciência divide para reinar. Dissocia as perspectivas, desmembrando, assim, a figura do homem. Estudará sucessivamente o homem enquanto consumidor de alimento, enquanto cidadão chamado a manifestar escolhas políticas, enquanto susceptível de contrair diversas doenças, enquanto capaz de se reproduzir, enquanto trabalhador dessa ou daquela categoria, membro desse ou daquele agrupamento, etc. Cada uma dessas análises, apoiada pelo instrumento estatístico, projetada em curvas e gráficos, fornece aos especialistas dos bureaux de estudos, certos números de verdades cifradas, capazes de suscitar altíssimas satisfações aos conhecedores".

A idéia de ciência matematizada, do homem dissecado mecanicamente, como se fosse um relógio, ressoa como inaceitável para os tempos atuais. O homem-máquina, o homem-número, o homem-estatística, o material e o espiritual desligados um do outro, nesta perspectiva de redução dos fenômenos "analiticamente" estudados, tem sofrido críticas não só pela mudança de visão dos cientistas, como também pelo fato de não corresponder mais à complexa realidade que se vislumbra na sociedade que descobriu novos horizontes.

Estes horizontes se encontram em nível extra-biosférico, com a conquista do chamado espaço sideral (descoberta de novas galáxias e a teoria da possibilidade de vida extraterrestre), como em nível intra-corpóreo, à medida que novas descobertas são feitas no campo da genética (a quebra da cadeia molecular do DNA inaugura todo um ramo da biologia), além, é claro, da invenção de um espaço artificial (ou cultural)– o hiperespaço, o espaço cibernético, virtual, das redes de comunicação e pesquisa (internet, intranet e outras "nets").

O homem que foi reduzido a um aglomerado de reações físico-químicas, agora torna a reconhecer que valores espirituais são tão ou mais importantes que os materiais. Volta a ser composto de alma-corpo-espírito, e não aceita mais a comparação a um objeto inanimado. Até mesmo diante da impossibilidade real desta, já que uma máquina pode ser montada e remontada diversas vezes, diferente de um ser vivo. Este afasta o cadáver, a chama substitui o gelo, a objetividade dá lugar à subjetividade do objeto científico. Inaugura-se uma nova relação sujeito-objeto, em que se admite que este objeto seja também sujeito, transformando completamente o ponto de vista do pesquisador, permitindo um olhar mais holístico na descoberta da realidade.

O novo paradigma busca romper o reducionismo, numa perspectiva de reconhecimento de múltiplos fenômenos que ocorrem simultaneamente, em diversos níveis, em constante integração, formando um grande, único e complexo sistema.

A necessidade científica que ora surge, impõe uma epistemologia voltada para a convergência. Reclama uma prática que abandone a fragmentação disciplinar marcada pela especialidade, para dar lugar à construção do saber interdisciplinar.

Estaríamos dessa forma negando tudo o que já foi construído pelo saber fragmentado (ou disciplinarizado)? De forma alguma. Até mesmo porque foi sob a égide do cartesianismo que foi possível a nova descoberta do interdisciplinar. O que se defende é sua superação, como algo que já deu sua colaboração e necessita ter seus horizontes alargados, para fazer face às novas necessidades da praxis científica.

O que se propõe para as ciências é um empreendimento inovador, que incorpore o resultado de várias disciplinas, tomando-lhes de empréstimo seus esquemas conceituais de análise, a fim de fazê-los integrar, depois de havê-los comparado e julgado: o empreendimento interdisciplinar, que não se confunde com o fim das atuais disciplinas, mas a interação das mesmas, formulando novos saberes, de forma que cada uma delas seja enriquecida dentro do processo de integração.

Interdisciplinaridade, neste contexto, é entendida como um sistema de alto grau de cooperação entre disciplinas conexas, de forma que o conhecimento obtido no final do processo interativo resulte num axioma comum a todas elas, com conseqüente enriquecimento teórico de cada uma (JAPIASSÚ – 1976).

Não se confunde com a multidisciplinaridade, ou com a pluridisciplinaridade, pois ambas não passam de um eventual agrupamento de disciplinas, sem haver verdadeira interação entre elas.

Tampouco a prática interdisciplinar ou a multidisciplinar ocorre como afirmam alguns operadores jurídicos, que acabam por simplificar os conceitos em afirmações do tipo de que o interdisciplinar seria a relação travada entre ramos do Direito e o multidisciplinar seria a relação travada entre o Direito e outros ramos do conhecimento. A ciência Jurídica deve ser entendida como una, indivisível, um sistema onde seus saberes específicos interagem e produzem novos fenômenos. A divisão dos seus ramos dá-se apenas para fins didáticos.


O Direito

O mecanicismo científico refletiu-se no Direito na forma do chamado dogmatismo jurídico, que teve seu nascimento vinculado à ascensão da burguesia, com um projeto de poder e sociedade nova e, em nome desse desiderato, propôs valores e princípios informativos pautados pela ordem do trabalho, da acumulação de riquezas e do individualismo. A promessa de uma sociedade de opulência, pautada na organização do mercado acabaram por mascarar a outra face da lógica constitutiva: a exclusão de grande parcela dos indivíduos chamados de cidadãos da sociedade:

"A sociedade, a partir desta perspectiva, constituiu-se como uma ordem natural, que obedece a leis invariáveis. Doravante, no âmbito da filosofia política, só há realmente ordem e acordo possíveis submetendo os fenômenos sociais, assim como todos os outros, a leis naturais invariáveis.

O mesmo ocorria com as normas jurídicas, passando a ter um status de dogmas definitivos, transformando os órgãos jurisdicionais em operadores que teriam tão-somente o trabalho de subsumir os fatos única e exclusivamente sob aquelas fórmulas gerais e colocar em movimento inexoravelmente a mecânica da lógica dedutiva." (LEAL – 1998)

Sob o prisma desse paradigma, a gênese do Direito ficou ciscunscrita à esfera estatal, como monopolizadora do poder de legislar: a lei como única fonte de Direito e de direitos. O positivismo jurídico deu lugar a várias gerações de juristas atrelados a uma prática de justificação da ordem, sem espaços de análise crítica da ideologia dominante.

A praxis marcada por um condicionante de desideologização, na verdade, mascarou um arcabouço político-ideológico de dominação, o que levou o Direito a uma crise de legitimidade, posto que esta é pautada na aceitação consciente do comando normativo, o que não se tem verificado nos marcos do capitalismo neoliberal moderno, fundado nas leis de mercado e massificação através da mídia, o que transforma a conscientização em alienação.

Não se pretende afirmar que este grau de alienação não esteja presente em países ditos socialistas, que se utilizam, da mesma forma, de instrumentos de massificação da ideologia dominante, para através da prática jurídica justificar, ou "legitimar" o status quo vigente.

"O consenso dos dominados, enquanto produzido pela manipulação ideológica, é falso fundamento da legitimidade, porque traduz a alienação em grau progressivamente mais intenso. Dentro desse contexto, as formas jurídicas carecem de legitimidade, na medida em que são meios alienantes de manutenção do ‘status quo’". (COELHO – 1986)

Desta forma, a evolução da sociedade em múltiplas e complexas relações, dando origem a novos e variados conceitos de conduta, aliado também à forte pressão social instalada nos países do chamado Terceiro Mundo, está a reclamar um ordenamento jurídico renovado, distinto da matriz ideológica da neutralidade e objetividade, que possa responder à geração de direitos que surgem da nova ecologia desenhada no mundo globalizado.


O Direito Ambiental

No descortinamento dos novos direitos, surge com muita força o conceito do meio ambiente como um bem a ser tutelado pelo Direito. Em verdade, é uma tomada de posição que se desenha em todos os ramos científicos, de se formular uma relação homem/natureza diversa de como tem se dado na sociedade pós-industrial:

"Ao reduzir a natureza à matéria-prima sobre a qual o homem soberano inscreve o sentido histórico do processo de desenvolvimento, a ciência moderna provoca uma ruptura ontológica entre o homem e a natureza na base da qual outras se constituem (ou reconstituem), tais como a ruptura entre as ciências naturais e as sociais. A natureza é desumanizada e o homem, desnaturalizado, e assim se criam as condições para que este último possa exercer sobre a natureza um poder arbitrário, ética e politicamente neutro". (SANTOS - 1993)

O professor da Universidade de Coimbra destaca os males causados pelo "paradigma do progresso" econômico (fazer o bolo crescer para depois dividir), e sua necessidade de superação. No afã de propiciar o crescimento da economia, sem contudo preservar determinados valores éticos, o homem estabeleceu um relacionamento predatório intra e extra-sociedade, que se traduziu em exclusão social e degradação da natureza.

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Esta crise ecológica causa impacto no Direito, que reclama um impacto legal sobre a crise ecológica.

"la relación entre Ecologia y Derecho es bicondicional. De la misma forma que el Derecho ambiental es un importante instrumento de intervención en las relaciones entre el sistema social y el entorno natural, así también la Ecologia, en cuanto paradigma, aporta a la ciencia jurídica los instrumentos metodológicos por los que deberá pasar la refundación contemporánea".

SERRANO (1998), pronunciando-se ainda sobre a Ecologia, arremata afirmando:

"lo que ocurre es que ésta última no es sólo el método del Derecho Ambiental, sino una metodología conpleja utilizable por cualquier rama del ordenamiento jurídico".

Pode-se destacar, portanto, que além de um Direito ambiental como disciplina da ciência jurídica, verifica-se a existência de uma ecologia jurídica, que diante do Direito, coloca-se numa situação paradigmática (BORGES – 1998).

Como ramo emergente da ciência jurídica, não se encontra ainda entendimento pacífico na conceituação do Direito Ambiental.

Necessário se faz ainda destacar que o termo "meio ambiente", amplamente utilizado na matéria, é na verdade incorreto. Ora, "meio" é tudo que envolve, que está em volta, ou seja, é sinônimo de "ambiente", "entorno". "Meio ambiente" acaba sendo um pleonasmo, que soa bem aos ouvidos, mas gramaticalmente incorreto. Entretanto, como o termo acabou se firmando no linguajar cotidiano, foi incorporado e conceituado pela legislação, é aceito sem qualquer problema.

Daí decorre também o problema conceitual do novo ramo jurídico, com a definição do adjetivo que acompanha o substantivo "Direito". As primeiras conceituações surgiram sob a denominação "Direito Ecológico", como as observadas em Sérgio FERRAZ (1976) e Diogo de Figueiredo MOREIRA NETO (1975), ambos citados por LEME MACHADO.

Para FERRAZ, o Direito Ecológico seria:

"conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos organicamente estruturados, para assegurar um comportamento que não atente contra a sanidade mínima do meio-ambiente".

Já MOREIRA NETO conceitua o Direito Ecológico como:

"conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenham por fim a disciplina do comportamento relacionado ao meio-ambiente".

Após receber outras denominações, como "Direito do Meio Ambiente" e "Direito do Entorno", na doutrina brasileira e estrangeira, finalmente parece chegar pelo menos nesse ponto de concordância, o de se estabelecer a denominação "Direito Ambiental" em português, "Derecho Ambiental" em espanhol, "Environmental Law" em inglês.

O Direito Ambiental, no entendimento de CARVALHO, vem a ser:

"conjunto de princípios e regras destinados à proteção do meio ambiente, compreendendo medidas administrativas e judiciais, com a reparação econômica e financeira dos danos causados ao ambiente e aos ecossistemas, de uma maneira geral".

Os conceitos apresentados, além de outros levantados, de maneira geral trazem alguma imperfeição ora pelo excesso de atribuições que dão ao Direito Ambiental, ora pela limitação conceitual que impõem a este ramo, quando trata o direito sob o paradigma do positivismo.

Preferimos, nos marcos já explanados, seguir a linha de SERRANO (1998), que apresenta o Direito Ambiental como:

"el sistema de normas, princípios, instituciones, prácticas operativas e ideologias jurídicas que regulan las relaciones entre los sistemas sociales y sus entornos naturales".

Deste conceito podem-se destacar as seguintes características:

a)o Direito Ambiental é um sistema, ou seja, seus elementos interagem entre si e com seu entorno, do qual são diferentes e com ele se comunicam. Os elementos componentes desse sistema seriam aqueles relacionados diretamente com as questões ambientais, e o entorno seriam os outros ramos e institutos jurídicos, além de outras áreas do conhecimento;

b)o Direito Ambiental regula o relacionamento da sociedade com o seu entorno, ou seja, tem como objeto o disciplinamento da relação homem-natureza;

c)o Direito Ambiental não é composto somente por leis ou normas: é um sistema de normas, princípios, instituições, estruturas, processo, relações, práticas, ideologias. Abandona o ponto de vista de que só há direito decorrente de lei, para reconhecer que uma infinitude de manifestações possuem caráter normativo. Esse sistema leva à necessidade de se reconhecer a existência de múltiplos momentos de operação jurídica, dos quais quatro se destacam: o legislativo, o judicial, o executivo e o doutrinário.

Além destas, no plano doutrinário, o jurista não pode apenas circunscrever-se a descrever normas, mas também a estabelecer "pontes" que liguem o plano ideal das normas ao plano real dos fenômenos naturais e culturais.

As normas de cunho ambiental tiveram seu incremento legislativo nos últimos vinte e cinco anos, quando se verifica um aperfeiçoamento dos meios de atuação dos movimentos ambientalistas e permitiu-se então denunciar o estágio de crise ecológica (inclusive com alguns exageros de fundo escatológico) mas não surgiram somente agora.

BIRNFELD (1998) destaca que no Brasil, por exemplo, já são encontradas desde a época colonial, em preceitos das Ordenações Afonsinas, Manoelinas e Filipinas (portanto vigentes em Portugal já à época do descobrimento). O Código das Águas, de 1934 e a assinatura do Protocolo de Genebra, de 1925 (que dispõe sobre a proibição de meios bacteriológicos de guerra), fazem parte do rol de normas surgidas no início do Século XX. Mas foi a partir da década de 70 que surgiu a maioria das disposições ambientais brasileiras, decorrente de um movimento ambientalista que exigia uma nova postura no relacionamento sociedade-natureza e, à medida de seu avanço teórico-prático, tem feito também evoluir o Direito Ambiental no plano legislativo.

Nesta arena, BIRNFELD (1998) destaca três momentos normativos de envergadura: o ineditismo da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), a qual pela primeira vez conceituou o meio ambiente no plano legislativo (o meio ambiente como o mundo natural: conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas); a Lei nº 7.347/85, que disciplinou a Ação Civil Pública por danos causados ao meio ambiente e outros bens de valor artístico, paisagístico, estético e histórico; e a Constituição Federal de 1988, que além de consagrar diversos institutos voltados para a proteção ambiental, dedicou todo um capítulo destinado à disciplina da relação do cidadão brasileiro com o meio.

De fato, em relação à ordem constitucional, deve-se destacar o fato de que nenhuma das Constituições anteriores à de 1988 tenha colocado em seu corpo tamanha proteção aos recursos ambientais, com a dedicação de todo um capítulo denominado "Do Meio Ambiente". Em seu artigo 225, declara o meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum de todos, e impõe tanto ao poder público quanto à coletividade, o dever de zelar pela proteção do meio ambiente. O art. 225 declarou, também, como patrimônio nacional, diversos ecossistemas representativos existentes no território brasileiro, como a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-grossense e a Zona Costeira. Além deste artigo, traz no texto um elenco vasto de dispositivos tendentes à proteção do meio ambiente, como a legitimidade do cidadão propor Ação Popular, defesa da biota e demais recursos hídricos, minerais e naturais, função social da propriedade, preservação da população indígena, controle das atividades nucleares, etc.

Atualmente, a legislação brasileira avançou no sentido de elevar à categoria de crimes diversos atos lesivos ao meio ambiente, além de reconhecer a possibilidade da pessoa jurídica ser responsabilizada penalmente, através da Lei de Crimes Ambientais (nº 9.605/98). O estabelecimento de uma Política Nacional de Educação Ambiental, através da Lei nº 9.795/99, significou um amadurecimento por parte do poder público com relação aos instrumentos de treinamento de pessoal e conscientização coletiva no tocante às questões ambientais.

Existem hoje no Brasil um número significativo de normas que tutelam o meio ambiente, de forma direta ou indireta. Dizemos que uma norma pode ser considerada ambiental quando esta é relevante para ser aplicada em um determinado caso jurídico de cunho ecológico. Assim, temos, no dizer de BRAÑES (apud SERRANO – 1998), os seguintes tipos de normas ambientais:

" Por lo tanto, entre las normas jurídicas de relevância ambiental, siguiendo a Brañes (1994), podremos encontrar tres tipos de: a) normativa de relevancia ambiental casual: aquella expedida sin ningún propósito ambiental, pero que deviene útil para la tutela del equilíbrio ecológico en un caso determinado; b) normativa sectorial de relevancia ambiental: expedida para la protección de ciertos elementos ambientales como el agua, la atmósfera o el paisaje; c) normativa propiamente ambiental o ecológica: expedida recientemente para la tutela de relaciones sistema/entorno y com conciencia de la crisis ecológica".

Teríamos então três tipos de normas ambientais: casual ou esporádica, de relevância ambiental, e ambiental propriamente dita.

Do primeiro tipo, normas ambientais casuais, podemos citar dispositivos do atual Código Civil Brasileiro, que podem ser utilizados para proteção dos recursos naturais, como o instituto da Servidão, ou os dispositivos que versam sobre anulação ou anulabilidade de atos jurídicos, desde que alcancem bens de interesse ambiental.

Como normas de relevância ambiental, podemos citar:

a) o Código das Águas (Dec. 24.643, de 10/07/34), que define o direito de propriedade e de exploração dos recursos hídricos para o abastecimento, a irrigação, a navegação, os usos industriais e a geração de energia. Reza ainda que infratores pagariam os custos dos trabalhos para a salubridade das águas, e ainda punidos criminalmente e responsabilizados pelas perdas e danos causados, e que a utilização das águas para fins agrícolas e industriais depende de autorização administrativa, com obrigatoriedade de restabelecimento do escoamento natural após o uso.

b) o Código de Minas, Decreto nº 1.985, de 10/10/40, que define as atividades de exploração do subsolo e dissociou o direito de propriedade do direito à exploração. Desta forma, o concessionário de exploração tem o dever de evitar o extravio das águas e drenar aquelas que pudessem causar algum dano ao próximo, bem como evitar a poluição do ar, da água e conservar as fontes, sem prejuízo das condições gerais exigidas.

c) o Estatuto da Terra (Lei nº 4.504, de 30/11/64), que define a função social da terra, a qual é cumprida, dentre outras condições, quando sua posse assegurar a conservação dos recursos naturais, além de estabelecer critérios de desapropriação das terras e de acesso à propriedade rural, e a racionalização da atividade agropecuária dentro dos princípios de conservação dos recursos naturais renováveis. Destaca-se a exigência de manutenção de uma reserva florestal nos vértices de espigões e nascentes, para a aprovação de projetos de colonização particular.

d) o Código Florestal (Lei nº 4.771, de 15/09/65), que reconhece as florestas e todas as formas de vegetação brasileiras como bens públicos, impondo limites ao direito de propriedade. Estabelece critérios mínimos para a preservação permanente de áreas, para o estabelecimento da reserva florestal legal e para a criação de parques e reservas biológicas.

Exemplos de normas ambientais propriamente ditas, temos:

a) a lei nº 6.803/80, que institui a necessidade de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) para atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, define as diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críticas de poluição, a necessidade de estudos especiais de alternativas e Relatórios de Impacto Ambiental (RIMA) para a criação de pólos petroquímicos, cloroquímicos, carboquímicos e instalações nucleares.

b) a Política Nacional do Meio Ambiente, criada pela Lei nº 6.938, de 31/08/81, a qual dispõe sobre conexões entre desenvolvimento econômico e preservação ambiental, órgãos da administração direta e indireta, das três esferas de governo, além da criação do CONAMA e do SISNAMA.

c) a Lei de Crimes Ambientais, nº 9.605, de 12/02/1998. Esta lei criminaliza condutas antes consideradas meras contravenções, representadas por agressões de diversas fases ou sorte, ao meio ambiente nos seus múltiplos aspectos e a bens culturais intocáveis. Tais crimes têm conseqüências administrativas, civis e penais, além de existir a possibilidade de que as penas possam ser aplicadas cumulativamente, e a pessoas físicas ou jurídicas.

Verificando-se a produção legislativa pátria, vê-se que, de maneira geral, a dimensão sócio-ambiental tem sido expressa na legislação brasileira, havendo uma tendência geral de qualificá-la como uma das mais completas no mundo.

Entretanto, não se tem verificado sua aplicação plena, devido principalmente à inércia do próprio poder público. A falta de aparelhamento estatal contrasta com a efervescência do movimento social organizado e o surgimento de uma opinião pública cada vez mais consciente de seus direitos sócio-ambientais, expressos em maiores demandas judiciais, acesso à mídia e relações trabalhistas e consumeiristas.

A lei é, pois, um instrumento importante, básico para o respeito ao meio ambiente, mas precisa ser democratizada para ser cumprida. À sociedade civil, cabe zelar pelo seu efetivo cumprimento.

Entretanto, não é só o surgimento de uma legislação própria que determina a autonomia de um ramo científico, mas também o aparecimento de complexos processos espaço-temporais que acabam sendo fator determinante, por sua vez, de complicadas estruturas científicas (SERRANO - 1998).

Assim, todo o emaranhado de normas, princípios, instituições, etc., que emanam não só do Estado, como também dos princípios gerais do Direito, do costume, de organizações, movimento sociais, dentre outras, instrumentalizam o Ambiental como ramo autônomo do Direito.

Podemos levantar, ainda, alguns princípios que compõem o Direito Ambiental, por exemplo:

a)princípio do direito humano fundamental: informa que o meio ambiente é um direito subjetivo fundamental do ser humano, essencial à sua sadia qualidade de vida;

b)princípio da necessidade de intervenção estatal: o Estado tem o dever de intervir na defesa e preservação do meio ambiente, no âmbito dos seus Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e nas esferas de governo (União, Estados e Municípios), pela atividade compulsória dos órgãos e agentes estatais;

c)princípio da prevenção: pauta-se na adoção de todas as medidas necessárias para evitar que as ações humanas causem danos ambientais irreversíveis ou de difícil reparação;

d)princípio da precaução: se caracteriza pela não intervenção no meio ambiente antes que se tenha certeza de que não haverá dano;

e)princípio do poluidor-pagador: é a responsabilização civil, administrativa ou penal do agente responsável pelas atividades lesivas ao meio ambiente;

f)princípio do desenvolvimento sustentável: a utilização dos recursos naturais deve satisfazer as necessidades das atuais gerações sem comprometer a satisfação das necessidades das futuras gerações;

g)princípio da função sócio-ambiental da propriedade: a garantia do direito de propriedade está vinculada à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis para a preservação do meio ambiente;

h)princípio da cooperação estado-coletividade: impõe tanto ao poder público, quanto à sociedade civil, o dever de zelar pelos recursos naturais, para as presentes e futuras gerações."

Como qualquer outra disciplina, possui objeto próprio de estudo, que não é o meio ambiente em si, posto que este é entorno do sistema social, mas a relação deste com aquele, na perspectiva de proteção do bem materializado nos recursos naturais e no patrimônio cultural, de modo que estes possam satisfazer as necessidades das presentes gerações, sem prejudicar o direito das gerações futuras ao seu usufruto.

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Sobre o autor
Guilhardes de Jesus Júnior

advogado em Vitória da Conquista (BA), professor de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e da Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR), professor de Administração de Empresas e Turismo da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC), mestre em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente pela UESC/PRODEMA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JESUS JÚNIOR, Guilhardes. Direito ambiental: espaço de construção da cidadania. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 106, 17 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4378. Acesso em: 24 abr. 2024.

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