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Algumas anotações sobre o Estatuto do Torcedor

30/11/2003 às 00:00
Leia nesta página:

Considerações Iniciais:

Promulgada em 15 de maio de 2003, a Lei nº 10.671, mais conhecida como Estatuto do Torcedor, veio responder aos anseios dos desportistas brasileiros que desejam a prevalência da ética, da moralidade e da transparência no desporto profissional, especialmente o futebol.

De início, vale ressaltar a importância do tratamento legislativo desta matéria, pois o futebol é, ao lado do carnaval, a principal manifestação cultural do povo brasileiro, um esporte popular que mexe com a paixão da maioria dos brasileiros, de todas as classes sociais.

Paralelamente ao Estatuto do Torcedor temos a Lei Pelé, Lei nº 9615/98, que instituiu normas gerais sobre desporto. Seu conteúdo vai no mesmo sentido moralizador do Estatuto do Torcedor e desde sua entrada em vigor foi severamente criticada por alguns dirigentes esportivos, tendo sofrido importantes modificações, a última delas pela Lei nº 10.672, de 15 de maio de 2003.


Os Pontos Mais Polêmicos:

A entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo, foram equiparadas ao fornecedor, conforme definido no Código de Defesa do Consumidor - CDC.

Isto quer dizer que toda responsabilidade atribuída ao fornecedor pelo CDC também pode ser cobrada da entidade organizadora da competição e da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo.

Os torcedores têm, inclusive, os mesmos instrumentos processuais que os consumidores para defesa em juízo, notadamente a legitimidade do Ministério Público para a promoção de ações coletivas.

Em função da equiparação das entidades responsáveis pela organização da competição ao fornecedor, medidas como a alteração da tabela da competição, como mudança de data, local e horário das partidas, poderão ser invalidadas judicialmente, valendo acrescentar que é proibido alterar o regulamento após sua divulgação definitiva, conforme dispõe o art. 9º, § 5º do Estatuto.

Importante ressaltar a competência da Justiça Federal para julgar causas relativas ao desporto, pois a Lei nº 10672, de 15 de maio de 2003, alterou o § 2º do art. 4º da Lei nº 9615/98 que ficou assim redigido:

§ 2º A organização desportiva do País, fundada na liberdade de associação, integra o patrimônio cultural brasileiro e é considerada de elevado interesse social, inclusive para os fins do disposto nos incisos I e III do art. 5º da Lei Complementar nº75, de 20 de maio de 1993. (Redação dada pela Lei nº 10.672, de 15.5.2003)

Estando, portanto, a organização desportiva do país integrada no patrimônio cultural brasileiro e cabendo ao Ministério Público Federal promover a sua defesa, a Justiça Federal é a competente para a causa, tendo em vista o disposto no art. 70 da Lei Complementar nº 75/93.

Outro ponto moralizador que merece destaque é a obrigatoriedade da escolha dos árbitros por meio de sorteio público, pois a escalação de árbitros era uma das medidas que mais geravam reclamações e suspeitas, em virtude da falta de transparência e critério que caracterizavam a organização das competições.


Obrigatoriedade do Critério Técnico:

Se o futebol brasileiro era elogiado por sua técnica, era muito criticado por sua desorganização.

Agora a lei estabelece a obrigatoriedade de se organizar pelo menos uma competição de âmbito nacional com sistema de disputa em que as equipes participantes conheçam, previamente, a quantidade de partidas que disputarão, bem como seus adversários, ou seja, o chamado campeonato por pontos corridos em que o campeão é aquele que somar mais pontos durante a competição, premiando, assim, o critério técnico e evitando-se injustiças tantas vezes já ocorridas no certame nacional.

Garante-se também que as equipes tenham atividade por pelo menos dez meses do ano, possibilitando-lhes auferir receitas e gerar empregos, salientando-se que o desporto profissional é, por definição legal, atividade econômica.

Ainda no que concerne ao critério técnico, a Lei nº 10671, de 15 de maio de 2003, veda expressamente, em seu art. 10, § 2º, a adoção de qualquer outro critério, especialmente o convite.

Sendo assim, a Copa Sul-americana, anunciada para acontecer no segundo semestre deste ano e cuja tabela foi divulgada no endereço eletrônico http://www.conmebol.com/scripts/runisa.dll?S7:gp:517084:71185+/gl/compet+1154+2003+S, já nasce eivada de ilegalidade porque o Juventude de Caxias do Sul (RS), apesar de ter conquistado o direito de nela participar pelo critério técnico, como determina o art. 10, § 1º do Estatuto do Torcedor, foi alijado pelos organizadores, sendo substituído por outras agremiações que não obtiveram índice técnico para a referida competição.

Nem se alegue que a Copa Sul-americana, por ser organizada pela Confederação Sul-americana de Futebol, não estaria sujeita à lei nacional, devido à personalidade estrangeira daquela entidade.

Quando uma entidade com personalidade jurídica estrangeira organiza competição com a participação de agremiações nacionais e com jogos disputados no território nacional, é obrigatória a observância da lei brasileira, sob pena de nulidade.

Além disso, as entidades de prática desportiva nacionais, convidadas para a referida competição, são equiparadas a fornecedores, conforme já explanado, e nesta condição também são responsáveis pela legalidade da competição.


A Responsabilidade dos Dirigentes:

Um ponto muito criticado por alguns dirigentes que se posicionaram contra o Estatuto do Torcedor foi o art. 19, que assim prescreve:

Art. 19. As entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo.

Muitos provocaram alarme, dizendo que seriam presos caso algum torcedor sofresse alguma agressão nos estádios.

Simplesmente cuida a lei da responsabilidade objetiva pela reparação do dano, na esteira do que já prescreve a legislação consumerista.

Também reclamaram da obrigatoriedade da numeração dos ingressos e do direito do torcedor ocupar o local correspondente ao número constante do ingresso, afirmando para isso haveria necessidade de instalação das cadeiras numeradas, majorando os custos.

A leitura atenta da lei, contudo, revela que não é obrigatória a instalação de cadeiras numeradas, bastando numerar o local de cada torcedor na própria arquibancada.

Deve-se observar que nem existe a obrigatoriedade de todos os lugares serem numerados, pois além de se assegurar a existência da denominada "geral", o local em que os torcedores assistem à partida em pé, nada impede que os estádios sejam divididos em setores, ficando uma parte sem numeração onde os torcedores que assim preferirem, especialmente os integrantes de torcidas organizadas, possam se agrupar para agitar suas bandeiras e fazer suas coreografias, participando de uma forma ativa do espetáculo, ao contrário daqueles que preferirem sentar e assistir passivamente ao espetáculo.

O Estatuto interfere também na administração da entidade de prática desportiva, a exemplo do que já fazia a Lei Pelé, exigindo transparência financeira da entidade, bem como a abertura de um canal de comunicação direta com o torcedor.


A Justiça Desportiva:

A Justiça Desportiva que tem, inclusive, status constitucional, já foi protagonista de algumas das páginas mais vergonhosas do futebol brasileiro.

Agora, ela também está submetida aos princípios da ética, da moralidade e da transparência que norteiam o Estatuto do Torcedor, exigindo-se a motivação de suas decisões e a publicidade de seus julgamentos, ficando proibido o segredo de justiça. Acrescente-se que o Conselho Nacional de Esportes – CNE terá o prazo de seis meses para adequar o Código de Justiça Desportiva ao disposto na Lei Pelé e no Estatuto do Torcedor.

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Seria desejável a mudança da sede do Superior Tribunal de Justiça Desportiva – STJD para a capital federal, onde teria menor influência da imprensa esportiva, bem como a fixação de regras transparentes e limitação temporal para a investidura de seus membros.


As Transmissões Televisivas:

Um item de fundamental importância no qual o Estatuto do Torcedor foi omisso refere-se às transmissões das partidas do campeonato pela TV aberta.

Esta situação tem gerado muitos protestos dos torcedores porque a emissora que detém os direitos de transmissão das partidas do campeonato nacional privilegia o televisionamento de jogos envolvendo equipes sediadas nas praças onde se localizam os anunciantes, em detrimento das equipes dos outros estados da federação.

Não é demais recordar que o futebol, fazendo parte do patrimônio cultural brasileiro, deve ser fortalecido regionalmente, estabelecendo a Constituição, de forma expressa, que a programação televisiva atenderá de forma preferencial à finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e ainda à regionalização da programação.

Desta forma, as transmissões ao vivo das partidas pela TV aberta, a única acessível aos torcedores de baixa renda, deveria obedecer ao critério da regionalização, transmitindo-se para determinada unidade da federação a partida envolvendo o representante daquele Estado no campeonato nacional.

A inexistência de dispositivo legal nesse sentido não significa que o torcedor não tenha direito à regionalização das transmissões.

Isto porque o torcedor tem em sua proteção os mesmos direitos do consumidor, incluindo o acesso à Justiça para garanti-los.

O Ministério Público Federal, responsável pela defesa do patrimônio cultural brasileiro, no qual se insere o futebol, poderá acionar na Justiça os responsáveis pela escala das partidas televisionadas por TV aberta, exigindo-se que se respeite o torcedor de todos os clubes, transmitindo-se as partidas de forma regionalizada e corrigindo-se esta distorção hoje verificada.

Não se pode alegar, em defesa do status quo, a existência de eventual cláusula contratual que atribua à emissora detentora dos direitos de transmissão a livre escolha das partidas transmitidas ao vivo, pois, em virtude da função social do contrato, a liberdade de contratar encontra limitação na idéia de ordem pública, onde o interesse individual não pode prevalecer sobre o interesse social, o interesse da coletividade.


Conclusão:

Pode-se afirmar que o Estatuto do Torcedor representa um avanço na organização e administração do desporto profissional, havendo razão para o otimismo quanto ao futuro, quando, esperamos, não veremos mais escândalos e fraudes nesta importante atividade.

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Sobre o autor
Lincoln Pinheiro Costa

juiz federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região - Seção Judiciária de Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Lincoln Pinheiro. Algumas anotações sobre o Estatuto do Torcedor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 147, 30 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4417. Acesso em: 4 mai. 2024.

Mais informações

Trabalho também publicado no site da AJUFE (www.ajufe.org.br).

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