INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro prevê para o processo penal do Tribunal do Júri duas fases dentro de sua persecução, qual seria a judicium accusationis e a judicium causae.
No fim da primeira fase, o juiz pode chegar a quatro tipo de decisões, sendo elas a pronúncia, impronúncia, desclassificação e absolvição sumária, sendo objeto de estudo neste momento a pronúncia.
A sentença de pronúncia é uma decisão interlocutória que marca o fim da primeira fase, gerando como efeito a admissibilidade da acusação, passando neste momento para o julgamento do réu pelo Tribunal do Júri.
É nesta fase que surge discussão entre a doutrina, isto pois existe uma discordância quanto ao fato de qual atitude o magistrado deve tomar quando encontra-se diante da dúvida se deve ou não pronunciar o acusado.
Nesta situação a doutrina tradicional diz que o réu deve ser pronunciado, isto posto o princípio do in dubio pro societate, sendo o competente para dirimir tal dúvida a sociedade. Em contradição a este posicionamento, a doutrina mais moderna nos traz que deve aplicar-se a presunção de inocência e o in dubio pro reo, tendo em vista a previsão constitucional.
Tendo como ponto de partida o posicionamento acima rapidamente disposto trata-se por observar de forma mais detalhada tal questionamento.
DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE E CRÍTICAS APRESENTADAS PELA DOUTRINA MODERNA
O procedimento do tribunal do júri é bifásico, ou seja, divide-se em duas fases, sendo a primeira a da judicium accusationis, iniciando-se com a denúncia ou queixa, esta vindo a ser recebida pelo Juiz da Vara do Júri, e finalizando com a preclusão da decisão de pronúncia. Já a segunda fase, chamada de judicium causae, compreende o recebimento dos autos pelo juiz presidente do Tribunal do Júri e encerrando-se com o julgamento pelo plenário.[1]
Diz-se que a primeira parte do julgamento no Tribunal do Júri “é praticamente igual ao procedimento ordinário perante o juiz singular”, sofrendo pequenas alterações pontuais.[2]
Entende-se a pronúncia como decisão em que o juiz ira proclamar se a imputação feita ao acusado é admissível ou não, encaminhando-a para o julgamento pelo plenário, ou seja, convencido da existência do crime e de indícios suficientes da autoria, deve proferir decisão pronunciando o acusado, fundamentado os motivos de seu consentimento.[3]
Sendo assim, “o juiz, convencido da existência do crime, bem como de que o réu foi o seu autor (e procura demonstrá-lo em sua decisão), reconhece a competência do Tribunal do Júri para proferir o julgamento.”[4]
Tal decisão, portanto, tem por função verificar a admissibilidade da pretensão acusatória, tal como é feito no recebimento da denúncia, podendo dizer-se que esta seria o re-recebimento da denúncia, neste momento qualificada pela instrução judicializada.[5]
Para que o acusado seja pronunciado é necessário que o juiz esteja convencido da existência do crime, não sendo necessária prova incontroversa, mas que o magistrado consiga observar sua materialidade. Ressalta-se também os indícios suficientes de sua autoria, sendo este “conexões entre fatos conhecidos no processo e a conduta do agente, na forma descrita pela inicial penal”, devendo tais indícios possuir um expressivo grau de probabilidade que aproxime-se da certeza.[6]
A pronúncia trata-se de decisão interlocutória mista prevista no art. 413 do Código de Processo Penal, marcando o acolhimento provisório da acusação por parte do juiz, determinando que o réu submeta-se ao julgamento do Tribunal de Júri. Além de decisão interlocutória mista, esta possui caráter não terminativo, devendo preencher os requisitos previstos no artigo 381 do mesmo códex e sendo recorrível por meio do recurso em sentido estrito.[7]
Deve a pronúncia ser devidamente fundamentada, atentando-se o juiz para não condenar previamente o réu, pois neste momento não há competência para o julgamento. Por isso, deve ter especial cuidado na fundamentação para não contaminar os jurados que podem ser facilmente influenciáveis pela sentença do magistrado, buscando-se zelar pela máxima originalidade do julgamento feito pelos jurados, que devem decidir com independência, minimizando os juízos de valor que vem a ser realizado pelo juiz presidente.[8]
Observa-se também que a decisão de pronúncia não deve fazer referência quanto ao mérito, “pois, caso contrário, afrontaria o princípio da soberania dos veredictos (influência sobre o ânimo dos jurados).”[9]
“Ainda, nessa linha de preocupação, a Lei nº 11.689/08 alterou complemente o rito do Tribunal do Júri, inserindo no art. 478 do CPP, a proibição, sob pena de nulidade de que as partes façam referência “à decisão de pronúncia” e “às decisões posteriores que julgaram admissível a acusação”.[10]
Nesta fase da persecução do processo penal vigora um princípio defendido por parte da doutrina, sendo este o princípio do in dubio pro societate, este em confronto com o estado de inocência e o princípio do in dubio pro reo, o que gera polêmica quanto a sua constitucionalidade e aplicabilidade.
Márcio Ferreira explica que “tanto em um como em outro momento, uma das idéias fundamentais representadas pelo referido “princípio” é a seguinte: a dúvida quanto à autoria da infração penal que, normalmente, milita em prol do réu (in dubio pro reo), nessas situações especiais, resolve-se em favor da sociedade (da acusação, portanto).“[11]
Sustenta-se que as causas para aplicabilidade do in dubio pro reo referem-se, primeiro, ao fato de que na decisão de pronúncia não exige certeza da autoria do réu, mas sim indícios de que este possa ser o autor, e também a questão de que nos crimes de competência do Tribunal do Júri qualquer dúvida deveria ser sanada pelo juiz natural, qual seja, os jurados.[12]
“Cabe salientar que, para a doutrina tradicional, na fase de pronúncia vigora o princípio in dubio pro societate, uma vez que se resolveriam em favor da sociedade (acusação) eventuais suspeitas quanto à prova.”[13]
Nesse sentido, Denilson Feitoza entende que o princípio do in dubio pro societate é aplicado devido, neste momento, não se tratar de condenação ou absolvição, mas sim de uma análise em que o juiz admite que o réu possa ser ou não julgado pelo tribunal do júri. Desta forma, a aplicação do in dubio pro reo ficaria adstrita apenas quando houver decisão no sentido de absolver ou condenar o acusado. [14]
Fernando Capez diz que, “na fase da pronúncia, vigora o princípio do in dubio pro societate, uma vez que há mero juízo de suspeita, não de certeza”, ou seja, entende que por tratar-se apenas da suspeita de que o acusado possa ser o possível praticante do crime, na dúvida quanto a autoria do crime aplica-se tal princípio.[15]
Walter Nunes da Silva Junior em sua obra nos traz entendimento desta doutrina tradicional no sentido de que:
“Na dúvida, deve o juiz pronunciar deixando para que a questão quanto a culpabilidade seja resolvida pelo tribunal do júri. [...] A essência desse entendimento é de que, em obséquio à soberania do júri popular, sempre que o juiz, após as razões finais, receber os autos a fim de deliberar se o caso é para remeter, ou não, a julgamento para o tribunal do júri, deverá, na dúvida, entender pelo envio do processo, com consequente prolação da decisão de pronúncia, possibilitando, assim, à sociedade, representada por um conselho, composto por sete cidadão recrutados na localidade onde ocorreu o ilícito, exercer o direito-dever conferido pela Constituição de julgar o acusado.[16]
Mirabete explicita em sua obra que “a sentença de pronúncia, portanto, como decisão sobre a admissibilidade da acusação, constitui juízo fundado de suspeita, não o juízo de certeza que se exige para a condenação. Daí a incompatibilidade do provérbio in dubio pro reo com ela.” Diz-se que há uma inversão da regra do in dubio pro reo para o in dubio pro societate, pois não há a necessidade de um convencimento absoluto para a condenação, não se confundindo os indícios de autoria com mera conjectura, onde “indícios extremamente frágeis, vagos, imprecisos, não legitimam essa decisão”.[17]
“Doutrina mais moderna, contudo, afeiçoada ao trato constitucional dos institutos processuais penais, considera inadmissível, em face da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), a invocação do in dubio pro societate para legitimar a decisão de pronúncia do acusado.”[18]
Aury Lopes Junior ao discorrer quanto ao princípio nos traz que tal questionamento parte do pressuposto de que não existe base constitucional para o in dubio pro societate, portanto, quando invoca-se a soberania do júri, uma das hipóteses de aplicação destes, “não há como aceitar tal expansão da “soberania” a ponto de negar a presunção constitucional da inocência. A soberania diz respeito à competência e limites ao poder de revisar as decisões do júri. Nada tem a ver com a carga probatória.”[19]
Além disto, continua com a sua crítica afirmando que:
Não se pode admitir que os juizes pactuem com acusações infundadas, escondendo-se atrás de um princípio não recepcionado pela Constituição, para, burocraticamente, pronunciar réus, enviando-lhes para o Tribunal do Júri e desconsiderando o imenso risco que representa o julgamento nesse complexo ritual judiciário. Também é equivocado afirmar-se que, se não fosse assim, a pronúncia já seria a “condenação” do réu.[20]
Extrai-se portanto que para Aury Lopes Junior “a pronúncia não vincula o julgamento, e deve o juiz evitar o imenso risco de submeter alguém ao júri, quando não houver elementos probatórios suficientes (verossimilhança) de autoria e materialidade. A dúvida razoável não pode conduzir a pronúncia”, devendo valer-se o in dubio pro reo nesses casos.[21]
Cita-se passagem de Fernando da Costa Tourinho Filho onde critica a aplicação deste princípio dizendo que:
Ademais, quando da pronúncia, se o Juiz não estiver seguro de que a condenação é de rigor, cumpre-lhe impronunciar ou absolver o réu, conforme o caso. Não se concebe, em face da gravidade da pena, permitir que o réu seja submetido a um julgamento soberano, em que muitas vezes a eloquência do Acusador exerce certo fascínio, levando o Conselho de Sentença a proferir decisão condenatória. [...] Ele somente poderá determinar seja o réu julgado pelo Tribunal do Júri se estiver convencido, ante indícios veementes, de ter sido o réu o autor do crime. Se entender que os indícios não o convenceram, a impronúncia é de rigor.[22]
Para este autor é importante que os indícios de autoria sejam os mais convincentes possíveis, não concebendo a mera suspeita como indício. Afirma que a pronúncia é mero instrumento de admissibilidade da acusação e que no momento em que o juiz aplica o in dubio pro societate diante da dúvida este afasta a Constituição e desconhece o princípio da presunção de inocência e completa dizendo que “mesmo em se tratando de in dubio pro reo, na realidade esse princípio é essencialmente falso. Se o Juiz não encontra prova que dê respaldo a um decreto condenatório, a absolvição não é nenhum favor rei.”[23]
André Nicolitt por sua vez apenas nos diz que da análise do Código de Processo Penal, ao tratar da decisão de pronúncia, extrai-se que “não bastam simples suspeitas de autoria, exigem-se indícios fortes que apontem o réu como possível autor do fato criminoso”, o que da margem para o entendimento de que o magistrado apenas irá prolatar sentença de pronúncia quando este estiver diante de forte justificativa e não baseado na “suspeita”.[24]
Por fim, cita-se nesta obra o entendimento de Márcio Ferreira, que ao criticar o princípio referido, explicita que:
Vige em nosso sistema processual penal – em todos os procedimentos, inclusive no do júri – os princípios constitucionais do estado jurídico de inocência e do in dubio pro reo. Assim, não encontra amparo constitucional uma regra como a do in dubio pro societate. Na realidade, não é apenas uma questão de inexistência de amparo constitucional, há, em verdade, total incompatibilidade com a Constituição.[25]
Conclui-se que diante disto que a doutrina mais moderna busca amparo no ordenamento constitucional, conduta esta que deve seguir a doutrina tradicional, isto pois, não tem como fechar os olhos para a o princípio da proteção da inocência e também ao in dubio pro reo, ambos previstos na Constituição e aplicar um princípio que nasceu com a jurisprudência e sem amparo legal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPEZ, Fernando. Processo Penal. 14 ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005.
FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal: Teoria, Crítica e Práxis. 5 ed. Niterói: Impetus, 2008.
FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 6 ed. vol 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2005.
NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
PEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues. Acusar ou não acusar? Eis a questão... O in dubio pro societate como forma perversa de lidar com a dúvida no Processo Penal brasileiro. Disponível em <http://podivm.com.br/i/a/artigo_in_dubio.pdf>. Data de acesso: 16/10/2013.
SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principais modificações do júri. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 10 ed. vol 2. São Paulo: Saraiva, 2007.
[1] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Pág. 225
[2] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. Pág. 288
[3] CAPEZ, Fernando. Processo Penal. 14 ed. São Paulo: Damásio de Jesus, 2005. Pág. 185-186
[4] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 10 ed. vol 2. São Paulo: Saraiva, 2007. Pág. 34
[5] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 6 ed. vol 2. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. Pág. 285
[6] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 17 ed. São Paulo: Atlas, 2005. Pág. 527
[7] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit., Pág. 285
[8] Ibidem, Pág. 286-287
[9] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Op. Cit., Pág. 227
[10] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit., Pág. 287
[11] PEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues. Acusar ou não acusar? Eis a questão... O in dubio pro societate como forma perversa de lidar com a dúvida no Processo Penal brasileiro. Disponível em <http://podivm.com.br/i/a/artigo_in_dubio.pdf>. Data de acesso: 16/10/2013. Pág. 01
[12] Ibidem, Pág. 03
[13] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Op. Cit., Pág. 227
[14] FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal: Teoria, Crítica e Práxis. 5 ed. Niterói: Impetus, 2008. Pág. 457
[15] CAPEZ, Fernando. Op. Cit., Pág. 186
[16] SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o novo regime das provas e principais modificações do júri. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. Pág. 340-341
[17] MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. Cit., Pág. 527-528
[18] FULLER, Paulo Henrique Aranda; JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MACHADO, Angela C. Cangiano. Op. Cit., Pág. 227-228
[19] LOPES JUNIOR, Aury. Op. Cit., Pág. 288-289
[20] Ibidem, 289
[21] Idem.
[22] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Op. Cit., Pág 35-36
[23] Ibidem, Pág. 36-37
[24] NICOLITT, André. Op. Cit., Pág 289
[25] PEREIRA, Márcio Ferreira Rodrigues. Op. Cit., Pág. 05