Sumário: Introdução. 2. Breves considerações a respeito do ISS e da Lei n. 8.137/90. 3. A atuação do Ministério Público Estadual e da Autoridade Fazendária Municipal. 4. A crise da tutela penal do ISS. 5. Conclusão. 6. Referências bibliográficas.
- Introdução
Este trabalho tem a finalidade de apresentar alguns aspectos em torno dos crimes contra a ordem tributária no que concerne ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, em que se pretende ressaltar algumas das dificuldades dos Municípios em estruturar-se para apurar os dados necessários à responsabilização penal da evasão fiscal do imposto em comento, como também, a falta de vontade política dos Administradores Públicos, os quais, geralmente, voltados a uma ideologia partidária, considerando-se a aproximação direta entre munícipes e administrador, omitem-se quanto à busca dos dados necessários para a responsabilização penal dos contribuintes.
O tema relativo aos crimes contra a ordem tributária é bastante importante, polêmico, atual e complexo. Na Itália, em virtude da grande dificuldade de gestão do sistema sancionatório dos crimes tributários, o assunto, em virtude de sua importância, a partir de 2000, sofreu grandes modificações. Tal a relevância do assunto naquele País, que toda a legislação a respeito fora modificada, através do Decreto Legislativo n. 74, do dia 10 de março de 2000.
No Brasil, a matéria em pauta é regulada, basicamente, pela Lei n. 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.
Quanto à realidade brasileira, a primeira questão que deve restar clara, como freqüentemente lembra HUGO DE BRITO MACHADO (1), diz respeito ao conhecimento da matéria. Ou seja, há que restar evidenciado que o profissional atuante neste campo jurídico, deve possuir conhecimentos em duas áreas específicas: direito penal e direito tributário. Nesse aspecto, considerando haver íntima relação entre as duas disciplinas mencionadas, revela-se insuficiente o amplo conhecimento em só uma delas, sob pena de não se conseguir enfrentar o tema com segurança.
Cumpre frisar, outrossim, como bem enfatiza MÁRCIA AGUIAR AREND (2) ao tratar do controle penal na ordem tributária, que "os recursos suprimidos ou reduzidos em detrimento da Fazenda Pública não podem ser compreendidos como mero interesse fazendário. Interesse da Fazenda Pública é interesse público, interesse de toda a sociedade, reunindo as características de direito e interesse difuso".
2. Breves considerações a respeito do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN e da Lei n. 8.137/90.
Inserido na Constituição Federal (3), como sendo de competência municipal, o Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISSQN, comumente conhecido como ISS, apresenta-se, atualmente, sobretudo nas grandes cidades brasileiras, como a principal receita própria dos municípios, em razão da concentração elevada dos serviços que são prestados pelos agentes econômicos no desenvolvimento da atividade produtiva.
Contudo, antes de se adentrar no cerne da controvérsia, consubstanciada na análise do ilícito penal tributário, faz-se necessário tecer breves considerações em torno de algumas questões do ISS e que interessam de sobremaneira ao direito penal tributário.
O ISS é regulado pelo Decreto-lei n. 406/68, que, segundo os autores ANGELITA DE ALMEIDA VALE E AILTON DOS SANTOS (4), foi reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência como Lei Complementar. No referenciado ato normativo, constava uma lista de serviços (5), em que estavam previstos vinte e nove (29) itens (6), a qual fora modificada, posteriormente, através da Lei Complementar n. 56/87, que a ampliou consideravelmente para cem (100) itens, que estão em plena vigência atualmente.
O fato gerador do ISS, segundo dispõe o Decreto-Lei nº 406/68 (7), consubstancia-se na prestação, por empresa ou profissional autônomo, com ou sem estabelecimento fixo, de serviço constante da lista, que, atualmente, é aquela anexa à Lei Complementar n. 56/87. A base de cálculo do referenciado imposto municipal, constitui-se no preço do serviço (8). O contribuinte do ISS, por sua vez, é o prestador do mesmo serviço (9).
Outro ponto importante a ser destacado, ainda, diz respeito à classificação do referenciado tributo, a fim de que se possa, em face das características peculiares do imposto municipal aqui analisado, subsumir o tipo penal relativo aos crimes contra a ordem tributária ao respectivo sujeito ativo do delito, que poderá vir a figurar no pólo passivo da relação jurídico-processual penal.
Em relação à classificação acima comentada, CARLOS DALMIRO DA SILVA SOARES (10) agrupa os elementos essenciais do tributo em pauta, os quais se mostram de grande utilidade para o nosso estudo. Relaciona o ISS como "imposto de natureza fiscal (fim arrecadatório), imposto não restituível, imposto indireto (embutido no preço final do serviço, o consumidor assume o ônus - contribuinte de fato) imposto do tipo ordinário ou permanente, imposto sobre objeto jurídico, imposto principal imposto periódico". (Grifos nossos).
Adotando-se, pois, os argumentos fulcrados na classificação do ISS, como imposto indireto, importante trazer a lume as lições de ANDREAS EISELE (11), o qual, ao comentar o inciso II, do art. 2º, da Lei n. 8.137/90, faz as seguintes considerações: "O tipo do art. 2º, II, trata das modalidades de tributos denominados indiretos, ou seja, aqueles em que ônus financeiro da operação não é suportado pelo sujeito passivo da obrigação tributária, denominado contribuinte de direito (que na realidade é o único contribuinte legalmente estabelecido), mas, sim, repassado a terceiro, denominado ´contribuinte de fato´. Exemplo de tal situação se verifica com o ICMS (...) Fenômeno análogo ocorre, ainda, com o IPI, o ISS (...) (Grifos não originais).
Uma das finalidades, portanto, acerca do conhecimento em relação à classificação dos tributos, seja esta de ordem financeira ou jurídica, está na possibilidade de se evidenciar a sujeição do sujeito passivo da obrigação tributária, à eventual deflagração de crime contra a ordem tributária, como agente ativo da ação penal.
Por outro lado, quando se fala em fraude fiscal, faz-se menção obrigatória à Lei n. 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.
Nos artigos 1º e 2o, da lei já referenciada, estão explicitadas as condutas delituosas de omissão ou supressão dos tributos relativos a essas matérias, cabendo frisar que as do art. 1º são punidas com pena mais severa, na modalidade de crime material, enquanto que as do art. 2º, são mais brandas, na modalidade de crime formal. Os sujeitos ativos de tais infrações, quando denunciados pelo Ministério Público, na primeira hipótese, serão processados e julgados pela justiça comum, no segundo caso, perante o Juizado Especial de causas penais de menor complexidade.
A Lei n. 8.137/90 (12) prevê, igualmente, uma qualificadora, que deverá ser aplicada pelo juiz, na terceira fase da aplicação da pena, quando o crime ocasionar grave dano à coletividade, quando o crime for cometido por servidor público no exercício de suas funções, ou quando o crime for praticado em relação à prestação de serviços ou ao comércio de bens essenciais à vida ou à saúde.
É fundamental esclarecer que a materialidade nos crimes contra a ordem tributária é muito importante e imprescindível. Sem ela não há crime a ser punido. Geralmente esta é provada pela cópia autenticada dos documentos localizados quando da lavratura do auto de infração, instrumentos, livros, notas fiscais, anotações em cadernos ou livros não oficiais, caixa dois, enfim, tudo que poderá servir para a comprovação da fraude.
No que tange à autoria, tratando-se de firma de sociedade por quotas de responsabilidade limitada ou individual, tipos de sociedades mais usuais quando se trata de prestação de serviço, os sócios-gerentes, no caso da primeira, e o seu administrador, no caso da segunda, é que respondem penalmente, devendo haver a comprovação de que estes administravam a empresa no momento da sonegação.
3. O papel do Ministério Público e da Autoridade Fazendária.
O Ministério Público, conforme dispõe a Carta Magna (13), é o dono da ação penal. Somente o Promotor de Justiça é que detém a competência para denunciar ou não o contribuinte sonegador do ISS. O exercício das nobres funções do Parquet exige postura de absoluta imparcialidade e isenção, jamais podendo ser exercida, como é por demais sabido, por interesses pessoais.
Sendo, como se viu, a propositura da ação penal pública incondicionada, função institucional do Ministério Público, e, tendo em vista o disposto no art. 83, da Lei nº 9.430/96 (14), que dispõe sobre a legislação tributária federal, as contribuições para a seguridade social, o processo administrativo de consulta, dando outras providências, questiona-se se o Ministério Público, nos crimes contra a ordem tributária está obrigado a aguardar o término do processo administrativo-fiscal para oferecer a peça acusatória por crime contra a ordem tributária. O Supremo Tribunal Federal (15), na análise da presente questão, tem pacificado a matéria, entendendo que o encerramento do procedimento administrativo fiscal, independentemente do disposto no art. art. 83, da Lei nº 9.430/96, não é condição de procedibilidade para a deflagração da ação penal, porquanto o Ministério Público não fica impedido de agir desde logo, podendo se utilizar dos meio de prova a que tem acesso.
A Autoridade Municipal Fazendária, por sua vez, quando no exercício de suas atribuições legais, apurar indícios de que o contribuinte do ISS incidira em alguma das condutas do art 1º ou do art. 2º, da Lei nº 8.137/90, deverá formular representação fiscal para fins penais, acompanhada de todos os documentos que demonstrem a ocorrência da possível fraude, para, em seguida, encaminhá-la ao Ministério Público. Nesta peça informativa, deverá o fiscal de tributos indicar, além da notícia do fato delituoso, o montante do tributo suprimido ou reduzido, se evidenciados indícios de alguma conduta do art. 1º, da Lei n. 8.137/90; no caso de não recolhimento (art. 2º, do mesmo Estatuto Normativo), deverá o agente fazendário indicar o montante do imposto devido.
4. A Crise da tutela penal do ISS.
No que toca à repressão à evasão do tributo, através de ação penal, especificamente em relação ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, pode-se dizer que tal prática se encontra em meio a sérias adversidades.
A primeira delas é freqüentemente lembrada por HUGO DE BRITO MACHADO (16) e diz respeito ao conhecimento da matéria. O profissional atuante neste campo jurídico, deve possuir conhecimentos em duas áreas específicas: direito penal e direito tributário. Nesse aspecto, considerando haver íntima relação entre as duas disciplinas mencionadas, revela-se insuficiente o amplo conhecimento em só uma delas, sob pena de não se conseguir enfrentar o tema com segurança.
A busca pela responsabilidade penal do contribuinte do ISS, por outro lado, nos Municípios brasileiros, ainda é muita tímida, seja em função de ideologias políticas diversas, que, às vezes, não manifestam interesse em deter o contribuinte sonegador, seja em relação à ausência de estrutura das administrações municipais em realizar a força tarefa de combate à sonegação fiscal, que exige ações conjuntas entre os Agentes Fazendários, Ministério Público e Procuradoria Geral dos Municípios.
Os municípios brasileiros têm tido um papel muito importante no desenvolvimento integrado dos locais, protagonizando várias mudanças estruturais na sociedade. Os prefeitos, por sua vez, são pessoas ligadas diretamente aos munícipes, os quais, igualmente, têm ligação muito próxima com a Administração Pública Municipal.
Assim, no que concerne ao primeiro ponto acima enfocado, e em se tratando de municipalidade, o problema surge justamente dessa maior proximidade entre o Administrador Público Municipal e o Cidadão-Contribuinte, cuja relação tem se mostrado resultante de verdadeiras trocas de favores políticos. Esses arranjos, por sua vez, que se estabelecem no seio dos administradores públicos, corporificam os anseios dos agentes públicos em não perderem a simpatia de seu eleitorado no momento do voto, tão sagrado para aqueles que exercem funções públicas eletivas.
Aí está, portanto, a primeira barreira a ser enfrentada, a fim de se reprimir a evasão do ISS: a vontade política dos homens que estão à frente do Estado.
Em relação à estrutura, percebe-se que, diferentemente da União e dos Estados, os Municípios não tem base funcional suficiente para conter as fraudes fiscais, mormente, a título de responsabilidade penal. Os salários não são atrativos. Não há, igualmente, preparação adequada de pessoal. É raro existir nos municípios, a instituição de programas permanentes de combate à sonegação fiscal e à inadimplência, bem como de reaparelhamento da máquina fiscal e a respectiva valorização de todo o seu corpo técnico, que geralmente está composta por pessoas que demonstram resistência ao novo; ou seja, a procedimentos, a instrumentos e metodologias deferentes; agentes públicos, conformados, enfim, com as atividades habituais de seu ofício.
De outra parte, ao candidato que se submete a concurso público do gênero, não é exigido o diploma de bacharel em Direito, necessariamente, ou mesmo o conhecimento da legislação, o que significa dizer, que, muitas vezes, inicia a carreira, sem qualquer noção de direito penal. Geralmente, o profissional dessa área não tem contato com o Órgão Ministerial, desconhecendo, inclusive, as suas reais atividades.
No âmbito municipal, também não é corriqueira a prática na utilização de instrumentos para o cruzamento de dados com as fazendas públicas estaduais e federais, o que, da mesma forma, prejudica a função do agente fazendário municipal, já que esses dados são necessários e imprescindíveis para a localização de indícios de sonegação.
O Ministério Público, em contrapartida, considerando a precariedade do sistema municipal e, considerando a amplitude dos ilícitos penais cometidos na esfera estadual, também acaba ficando inerte ao problema, enquanto os contribuintes do ISS passam os dias regozijando-se da impunidade que os cerca.
Mesmo entre os doutrinadores, que atentam para esta matéria em especial, ou seja, sobre os crimes contra a ordem tributária, o imposto municipal em análise, quase não é mencionado, trazendo os juristas do assunto, geralmente, hipóteses e exemplos a respeito dos impostos federais e estaduais somente. O ISS, na maioria das vezes, é relegado à última categoria, tendo sido tratado, por tributaristas e penalistas brasileiros, efetivamente, como o "patinho feio" do sistema tributário nacional, tanto que se tem uma escassez considerável de escritos a respeito do tema.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores, também, pouco tem se manifestado em questões dessa natureza. Gratia argumentandi, mister salientar que o Superior Tribunal de Justiça (17), não obstante à míngua de julgados nesta matéria, fez, em data bastante recente, a apreciação de um caso específico a respeito de crime contra a ordem tributária no que concerne ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN.
Não obstante ao tratamento deficitário que a matéria vem merecendo em nível municipal, é conveniente ressaltar, que em Blumenau, no Estado de Santa Catarina, após a implantação de várias medidas estruturais com a finalidade de se coibir a evasão fiscal do ISS e um esforço comum entre Procuradoria-Geral do Município, Fazenda Municipal, Fiscais de Tributos e Ministério Público Estadual, iniciou-se um circuito de tarefas conjuntas, as quais estão vindo, efetivamente, ao encontro da repressão dos crimes contra a ordem tributária, especificamente no que tange ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN.
Tais atividades, além de elevar a importância e o respeito pelo ISS, fazem com que o contribuinte do município passe a respeitar com mais seriedade as suas obrigações tributárias, não esquecendo, igualmente, as melhorias que poderão advir a toda a sociedade local, com a recuperação do crédito tributário omitido ou suprimido, pois como enfatiza MÁRCIA AGUIAR AREND (18) "São os tributos que permitem a uniformidade do tecido social e a consolidação da civilização e da cidadania, cujo empreendimento e realização invejamos nos países ditos de primeiro mundo".