Preliminarmente, pretende o autor demonstrar de forma sumária[1] que a rescisão do contrato administrativo é pressuposto para a aplicação das sanções previstas no art. 87 da Lei nº 8.666/93, quais sejam, a advertência, multa compensatória, suspensão do direito de licitar e declaração de inidoneidade. Isso equivale a dizer que tais sanções nunca serão aplicadas durante a execução do referido contrato.
Segundo o art. 77, “a inexecução total ou parcial do contrato enseja a sua rescisão, com as consequências contratuais e as previstas em lei ou regulamento”.
Em segundo momento, no art. 87, utiliza-se novamente a terminologia inexecução total ou parcial do contrato, diante da qual haverá a aplicação das penalidades dos incisos, conforme critérios de dosimetria. Veja-se:
Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I - advertência;
II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.
Como primeiro argumento, destaca-se que a lei, na medida do possível, deve ser dotada de uma ordem lógica, necessariamente trazendo as disposições normativas na sequência em que devem ser aplicadas, especialmente em se tratando de regras de procedimento, como é o caso.
Tal afirmação pode ser fundamentada nas regras de técnica legislativa constantes da Lei Complementar n. 95/98[2]. No que segue:
Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
(...)
III - para a obtenção de ordem lógica:
a) reunir sob as categorias de agregação - subseção, seção, capítulo, título e livro - apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;
Exemplo claro dessa prática legislativa se verifica nas etapas de habilitação e julgamento das propostas nas licitações processadas sob a modalidade pregão. Por meio da Lei n. 10.520/02, o legislador, ao pretender a inversão de fases, o fez de forma expressa, de modo que, quer na letra da lei, quer no procedimento, a habilitação é posterior à classificação das propostas, subvertendo a ordem até então maciçamente utilizada por força da Lei nº 8.666/93.
Agora, o ponto mais relevante, do qual acreditamos se originem a maior parte dos equívocos acerca da interpretação do art. 87 da Lei de Licitações, se refere à atecnia legislativa na utilização da expressão “inexecução total ou parcial do contrato”.
Nesse momento, cabe lembrar que aos contratos administrativos são aplicáveis de forma supletiva os princípios da teoria geral dos contratos e outras disposições decorrentes do direito privado. É o que dispõe o art. 54 da Lei nº 8.666/93:
Art. 54. Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.
Dada essa realidade, valemo-nos das disposições constantes no Código Civil e na doutrina civilista para buscar melhor compreensão da inexecução dos contratos administrativos.
Impende destacar que qualquer contrato formaliza o dever de cumprimento de determinada obrigação a cada uma das partes. O não cumprimento ou o inadimplemento das obrigações resulta em reflexos jurídicos, tal como o devedor responder por perdas e danos, juros e atualizações.
É o que dispõe o art. 389 do Código Civil:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Na doutrina civilista se identificam basicamente duas formas de inadimplemento, o absoluto e o relativo. Esses se diferenciam de forma concreta pelo critério da utilidade. Explica-se, o inadimplemento sempre ocorre com a não execução de uma obrigação na forma como foi convencionada. Todavia, no caso do inadimplemento absoluto, ainda que o devedor possa realizar a obrigação novamente na forma pretendida, ou completar aquilo que foi inexecutado, ao credor tal cumprimento de obrigação não possui mais utilidade. O objeto daquele ajuste não mais lhe satisfaz a necessidade, motivo pelo qual faz a sua recusa.
Em oposição, o inadimplemento relativo, será executado pela parte devedora, sendo-lhe aplicados alguns ônus que, ao mesmo tempo que a penaliza, repara, compensa, o credor pelo cumprimento inadequado. Exemplo bem claro disso, são os juros de mora, por atraso na execução da obrigação.
Sobre o assunto, cabe trazer a doutrina de Sílvio de Salvo Venosa:
Cuida-se, principal e primeiramente, do descumprimento por parte do devedor, que é a situação mais comum.
O inadimplemento da obrigação poderá ser absoluto. A obrigação não foi cumprida em tempo, lugar e forma convencionados e não mais poderá sê-lo. O fato de a obrigação poder ser cumprida, ainda que a destempo (ou no lugar e pela forma não convencionada), é critério que se aferirá em cada caso concreto. Cabe ao juiz, com a consideração de homem ponderado, tendo como orientação o interesse social e a boa-fé objetiva como veremos, colocar-se na posição do credor: se o cumprimento da obrigação ainda for útil para o credor, o devedor estará em mora (haverá inadimplemento relativo). O critério da utilidade fará a distinção.
(...)
Não é pelo prisma da possibilidade do cumprimento da obrigação que se distingue mora de inadimplemento, mas sob o aspecto da utilidade para o credor, de acordo com o critério a ser aferido em cada caso, de modo quase objetivo. Se existe ainda utilidade para o credor, existe possibilidade de ser cumprida a obrigação;[3] (grifou-se)
Ao que parece, o legislador importou do direito civil a terminologia inexecução total ou parcial para contratos administrativos. No entanto, concedeu a ambos os termos (total e parcial) os mesmos reflexos jurídicos. Vale dizer, a inexecução total ou parcial, resulta em rescisão contratual, conforme art. 77 e em aplicação de sanções, de acordo com o art. 87.
Portanto, não é possível confundir com o inadimplemento absoluto ou relativo do direito civil, que efetivamente são institutos diferentes. No âmbito dos contratos administrativos, a nosso ver, a inexecução total ou parcial, equivale ao inadimplemento absoluto, visto a possibilidade de se utilizar do critério da utilidade também para a rescisão do contrato administrativo.
Nesse momento, vale-se da doutrina de Joel de Menezes Niebuhr:
Nesse sentido, o art. 77 da Lei n. 8.666/93 estabelece que a inexecução total ou parcial do contrato enseja a sua rescisão. (...)
O inciso I do art. 78 da Lei n. 8.666/93 trata da hipótese de descumprimento das obrigações contraídas no contrato, e o inciso II do mesmo artigo, da hipótese de cumprimento irregular. Percebe-se que o legislador foi redundante, porque o descumprimento irregular equivale ao descumprimento. (...)
De todo modo, não é qualquer deslize do contratado o suficiente para rescindir o contrato. Se a falta do contratado puder ser corrigida, isto é, se ela não é irreversível, se não comprometer o contrato como um todo, a Administração, antes de optar pela rescisão, deve dar oportunidade a ele para corrigi-la. No entanto, se o contratado persiste em erro, descumprindo suas obrigações, ainda que a falta não seja tão grave, é imperativa a rescisão. Trata-se de aplicação do princípio da proporcionalidade aliado ao da economicidade, porquanto, em muitos casos, a rescisão do contrato é medida extremamente onerosa para Administração, que lhe causa inúmeros transtornos e inconvenientes.[4]
Percebe-se que Niebuhr defende não ser qualquer inexecução (parcial) que ensejará o dever de rescindir, mas apenas aquelas graves o suficiente a impedir a manutenção contratual, sem prejuízo do interesse público. Logo, ainda que de forma indireta, afirma como marco da rescisão a utilidade na continuidade da execução contratual.
Defendemos, contudo, que não são apenas os princípios da proporcionalidade e da economicidade que fundamentam esse raciocínio. Fato é que a utilidade é o critério objetivo que deverá embasar a decisão do administrador em rescindir ou não o contrato. Diga-se novamente, não existindo “interesse” na continuidade do contrato, configura-se o inadimplemento absoluto causador da rescisão.
Verificado inadimplemento absoluto, ou seja, a inexecução total ou parcial capaz de justificar a rescisão contratual, nesse momento, temos parâmetros objetivos que indicam que aquele contratado deverá receber as penalidades previstas no art. 87 da Lei de Licitações.
Não se quer com isso eliminar ou diminuir a atuação coercitiva da Administração na vigência do contrato. Para tal fim, a lei de licitações prevê de forma expressa a possibilidade de aplicação de multa de mora prevista no art. 86[5], em decorrência de atrasos no cumprimento de obrigações, que podem ocorrer durante a execução contratual.
Ademais, defendemos a possibilidade de aplicar advertências ao contratado, todavia, não em razão da previsão do art. 87, I, da Lei n. 8.666/93, mas como exercício de sua prerrogativa de fiscalização do contrato, prevista no art. 67, transcrito a seguir:
Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição.
§ 1º O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados.
Nessa linha, Joel de Menezes Niebuhr, explica que:
... a advertência não deveria ser encartada no rol das sanções administrativas, porquanto, evidentemente, em sua essência, ela não é uma espécie de sanção (...) antecede a sanção, com o propósito de evita-la (...). O poder de advertir é imanente ao poder de fiscalizar, reconhecido à Administração Pública expressamente no inciso III do art. 58 da Lei n. 8.666/93.[6]
Inclusive, deixa clara a carga sancionatória das advertências decorrentes do poder de fiscalização (art. 67, § 1º), o fato de que a reiteração de falhas advertidas pela Administração Pública resultará na rescisão unilateral por força dos incisos VII e VIII do art. 78 da Lei n. 8.666/93, transcritos a seguir:
Art. 78. Constituem motivo para rescisão do contrato:
(...)
VII - o desatendimento das determinações regulares da autoridade designada para acompanhar e fiscalizar a sua execução, assim como as de seus superiores;
VIII - o cometimento reiterado de faltas na sua execução, anotadas na forma do § 1º do art. 67 desta Lei;
Por essa razão, defendemos que a advertência decorrente do poder de fiscalização contratual da Administração não se confunde com a advertência sanção, prevista no art. 87.
Dessa forma, não há que se exigir por parte da Administração, pelo menos em princípio, a garantia de ampla defesa e contraditório nas advertências durante a fiscalização do contrato. Justamente, para garantir a efetividade dessa admoestação, como bem defendeu Joel de Menezes Niebuhr.
Cabe, ainda, perquirir a finalidade da lei no caso da rescisão e da aplicação de sanções do art. 87 pela inexecução contratual, buscando assim estabelecer a ordem em que ocorrerão as reprimendas citadas.
Diante da inexecução contratual (inadimplemento absoluto, frise-se), como primeira providência, cabe à Administração proteger o interesse público em torno do contrato. A lei determinou que a forma de se resguardar o interesse público, quando em risco por conta da má execução contratual, é, justamente, eliminar a avença do mundo jurídico e afastar o contratado que não foi fiel em suas obrigações. - Tanto isso é verdade, que é autorizado à Administração assumir imediatamente a execução, conforme art. 80, II.[7] Reflexo disso, retira-se de passagem da doutrina de Hely Lopes Meirelles, segundo a qual “o poder de rescisão unilateral do contrato administrativo é preceito de ordem pública, decorrente do princípio da continuidade do serviço publico, que à Administração compete assegurar.”[8]
As sanções administrativas, como as penais, possuem o objetivo de punir a conduta faltosa e prevenir, por meio do exemplo, que outros sujeitos incorram nas mesmas infrações.[9] Portanto, naturalmente, tal análise recai a um segundo plano em relação à garantia do interesse público anteriormente referido, decorrente do contrato.
Resta claro, diante dessa interpretação, que as sanções do art. 87 vêm em segundo momento, posteriormente à tomada de decisão por rescindir o ajuste. Logo, é como dizer que a aplicação dessas sanções deverá ser, necessariamente, antecedida pela rescisão contratual.
Diante disso, discordamos do procedimento tendente a aplicar as sanções previstas no art. 87 da Lei de Licitações nos contratos ainda vigentes. Nestes, entendemos que é passível a aplicação de multa de mora e de advertência decorrente do poder de fiscalização do contrato.
Notas
[1] O texto traz uma abordagem mais direta de artigo intitulado “Inaplicabilidade das sanções do art. 87 da Lei n. 8.666/93 durante a vigência dos contratos administrativos”. Disponível em: http://convir-adv.blogspot.com.br/2014/02/inaplicabilidade-das-sancoes-do-art-87.html
[2] Dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona.
[3] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 337, 338.
[4] NIEBURH, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 937.
[5] Art. 86. O atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato.
§ 1º A multa a que alude este artigo não impede que a Administração rescinda unilateralmente o contrato e aplique as outras sanções previstas nesta Lei.
§ 2º A multa, aplicada após regular processo administrativo, será descontada da garantia do respectivo contratado.
§ 3º Se a multa for de valor superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, a qual será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou ainda, quando for o caso, cobrada judicialmente.
[6] NIEBURH, Joel de Menezes. Licitação pública e contrato administrativo. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 974.
[7] Art. 80. A rescisão de que trata o inciso I do artigo anterior acarreta as seguintes conseqüências, sem prejuízo das sanções previstas nesta Lei:
I - assunção imediata do objeto do contrato, no estado e local em que se encontrar, por ato próprio da Administração;
II - ocupação e utilização do local, instalações, equipamentos, material e pessoal empregados na execução do contrato, necessários à sua continuidade, na forma do inciso V do art. 58 desta Lei;
[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 24.ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p.196
[9] Em consonância com esse entendimento, Daniel Ferreira leciona que “a sanção se realiza como resposta jurídica de modo a exatamente desestimular a incursão no ilícito – e, possui, portanto, natureza repressiva e restritiva de direitos, podendo ser assumida como um mal, um castigo mesmo, mas apenas quando recaída sobre o infrator.” (FERREIRA, Daniel. Teoria geral da infração administrativa a partir da Constituição Federal de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 90)