Desconstrução no Estado Democrático de Direito.

Os fundamentos da proibição do non liquet e a improcedência liminar do pedido no ordenamento jurídico brasileiro

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16/11/2015 às 13:56
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O presente artigo tem como objetivo demonstrar a inadequação de dispositivos vigentes no ordenamento jurídico brasileiro com o EDD, bem como analisar alguns dispositivos do Projeto de Lei do Novo CPC que também violam os direitos fundamentais.

1. Introdução

Este trabalho pretende examinar a construção e aplicação das decisões jurídicas no âmbito do Estado Democrático de Direito. Para isto, explorará o conceito de Estado Democrático de Direito, instituído no Brasil com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e suas características através da leitura e compreensão do texto constitucional bem como dos ensinamentos de relevantes doutrinadores.

Procurar-se-á demonstrar a teoria do processo apta a reger a construção normativa em congruência com os direitos fundamentais democráticos através de um estudo sobre a Teoria Neoinstitucionalista do Processo entendendo ser esta adequada por permitir uma discursividade, através do exercício da ampla defesa, contraditório e isonomia, que garante a participação dos sujeitos do processo no provimento final, do qual são também destinatários. Brevemente analisará outras teorias do processo, destacando as características que constatam a inadequação das mesmas ao Estado Democrático de Direito por, em suma, não permitirem o efetivo exercício da soberania popular.

Por fim, criticará dispositivos infraconstitucionais – arts. 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lei n. 12.376/2010) e arts. 126, 131 e 285-A do Código de Processo Civil Brasileiro -, incompatíveis com a democracia e apontará criticamente os dispositivos do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, aprovado na Câmara dos Deputados Federais em 26 de março do presente ano, que também não se coadunam paradigmaticamente com o Estado Democrático de Direito.


2.Brasil: Estado Democrático de Direito

Para uma ideal compreensão do presente trabalho faz-se primeiramente necessário o entendimento do que é Estado Democrático de Direito. É tal percepção que possibilitará o entendimento dos futuros pontos que serão abordados neste estudo. Acerca do tema, a Constituição da República Federativa do Brasil assim preceitua:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

[...]

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 2014.)

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 2014.)

No Estado Democrático de Direito parte-se da premissa na qual os destinatários das normas reconheçam-se como seus autores. Trata-se o Estado de uma instância jurídica de produção e aplicação do direito, não sendo produtor do direito; o Estado é instrumento jurídico de atuação das funções públicas institucionalizadas e criadas constitucionalmente pelo povo. Neste sentido, bem ilustra Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias e Rosemiro Pereira Leal, respectivamente:

A teoria do Estado de Direito surgiu em oposição à idéia do que, comumente, de forma aproximada, se traduz por Estado de Polícia (Obrikeitsstaat ou Polizeistaat), também chamado de Estado Iluminista ou de Estado-providência, cujas características gerais eram o predomínio da idéia de soberania centrada no monarca, a extensão do poder soberano no âmbito religioso, assim exercendo autoridade eclesiástica, a assunção pelo Estado, no plano teórico, da promoção do bem estar e da felicidade dos súditos, missão confiada ao soberano, e a configuração do Estado desvinculada do moderno constitucionalismo, [...] (DIAS. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 2010. p. 48)

[...] identificar o “Estado Democrático de Direito” como aquele paradigmatizado e gerado por uma ciência não dogmática do direito como traço teórico-distintivo de outros paradigmas de Estado que seriam “Estados Dogmáticos de Direito”. (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 9)

Confere-se então a imprescidibilidade da participação incessante do povo (legitimado), entendendo-se como povo “a comunidade política do Estado, composta de pessoas livres, dotadas de direitos subjetivos umas em face de outras e perante o próprio Estado, fazendo parte do povo tanto os governados como os governantes” (DIAS, 2010), na elaboração, aplicação e fiscalização das normas; através de um processo visto como “necessária instituição constitucionalizada (conforme se afirmará na teoria neoinstitucionalista do processo) que, pela principiologia constitucional do devido processo que compreende os princípios da reserva legal, da ampla defesa, isonomia, contraditório, converte-se em direito-garantia impostergável e representativo de conquistas teóricas da humanidade no empreendimento secular contra a tirania, como referente constitucional lógico-jurídico, de interferência expansiva e fecunda, na regência axial das estruturas procedimentais nos segmentos da administração, legislação e jurisdição.” (LEAL, 2012). No Estado Democrático de Direito a função do Estado é de operador processual com o intuito de garantir uma ordem jurídica constitucional, de proteção dos direitos processuais, a ser concretizada com base nos princípios da democracia e do discurso por meio do processo legiferante. Assim bem explica Aroldo Plínio Gonçalves:

A instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos. (GONÇALVES. Técnica Processual e Teoria do Processo. 1992. p. 171)

É por entender o Estado Democrático de Direito “como coinstituição jurídica protossignificativa e espácio-instrumental da operacionalidade do direito processualmente constituído.” (LEAL, 2013) que o presente trabalho pretende firmar a Teoria Neoinstitucionalista do processo como teoria geral do direito a ser aplicada no Brasil, pois busca distanciar a idéia de Estado como protetor da sociedade e o juiz como um intérprete expert e ideal do ordenamento jurídico, através da oportunidade de participação de todos no espaço processual garantida pelos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia. De forma complementar, bem elucida Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias:

O Estado Democrático de Direito tem sua dimensão e se estrutura constitucionalmente na legitimidade do domínio político e na legitimação do exercício do poder pelo Estado assentadas unicamente na soberania e na vontade do povo. (DIAS. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 2010. p. 63)

Todo o explanado só faz sentido se concebermos democracia como “um princípio consagrado nos modernos ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder, que tem origem no povo, daí o protótipo constitucional dos Estados Democráticos, ao se declarar que todo o poder emana do povo” (DIAS, 2010) e não caracterizar uma sociedade como democrática porque nesta encontram-se afirmados os direitos de voto, de liberdade de expressão e de ir e vir.


3.Processo e Estado Democrático de Direito

Conforme exposto em tópico anterior, o postulado do Estado Democrático de Direito consiste na participação efetiva dos sujeitos do processo na elaboração do provimento final, do qual serão também destinatários. Para aplicação desse paradigma, necessária é uma teoria do processo que se coadune com tal entendimento de soberania popular, do povo como legitimadores constitucionais ante o exercício dos direitos fundamentais da ampla defesa, contraditório e isonomia. Em consonância com tal entendimento, bem salienta Rosemiro Pereira Leal:

O postulado de Habermas de que a força do direito nas democracias se expressa na circunstancialidade de os destinatários das normas se reconhecerem como seus próprios autores só é acolhível num espaço-jurídico processualizado (em conotações fazzalarianas e neo-institucionalistas) em que as decisões não seriam atos jurisdicionais de algum protetor ou mero provedor dos procedimentos democraticamente constitucionalizados (devido processo legal), mas atos processualmente preparados na estrutura procedimental aberta a todos os sujeitos (partes: pessoas físicas, jurídicas, coletivas; órgãos judiciais; juízes; instituições estatais, Ministério Público e órgãos técnicos) figurativos e operadores dessa instrumentalidade jurídico-discursiva na movimentação efetivadora, correicional e recriativa dos direitos constitucionalizados por uma comunidade que se candidate a se constituir, a cada dia, em sociedade jurídico-política democrática no Estado constitucionalizado. (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002. p. 131)

3.1 Breve análise das teorias do processo

Para melhor compreender a adequação da Teoria Neoinstitucionalista do processo ao Estado Democrático de Direito é preciso ter uma sucinta idéia acerca de algumas outras teorias e suas características. A começar pela Teoria do Processo como Contrato (Século XVIII e XIX), de Porthier, apresenta caráter privatístico, sendo o processo uma espécie de contrato entre os litigantes que espontaneamente compareciam em juízo com um acordo prévio de submissão a decisão do juiz. Posteriormente, veio a Teoria do Processo como Quase Contrato (1850), de Friedrich Carl von Savigny, em que o processo, apesar de semelhante a um contrato, não o era pois tinha força coercitiva de obrigar as partes a comparecerem em juízo e acatarem a decisão proferida.

Em 1868, o alemão Oscar Von Bulow, apresenta a Teoria do Processo como Relação Jurídica, primeira teoria em que o processo aparecia como ciência jurídica autônoma, distinguindo Direito Material e Direito Processual. Bullow, propôs uma teoria do processo em que, para existência do mesmo, imprescindível era o comparecimento de 3 partes, quais sejam, autor, réu e juiz, tratando-se de uma relação intersubjetiva entre as mesmas., dando origem a representação gráfica da relação processual. A teoria linear, de Josef Kohler, entendia o processo como uma relação entre partes, autor e réu, excluindo o juiz; que tinha o papel de observar as regras preestabelecidas pelas partes afim de torná-las eficazes a resolução do conflito. Diferentemente, na teoria triangular, de Adolph Wach, a relação jurídica ocorria entre as partes e entre o juiz e cada uma das partes, sendo uma relação de Direito Privado e outra de Direito Público, respectivamente. Por último, na teoria angular, de Juliu Wilhelm Planck (1887) e Johann Christian Ludwig Hellwig (1903), a relação jurídica processual era exclusivamente entre o juiz e cada uma das partes; todas as atividades processuais eram direcionadas ao juiz e essa intervenção estatal suprimia qualquer ligação entre as partes, inexistindo direitos e obrigações recíprocos entre as mesmas. Importante observação faz André Cordeiro Leal acerca da teoria bulowiana:

O que se tem, assim, em Bullow, é, sob o rótulo de “ciência”, uma proposta técnica de sustentação do decisionismo judicial, ou de uma jurisdição como atividade estatal salvacionista pelo juiz que, a pretexto de permitir operacionalidade, se auto-imuniza da indagação sobre a legitimidade democrática dessa atuação. (LEAL. Instrumentalidade do processo em crise. 2008. p. 134.)

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A Escola Instrumentalista do Processo como Relação Jurídica, teoria dominante até os dias de hoje, buscou uma otimização do processo, acrescendo fins metajurídicos, de valores sociais e políticos, e reduzindo as exigências formais à interpretação das normas afim de alcançar uma suposta efetividade jurisdicional calcada na celeridade na produção de resultados. Para alcançar este fim, a escola instrumentalista caracteriza o juiz (representante do Estado) como um expert que melhor sabe interpretar as normas, pois conheceria e entenderia os sentimentos sociais de justiça e os anseio da sociedade em que atua, escolhendo portanto a decisão que melhor serviria a essa sociedade pois os fundamentos do provimento representariam os desejos e expectativas dessa mesma sociedade. Tal teoria, embora dominante, jamais deveria ser implementada num Estado Democrático de Direito visto que usurpa do povo a autoria das decisões em clara desobediência ao devido processo legal. Criticando o uso dessa teoria, bem se expressa Rosemiro Pereira Leal:

Os juristas do séc. XX, em sua quase unanimidade, máxime os processualistas, até Liebman e os atuais instrumentalistas que colocam o processo como instrumento de uma jurisdição salvadora do direito por uma relação jurídica hierárquica entre juiz, autor e réu, são os mais explícitos herdeiros das engenhosas nuanças teóricas da sacralidade ética da traditio, que trabalha uma razão prescritiva incompatível, como veremos, com o direito democrático. (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002. p. 18)

Lado outro, a Teoria Institucionalista do Processo (1948), de Guasp, entende o processo como uma instituição jurídica, sendo instituição um conjunto de regras interrelacionadas por um conceito comum objetivo a partir do qual originariam-se as sobreditas regras. Em assim sendo, o processo jamais poderia ser extinto, por se trata de uma instituição. Curioso para a compreensão dessa teoria é observar uma das críticas a ela feita acusando-a de servir ao Facismo Mussolianino, isto porque, o conceito de instituição não restou esclarecido sendo adotado pelos seguidores do regime totalitário italiano como meio de usar processo com presteza a serviço do direito, entendido como as finalidade do Chefe militar. Interessante a comparação que Charley Teixeira Chaves faz em sua obra ao citar os dizeres de Jeziel Rodrigues Cruz Junior:

A crítica apostada à teoria de Guasp, a qual justificaria os regimes totalitários, maleáveis segundo a vontade e interesse dominante, se reproduz e “[...] pode ser transportada hoje à doutrina instrumentalista do processo, posto que coloca a jurisdição no centro do processo, buscando sua legitimidade em escopos metajurídicos, volúveis como o éter (líquido incolor, volátil, com cheiro característico e inflamável).” (CRUZ JUNIOR; ROCHA, 2005, p. 129). (CHAVES. Curso: Teoria Geral do Processo. 2014. p. 55)

Em 1978, Elio Fazzalari criou a Teoria do Processo como procedimento em contraditório, o que distingue o processo do procedimento é a existência do “contraditório entre as partes, em simétrica paridade, na preparação do provimento jurisdicional” (LEAL, 2012.). Para esta teoria, inexiste vínculo de sujeição entre as partes, visto que lhes é assegurada harmoniosa participação e, uma suposta posição de vantagem de um sujeito é advinda da norma, efetivando-se através do provimento jurisdicional final. Lado outro, o papel do juiz (representante do Estado) é de autor do ato decisório a ser acatado pelas partes, que, através do contraditório, entendido como igualdade de oportunidade no procedimento, participam da preparação do provimento, característica que mais distingue esta teoria da escola da relação jurídica. Em consonância com tal explanação, os comentários de Aroldo Plínio Gonçalves:

Perante o contraditório, não se pode falar em relação de sujeição ou de subordinação; as partes se sujeitam ao provimento, ao ato final do processo, de cuja preparação participaram, e não ao juiz. (GONÇALVES. Técnica Processual e Teoria do Processo. 1992. p.193)

A Teoria Constitucionalista do Processo (1979), de Couture, Baracho, Andolina, dentre outros doutrinadores, entende a Constituição como fundamento de todo ordenamento jurídico, desta forma, o processo estaria garantido na mesma como “instrumento da jurisdição constitucional e esta como atividade judicatória dos juízes em face dos conteúdos da lei constitucional” (LEAL, 2012). Três importantes características do modelo constitucional do processo civil na Itália auxiliam na compreensão de tal teoria: a expansividade, correspondente a soberania da Constituição e a expansividade de sua vinculação a todas as normas infraconstitucionais; a variabilidade, que possibilita a mutação do processo, desde que não se afaste dos preceitos constitucionais, afim de atender a necessidade do Direito protegido; e a perfectibilidade, que diz respeito ao ajuste de todo o ordenamento jurídico à Constituição. Em crítica a esta teoria, merecem destaque as palavras de Rosemiro Pereira Leal:

A Teoria Constitucionalista do Processo pode servir os paradigmas do Estado de Direito (Liberal) e do Estado Social, porque o “modelo constitucional” do processo ainda se vincula às concepções de Bullow e Dinamarco que entendem o processo como instrumento da jurisdição dos juízes orientada por uma hermenêutica de bases axiologizantes a serem preservadas ou resgatadas pela consciência do julgador. (LEAL. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 2012. p. 270)

3.2 Teoria Neoinstitucionalista do Processo

Esta teoria, de autoria do ilustre Rosemiro Pereira Leal, entende o processo como instituição constitucionalizada do Estado Democrático de Direito, fundamentada na teoria do discurso democrático, por meio da qual tal instituição possibilita a construção da estrutura do procedimento, estabelecendo os direitos fundamentais – contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e à gratuidade judicial – como principiologia jurídica regente da procedimentalidade democrática. Nas palavras de seu autor, o Estado Democrático de Direito é uma “instituição constitucionalizada e juridicamente delimitadora de um espaço condicionante discursivo (status) de validação e eficacização decisória a ser mantido pelo DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL como referente lógico-jurídico de fiscalização irrestrita, popular e incessante, de execução dos direitos fundamentais (juízos discursivo-normativos analíticos: direitos indivisíveis) positivamente pré-articulados e já decididos pela comunidade jurídica.” (LEAL, 2002.). Para melhor compreensão, necessário saber que Rosemiro Leal revisita o significado de instituição entendendo-o como

[...] conjunto de princípios e (institutos) jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional com a denominação jurídica de devido processo, cuja característica é assegurar, pelos institutos do contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infraconstitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal) como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados. (LEAL. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 2002. p. 89)

[...] porque instituir, na procedimentalidade democrática, é um decidir advindo de uma teoria processual de abertura ampla, isonômica e discursiva na formação da opinião e da vontade como fonte jurídica legitimadora do exercício da normatividade daí resultante. (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002. p. 189)

Destrinchando esse significado apresentado por Rosemiro Pereira Leal, é possível uma perfeita compreensão do processo em sua Teoria Neoinstitucionalista e, consequemente, concluirá-se de sua adequação ao Brasil, Estado Democrático de Direito. Primeiramente, é de grande importância compreender que, nesta teoria, o autor remete a uma concepção de “principiologia do processo” na qual os direitos fundamentais acima citados – ampla defesa, contraditório e isonomia -, são correspondentes, respectivamente, aos direitos à liberdade, à vida e a igualdade-dignidade.

Conforme tal concepção, isonomia corresponde ao direito à liberdade-dignidade entendido como direito igual de interpretação normativa, afastando-se de um direito que guardasse relações com a formação metafísico-cultural do homem, descontruindo-se a “presunçosa autocracia (tirania) de “eus” solipsistas, inatos e pressupostamente contextualizados em seus absolutos e estratégicos saberes deontológicos e corretivos na justificação e aplicação do Direito.” (LEAL, 2013.) como proposto por outras teorias (v.g., Processo como Relação Jurídica e Escola Instrumentalista do Processo). O autor então conjectura o exercício de uma “hermenêutica-isomênica” que possibilitaria a todos o exercício da isonomia através de determinações semiológicas que vinculassem os argumentos normativos, relacionados à direitos fundamentais, nos níveis instituintes e constituintes do ordenamento jurídico por meio da subdivisão de isonomia em seus conteúdos isegóricos (conteúdos processuais dialógicos) da isotopia, igualdade de todos perante a lei; isomenia, igualdade de todos de interpretar a lei e isocrítica, igualdade de todos de fazer, alterar ou substituir a lei.

O contraditório, como componente de uma estrutura jurídica, princípio instituto do processo, encontra-se assentado na isonomia e, afim de estabelecer a igualdade de todos perante a lei ante a prática da “hermenêutica-isonômica” pelo discurso argumentativo dos sujeitos do processo, deve primeiro, possibilitar a capacitação técnica e científica de tais sujeitos para que exista, efetivamente, a simétrica paridade entre eles. Senão veja-se da definição de contraditório nas sábias palavras de Aroldo Plínio Gonçalves:

O contraditório não é o “dizer” e o “contradizer” sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível.

O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei.

É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo. (GONÇALVES. Técnica Processual e Teoria do Processo. 1992. p.127)

A idéia de ampla defesa deve ser extraída a partir da compreensão de “igualdade de oportunidade” acima citada, ao possibilitar uma igualdade de entendimento e debate dos conteúdos da norma no espaço procedimental. Todavia, conforme adverte Rosemiro Pereira Leal, para que exista essa “igualdade de oportunidade” é necessário conhecimento científico acerca do conteúdo a ser debatido bem como acesso a jurisdição, por isso ressalta a imprescindibilidade do advogado e do livre acesso à jurisdicionalidade. Esse acesso a jurisdição, a partir da compreensão acima destacada de isonomia, deve ser entendido como acesso à atuação dos conteúdos da lei e não pela atuação pessoal dos juízos, visto que a função jurisdicional “somente se concretiza por meio de processo instaurado e desenvolvido em forma obediente aos princípios e regras constitucionais [...]” (DIAS, 2010.), sendo o dever de dizer o que foi estabelecido pela norma e não criar a norma conforme o caso concreto; função a ser exercida pelo Estado, cabendo ao juiz tão somente aplicar a lei. Lado outro, o direito ao advogado faz-se mister para controle da jurisdição por meio da atuação do mesmo vez que, como bem dispõe a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, é indispensável a administração da justiça, devendo-se conceber justiça como atividade jurisdicional. Confira-se do texto constitucional:

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 2014.)

Nas teorias anteriormente apresentadas, apesar de mudança na nomenclatura, havia nítida concordância com a teoria do processo como relação jurídica, afirmando ser a jurisdição ora atividade do Estado para demonstrar seu poder, ora a atividade do juiz. Nenhuma das teorias anteriores a Teoria Neoinstitucionalista do processo, afastaram a idéia de “poder” do juiz e do Estado nas relações processuais, permitindo uma interpretação pelos mesmos de todo o ordenamento jurídico, inclusive no que diz respeito às normas de direitos fundamentais processualmente criados e assegurados; remetendo-se a uma idéia de Estado Liberal ou Social, fundados na concepção iluminista, idéia esta incompatível com o Estado Democrático de Direito que determina sua base legitimante na soberania popular, como demonstrado em tópicos anteriores. São de extrema relevância as observações feitas pelo autor em sua recente obra:

Essa aquisição simbólico-autoritária aduzida por consciências ainda iluministas ou crédulas numa ordem de fundamentos primeiros e últimos de racionalidade natural ou advinda da natureza humana ainda impede o projeto de o homem instalar um pacto processualizado (devido processo) que produza signos jurídicos de argüição do absolutismo dos significados normatizantes desde sua concepção à atuação e aplicação.

Assim, à medida que se ponham direitos fundamentais de liberdade, vida e dignidade, como direitos humanos por uma garantia que não seja a de um direito prévio constitucionalizado ao exercício irrestrito e incessante de compreensibilidade e de atuação de pressupostos lingüísticos (devido processo) que criasse, recriasse e testificassem tais direitos fundamentais (processo jurídico-procedimental), consolida-se um esquecimento mitologizado das rotas de formação de sentido construtivas dos saberes e direitos ao longo da interação humana. (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 74)

Conforme Rosemiro Leal, os direitos fundamentais de liberdade, vida e dignidade – remetendo a correlação feita anteriormente, com ampla defesa, contraditório e isonomia, respectivamente – são direitos previamente constitucionalizados dotados de certeza e liquidez vez que foram produzidos de forma processualmente legítima (através do exercício da soberania popular, pelo devido processo por meio de sua base discursiva); sendo portanto desnecessária, para sua aplicação, qualquer tipo de judicância cognitiva. São normas de aplicação imediata, insuscetíveis de novas reconfigurações provimentais. Isto porque, para o autor, no Estado Democrático de Direito, “o devido da norma é posto no devir de seus enunciados criativos (principiologia do processo) como direitos fundamentais de conjectura e refutação sobre as causas, efeitos e riscos, dos atos a serem juridicamente criados quanto à preservação continuada da discursividade jurídico-processual de vida, liberdade e dignidade humanas.(LEAL, 2013.). A autoexecutividade e infungibilidade que são conferidas ao devido processo – através da discursividade constituinte como direito fundante da oportunidade de fiscalização do sistema constitucional -, é que conferem coercitividade e legitimidade aos direitos fundamentais segurados

É justamente nesta construção do processo e, conseqüentemente, do provimento final, a partir da participação das partes que, através do discurso, exporiam seus argumentos e idéias afim de propiciarem a escolha do melhor deles para a aplicação do texto normativo, enxergando-se assim como autores do mesmo; que a Teoria Neoinstitucionalista do processo mostra-se adequada ao Estado Democrático de Direito e demonstra, simultaneamente, a inadequação das teorias que em tópico anterior foram apresentadas. O modelo de processo proposto pela Teoria Neoinstitucionalista liga o processo à própria legitimidade das decisões judiciais do Estado Democrático de Direito pois, se não observados seus institutos, as mesmas seriam nulas já que não advindas da participação do povo em sua elaboração e fiscalização. Neste sentido, importante salientar as palavras de seu autor:

Torna-se óbvio que, nesse horizonte de cogitações, as teorias do processo como contrato (Porthier) e quase-contrato (Savigny), como relação jurídica (Bullow, 1868), como situação jurídica (Godschmidt, 1910), como instituição de cunho histórico-sociológico (Guasp, 1950), como procedimento em contraditório não democraticamente constitucionalizado (Fazzalari, 1975), como modelo constitucional e garantido por uma Assembléia de Especialistas em Parlamentos ou Tribunais (Andolina, 1980) e outras teorias similares não atendem a implementação da teoria habermaseana do discurso democrático que visaria a institucionalizar o princípio do discurso para sua estabilização em princípio jurídico da democracia que, a seu turno, iria garantir a revisibilidade processual incessante do direito do Estado democrático constitucionalmente criado. (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002. p. 168)

Do exposto, percebe-se que a intenção do autor, ao criar a Teoria Neoinstitucionalista, foi afastar a sistemática jurídica da dogmática analítica que, infelizmente, cerca o exercício do direito em todos os seus âmbitos, desde a construção da norma, até sua aplicação, buscando construir uma teoria do processo que possibilitasse o asseguramento dos direitos fundamentais do contraditório, ampla defesa e isonomia através da construção normativa por linhas argumentativas, propondo uma teoria discursiva da democracia, em congruência com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Nestes termos esclarece o autor:

Nessas vertentes, dogmaticamente aclamadas pelos doutrinadores a serviço dos julgadores, legisladores e administradores públicos e privados, não me restou senão correr o risco proibitivo de me defrontar com a convicção fatalista do positivista que categoricamente afirma que “nenhuma lei regula sua própria aplicação”, necessitando, portanto, do talento da autoridade dotada de saberes especiais (experts) em sua recôndita sensibilidade para dizer que é a “vontade concreta da lei”, para aqui lembrarmos Chiovenda – o gigante da Ciência Dogmática do Direito Processual do século XX. (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 8)

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Artigo elaborado no curso de pós-graduação em Direito Processual.

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