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O Estatuto do Torcedor e seus reflexos nas finanças públicas à luz da Lei de Responsabilidade Fiscal

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Exsurgem três questionamentos sobre o Estatuto do Torcedor: a) se o legislador previu o impacto financeiro a ser suportado pelo Poder Público; b) se as adaptações das praças esportivas devem atender à Lei n.º 8.666/93 e c) se deve ser observada a Lei de Responsabilidade Fiscal.

O desporto nacional passou por uma de suas maiores transformações estruturais já noticiada com a publicação das Leis 10.671 e 10.672, ambas de 15 de Maio de 2003. Sem dúvida, a maior alteração normativa desde o advento da Lei n.º 9.615/98 e que dá continuidade ao processo de sistemática atualização dos diplomas que têm o esporte como foco principal.

Inspirada no Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078/90), a Lei n.º 10.671 introduziu, de forma inédita, regramento normativo que trata da proteção e defesa do torcedor de eventos esportivos, assim considerado, por força do artigo 2o, como toda pessoa que aprecie, apóie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade desportiva.

Logo após a publicação da referida Lei, observou-se intenso e acalorado debate acerca da aplicabilidade dos dispositivos ali insertos. Os holofotes, no entanto, foram direcionados quase que exclusivamente para a polêmica responsabilização das entidades de prática desportiva e de seus dirigentes pela segurança dos torcedores, culminando, inclusive, com ameaça de paralisação do campeonato brasileiro de futebol.

Diversos outros temas, tais como a auto-aplicabilidade do Estatuto, seu alcance quanto às modalidades não consideradas "profissionais" e a obrigatoriedade de publicidade às decisões dos Tribunais de Justiça Desportiva, passaram ao largo dos debates.

Da mesma forma, quedaram-se silentes os analistas de plantão em relação ao tema que ora se propõe. Diante deste cenário, o presente arrazoado tem o objetivo de destacar os reflexos da adoção das imposições do Estatuto do Torcedor nas finanças públicas.

Antes de passarmos ao estudo da temática que ora se apresenta de forma mais minuciosa, mister se faz esclarecer, sem entrar no mérito da questão, que a análise do impacto orçamentário dos dispositivos do Estatuto do Torcedor terá como pano de fundo os estádios de futebol, ainda que subsista a polêmica acerca do referido diploma a todas as competições esportivas profissionais, assim entendidas como aquelas promovidas para obtenção de renda e disputada por atletas cuja remuneração decorra de contrato de trabalho (parágrafo único do artigo 26 da Lei n.º 10.672/2003).

É incontroverso que a grande maioria das facilidades nas quais se realizam competições esportivas futebolísticas são de propriedade do Poder Público, ou seja, de Estados e Municípios.

Exsurgem, daí, três questionamentos: a) se o legislador previu, com antecedência, o impacto financeiro a ser suportado pelo Poder Público para que sejam atendidas todas as exigências do Estatuto; b) se as ações referentes às adaptações das praças esportivas devem atender aos preceitos da Lei n.º 8.666/93 e c) se quanto às questões financeiras e orçamentárias devem ser observados os princípios da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 104/2001).

Das adaptações exigidas pelo novo regramento, destacam-se aquelas insertas nos artigos 18 e 22, II.

O artigo 18 da Lei n.º 10.671/200 prescreve que "os estádios com capacidade superior a vinte mil pessoas deverão manter central técnica de informações, com infra-estrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente".

Por sua vez, o artigo 22, II dita que ser direito do torcedor partícipe "ocupar o local correspondente ao número constante do ingresso".

Ainda que o Estatuto tenha estabelecido uma vacatio legis de 6 meses para que os estádios cumpram tais determinações, pela inteligência do artigo 44, cabe analisarmos quais os reflexos da adoção destas medidas para o Poder Público.

Passemos, pois, para os questionamentos anteriormente listados, bipartindo o estudo entre a análise do princípio da licitação e a observância da Lei de Responsabilidade Fiscal quanto aos recursos financeiros despendidos.


- O Estatuto do Torcedor e o princípio da licitação

De acordo com o disposto na Lei n.º 8.666/93, que regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Carta Federal e institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, à exceção das hipóteses de dispensa e inexigibilidade previstas nos artigos 24 e 25, o princípio da licitação se impõe para todos os outros contratos, aí incluídos aqueles que futuramente venham a ser celebrados para possibilitar as reformas nos Estádios de propriedade do Poder Público.

Observe-se, neste caso, o § 2º e incisos do artigo 7º da Lei 8.666/93:

"§ 2º. As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando:

I - houver projeto básico aprovado pela autoridade competente e disponível para exame dos interessados em participar do processo licitatório;

II - existir orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários;

III - houver previsão de recursos orçamentários que assegurem o pagamento das obrigações decorrentes de obras ou serviços a serem executadas no exercício financeiro em curso, de acordo com o respectivo cronograma;

IV - o produto dela esperado estiver contemplado nas metas estabelecidas no Plano Plurianual de que trata o art. 165 da Constituição Federal, quando for o caso".

Sobre a matéria, aduz com propriedade Airton Rocha Nóbrega [1]:

"III. O PLANEJAMENTO DE OBRAS E SERVIÇOS.

A individuação do objeto há de ser feita em conformidade com a natureza do que se pretende contratar. Visando a disciplinar esse particular aspecto da fase interna da licitação, a Lei nº 8.666/93 trata de forma diferente, embora com os mesmos objetivos, as situações alusivas a obras e serviços (art. 7º) e aquelas respeitantes às compras (arts. 14 e 15). Em se tratando de obras e serviços, especialmente na área de engenharia, ver-se-á a Administração compelida a providenciar a elaboração de projeto básico, o qual será posteriormente consolidado em projeto executivo. Tais projetos terão que reunir os requisitos postos no art. 6º, incisos IX e X, da LLC, detalhando, assim, o que se pretende executar. Orienta a Lei no sentido da padronização de projetos (art. 11), quando possível e conveniente, assim como fixa requisitos que deverão ser considerados tendo em vista especialmente a sua racionalidade (art. 12).

Mas não basta cumprir-se essa etapa alusiva à elaboração de projetos. Há necessidade, ainda, de se buscar estimar o custo das obras e serviços, o que se fará por intermédio de orçamento detalhado, expressando a composição de todos os custos unitários (art. 7º, § 2º, II). Esse levantamento prévio - que servirá como parâmetro para a quantificação dos custos estimados da contratação - deverá ser realizado de forma responsável, por intermédio de adequada coleta de preços e previsão de custos. É atividade que será cometida a pessoa dotada de competência e de conhecimentos para tanto, a ela não se admitindo jamais atuar de forma descompromissada e aleatória, baseada, às vezes, em favores de eventuais futuros participantes do certame que em breve será instaurado.

Obtido o custo estimado da contratação, a etapa seguinte será a de verificar a existência de previsão para a realização da despesa, mediante inclusão feita nas leis orçamentárias. Quanto a esse aspecto específico, é necessário ter em mente que é vedado o início de projeto não incluído na lei orçamentária anual, assim como a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais (CF, art. 167, I e II). Não são admitidos, outrossim, investimentos cuja execução ultrapasse um exercício financeiro sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a sua inclusão, pena de ver-se o responsável incurso em crime de responsabilidade (CF, art. 167, § 1º).

Necessário fazer-se o registro de que nem todas as exigências contidas na Lei se mostram compatíveis com serviços alheios à área de engenharia, devendo a Administração, em tais casos, efetuar as necessárias adequações. Exemplo disso é a exigência alusiva a projetos básico e executivo, impossível de obter-se, com o grau de detalhamento e conteúdo estabelecidos, quando se tratar de serviços comuns. Cuidado que se deve ter, em relação a estes, é o de definir adequadamente o objeto, detalhando-o em memoriais. A intenção da Lei é a de evitar a instauração da licitação e a posterior contratação de algo que, por ausência de definição prévia, não se preste a atender às necessidades da Administração."

No mesmo sentido, cabe transcrever algumas conclusões veiculadas em orientação objetiva publicadas no Informativo de Licitações e Contratos de Julho de 1997, senão vejamos:

"- Obras e serviços de engenharia são as atividades desenvolvidas exclusivamente pelos profissionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, ou seja, aquelas atividades que somente poderão ser desenvolvidas e ou executadas mediante o acompanhamento dos profissionais das áreas. A Lei n° 8.666/93, em seu art. 6°, conceitua obra como toda construção, reforma, fabricação, recuperação ou ampliação realizada por execução direta ou indireta.

- As atividades e atribuições dos profissionais da engenharia vêm descritas no art. 7° da Lei n° 5.194/66 e na Resolução n° 218/75 - CONFEA.

- O registro na entidade profissional competente é condição indispensável para o exercício legal da profissão de engenheiro, arquiteto ou engenheiro agrônomo.

- A finalidade da ART é definir os responsáveis pela obra ou serviço de engenharia.

- A partir de 1987, os CREAs adotaram modelo-padrão da ART.

- A demonstração de qualificação técnica dos licitantes será realizada através da comprovação da aptidão técnico-operacional e técnico-profissional do licitante.

- A qualificação técnico-operacional refere-se à comprovação de aptidão da empresa como pessoa jurídica tecnicamente qualificada para a execução do objeto a ser contratado. Já a comprovação da capacidade técnico-profissional diz respeito ao profissional que a empresa tenha em seus quadros, à pessoa física, que já tenha sido o responsável técnico pela execução de objeto similar ao licitado.

- A comprovação técnico-operacional deverá ser feita nos termos do inciso II do art. 30. Já a comprovação técnico-profissional deverá ser auferida conforme a determinação do inciso I do § 1° do art. 30, vedadas neste caso as exigências de quantidades mínimas ou prazos máximos."

Superada a questão que envolve a necessidade de realização de procedimento licitatório por ocasião da reforma de estádios patrimoniados pelo Poder Público e tendo em vista que a gestão do futebol encerra exploração de atividade econômica, o que demonstra, de forma inolvidável, sua natureza de desporto profissional, devemos passar a considerar o interesse público na realização de tais obras à finalidade suscitada. Estará presente o requisito da motivação suficiente ao ensejo de tais adaptações ao Estatuto do Torcedor para a realização de partidas válidas por competições promovidas por particulares?

Nesse particular aspecto, é preciso enfrentar o tema também sob o aspecto da aplicação de recursos públicos em estádios pertencentes aos clubes de futebol. Para tanto, compulsamos parecer do Ministério Público junto ao TCU (Proc. TC-011.194/90-1 - Tomada de Contas Especial - Recurso de Revisão), in verbis: "A propósito, em que pese o alegado interesse da população local pelo destaque estadual alcançado pelo clube de futebol do Novo Horizonte, tal argumento, por si só, não tem o condão de regularizar o ato praticado, uma vez que recursos federais foram empregados em desacordo com o objeto do convênio e em proveito de associação."

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- O Estatuto do Torcedor e a Lei de Responsabilidade Fiscal

Inicialmente, destaca-se que as regras a serem observadas em relação às despesas públicas tornaram-se mais rígidas com o advento da Lei de Responsabilidade Fiscal, que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Tais normas visam garantir o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e obediência aos limites e condições relativos a renúncia de receita, despesas com pessoal, dívida pública, operações de crédito, concessão de garantia e inscrição de restos a pagar.

É consabido que, regra geral, na Lei de Diretrizes Orçamentárias, estão compreendidas: (i) prioridades e metas da administração pública para o exercício a que se referem; (ii) estrutura e organização dos orçamentos anuais; (iii) diretrizes para elaboração, execução e alteração dos orçamentos; (iv) disposições relativas às despesas com pessoal e encargos sociais, dívida pública, política de aplicação dos recursos das agências financeiras oficiais de fomento; (v) disposições sobre alterações na legislação tributária e disposições gerais.

E, nos termos do art. 4.º, § 1.º da LRF, deverá integrar o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias o Anexo de Metas Fiscais, no qual serão estabelecidas metas anuais em valores correntes e constantes relativas a receitas, despesas, resultados nominal e primário, e montante da dívida, para o exercício a que se referirem e para os dois subsequentes. O conteúdo do referido Anexo, está disposto no § 2o do mesmo diploma legal, cabendo destacar o "demonstrativo das metas anuais, instruído com memória e metodologia de cálculo que justifiquem os resultados pretendidos, comparando-as com as fixadas nos três exercícios anteriores, e evidenciando a consistência delas com as premissas e os objetivos da política econômica nacional."

Assim, o detalhamento de cada uma das prioridades e metas de governo deve conter informações que possibilitem a realização ou implementação de programas e ações, bem como a definição de responsabilidade e consolidação destas no orçamento anual.

Ressalta-se o estabelecido na LRF quanto a investimentos (despesas com o planejamento e a execução de obras):

"Art.5o...

(...)

§ 5o A lei orçamentária não consignará dotação para investimento com duração superior a um exercício financeiro que não esteja previsto no plano plurianual ou em lei que autorize a sua inclusão, conforme disposto no art.167 da Constituição."

Ainda, com relação à execução de obras:

"Art. 16. A criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento da despesa será acompanhado de:

I – estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que entrar em vigor e nos dois subsequentes;

II – declaração do ordenador da despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual e compatibilidade com o plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias:

(..)

§ 4o As normas do caput constituem condição prévia para:

I – empenho e licitação de serviços, fornecimento de bens ou execução de obras;"

Da análise dos argumentos expedidos anteriormente, verificamos a importância das premissas de planejamento integrado e o estabelecimento de ordem de precedência, determinando que a inclusão de novos projetos na lei orçamentária apenas se dará quando estiverem contempladas as despesas tidas como prioritárias (art. 8º da Lei nº 8666/93 e art. 45 da LRF).

Como se vê, quanto aos impactos das adaptações na finanças do Poder Público, devemos considerar as regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000), especialmente no tocante a novas ações governamentais que acarretam aumento de despesa pública, nos termos dos artigos 16 e 17 do referido diploma, sob pena de que a geração de despesas realizada em inobservância ao comando destes artigo serem consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público.

Destarte, hão que ser observadas, principalmente, as normas de preservação do patrimônio público que estabelecem que novos projetos somente poderão ser incluídos no planejamento orçamentário após adequadamente atendidos os em andamento nos termos em que dispuser a Lei de Diretrizes Orçamentárias (art. 45 – problema das obras inacabadas).

A confusão é tão grande que envolve também a priorização no dispêndio e recursos públicos ao atendimento das necessidades sociais, que, certamente, não são focos do Estatuto do Torcedor.

Inquestionável, pois, que o Estatuto do Torcedor, neste âmbito, traz exigências em prazo pouco razoável de forma a desconsiderar as premissas de contratação pública e planejamento orçamentário e financeiro, não apontando soluções viáveis de implantação.

Finalmente, não podemos nos furtar de fazer menção à falta de auto-aplicabilidade do Estatuto do Torcedor, que ainda depende de adequada regulamentação, principalmente em face dos tópicos aqui mencionados, de forma a responsabilidade imposta por Lei à Administração Pública venha a ser transferida para os contribuintes.


Nota

01. O Planejamento da Licitação. Informativo de Licitações e Contratos – ILC, Zênite, Seção Doutrina/Parecer, Dezembro, 1998.

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Sobre os autores
Luiz Antonio Grisard

advogado, aluno dos cursos de Especialização em Administração Esportiva pela Universidade do Esporte e Direito do Teabalho pelas Faculdades Integradas Curitiba, Procurador do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paranaense de Futebol, Auditor da Federação Paranaense de Futsal, debatedor no fórum esportivo virtual CevLeis e membro do IBDD.

Paulo Marcos Schmitt

Advogado. Membro da Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos do Ministério do Esporte e da Comissão Especial incumbida da elaboração do Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Secretário da Comissão de Direito Desportivo do Conselho Federal da OAB e membro de Comissões de Direito Desportivo junto à seção OAB-Paraná e subseção de Curitiba, Procurador-Geral do STJD do Futebol. Presidente do STJD do Judô. Professor de inúmeros cursos. Autor de várias publicações em Direito Desportivo. Debatedor no fórum esportivo virtual CevLeis.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GRISARD, Luiz Antonio ; SCHMITT, Paulo Marcos. O Estatuto do Torcedor e seus reflexos nas finanças públicas à luz da Lei de Responsabilidade Fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 98, 9 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4395. Acesso em: 19 abr. 2024.

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