Danos ambientais decorrentes de loteamentos clandestinos: questões controversas acerca da responsabilização municipal e da restauração de áreas com ocupação consolidada

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09/12/2015 às 17:05
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Neste artigo, discute-se a responsabilidade municipal por danos decorrentes de loteamentos clandestinos e a (im)possibilidade de restauração ambiental quando já há consolidação habitacional e econômica do local.

 

RESUMO

 

Neste artigo, demonstra-se que a ocorrência de danos ambientais por realização de loteamentos clandestinos deve ser frontalmente combatida pelos entes municipais, que têm o dever de evitá-los e respondem solidariamente aos causadores diretos dos danos: isso pela conciliação de diversos fatores, sobretudo o poder-dever de regularizar loteamentos impróprios e a ilicitude do ato (comissivo ou omissivo) de esquivar-se do dever de afastar a consolidação de prejuízos à devida infraestrutura urbana. Por outro lado, apresentam-se razões pelas quais, acaso a ocupação de um local clandestinamente loteado se consolide habitacional e economicamente, deve prevalecer o interesse de restauração e de proteção ambiental, notadamente pela aplicação do princípio da supremacia do interesse público e tendo em vista a ilegal consequência assumida pelos adquirentes de lotes irregulares. Para chegar a essas constatações, são apresentados argumentos favoráveis e contrários às respostas propostas, com análise das problemáticas consoante a legislação, as acepções oriundas da doutrina e o entendimento jurisprudencial brasileiro, mormente o que emana do Superior Tribunal de Justiça, traçando-se críticas a cada argumento formulado ou identificado.

 

Palavras-chave: dano ambiental; loteamento clandestino; responsabilidade civil do município; restauração do meio ambiente degradado.


 

INTRODUÇÃO

 

Os loteamentos clandestinos são uma problemática constante no âmbito dos municípios brasileiros, sobretudo quando a sua prática resulta em danos ambientais, o que traz diversos questionamentos acerca da responsabilização municipal e da restauração de áreas degradadas que já estejam consistentemente ocupadas.

Nesse cenário, faz-se importante, apenas para bem situar os conceitos ligados a essa temática, tecer alguns comentários para a caracterização dos seguintes termos: (i) loteamento, (ii) loteamento irregular e (iii) loteamento clandestino.

Loteamento, em linhas gerais, é a divisão de uma área de terra em lotes menores, destinados a edificação. Nos termos da Lei n.º 6.677/1979, que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano, assim é conceituado o loteamento, no § 1º do art. 2º: “Considera-se loteamento a subdivisão de gleba em lotes destinados a edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes.”

Para facilitar o entendimento, o legislador também conceituou expressamente o termo “lote”, no § 3º da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, incluído pela Lei n.º 9.785/1999, in verbis: “Considera-se lote o terreno servido de infra-estrutura básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal para a zona em que se situe.”

Outrossim, a Lei n.º 9.785/1999 acrescentou à Lei de Parcelamento do Solo Urbano a delimitação do que é a “infraestrutura básica” mencionada pelo dispositivo anteriormente citado, veja-se: Art. 2º, § 5º: “A infra-estrutura básica dos parcelamentos é constituída pelos equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, esgotamento sanitário, abastecimento de água potável, energia elétrica pública e domiciliar e vias de circulação.

Por sua vez, considera-se loteamento irregular aquele que, embora tenha algum registro, não atende a todos os preceitos legais, como, por exemplo, a falta de aprovação do projeto de loteamento[1] ou o desatendimento a outras determinações da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (verbi gratia, a realização de obras de infraestrutura ou o registro no cartório de imóveis[2]).

Por último, o loteamento clandestino é o loteamento realizado às escuras, sem qualquer informação a órgãos públicos e em completo desrespeito a normas urbanísticas. Nas palavras dos integrantes da Gerência de Regularização de Loteamentos da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre[3], pode-se conceituar o loteamento clandestino como “aquele realizado sem nenhum tipo de projeto ou intervenção pública, ou seja, nenhuma norma é respeitada”.

Dentro dessa tônica, partindo-se da análise de danos ambientais decorrentes de loteamentos clandestinos, serão discutidas algumas questões controversas acerca da responsabilização de municípios e da restauração de áreas danificadas.

Especificamente, dois problemas jurídicos atuais serão detalhadamente debatidos, os quais constituem os capítulos deste trabalho e são abaixo delimitados:

(i) primeiramente, tratar-se-á da (im)possibilidade de responsabilização civil ambiental de municípios por danos decorrentes de loteamentos clandestinos;

(ii) em seguida, analisar-se-á a (ir)reversibilidade de danos ambientais (possibilidade de restauração de áreas danificadas) causados por loteamentos clandestinos quando se consolidam situações geradas por esse fenômeno, como, por exemplo, a instauração de famílias e o surgimento de um comércio.

Para ambas as questões delineadas, serão apresentados argumentos favoráveis e contrários às respostas propostas, com análise das problemáticas consoante a legislação, as acepções oriundas da doutrina e o entendimento jurisprudencial brasileiro, notadamente o que emana do Superior Tribunal de Justiça, traçando-se críticas a cada argumento formulado ou identificado.

Passa-se, assim, à análise detalhada do que se apontou serem questões atualmente controversas acerca da responsabilidade ambiental de municípios da restauração de áreas degradadas pela prática do loteamento clandestino.

 

1. RESPONSABILIDADE MUNICIPAL POR DANOS AMBIENTAIS DECORRENTES DE LOTEAMENTOS CLANDESTINOS

 

Na introdução deste trabalho, conceituou-se como clandestino o loteamento que é realizado em desrespeito a normas urbanísticas, sem nenhum tipo de projeto ou intervenção pública. Nesse contexto, passa-se ao primeiro questionamento vislumbrado: seria possível responsabilizar um ente municipal por danos ambientais decorrentes de loteamento realizado de forma clandestina em seu território? Aqui, demonstrar-se-á a necessidade de responsabilização municipal.

Alcança-se essa resposta, precipuamente, por ser o município o responsável por proceder aos loteamentos de sua área conforme as exigências legais: em outras palavras, se não impede a consumação de um dano ambiental, o município deve ser solidariamente responsabilizado, sobretudo pela aplicação do art. 30, inciso VIII, da Constituição Federal, além das diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente. Ademais, os municípios têm o poder-dever de regularizar loteamentos impróprios e não podem esquivar-se do dever de afastar a consolidação de prejuízos à devida infraestrutura urbana, o que decorre da leitura do art. 40 da Lei n.º 6.766/1979 em consonância com o Estatuto da Cidade.

Por outro lado, serão demonstrados, como argumentos contrários à resposta proposta, (i) a aplicação dos princípios da razoabilidade e da reserva do possível, que poderiam revelar a impossibilidade de que o ente municipal fiscalize, de modo eficaz, toda e qualquer forma de clandestinidade, e (ii) a culpa restrita aos particulares que promoveram o loteamento irregular, não havendo nexo causal ou culpa relativamente à atuação do município.

Assim sumariados os argumentos, passa-se à devida fundamentação da resposta alcançada, isto é, à justificação do entendimento de que os entes municipais devem ser responsabilizados por danos ambientais oriundos de loteamentos clandestinos.

Primeiramente, não se pode deixar de citar, dentre as competências municipais, a que está insculpida no inciso VIII do art. 30 do texto constitucional, ipsis litteris:

 

Art. 30. Compete aos Municípios:

(...)

VIII – promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano.

 

Decorre da leitura desse dispositivo o entendimento de que é de responsabilidade municipal a adequação dos loteamentos de suas áreas às exigências legais. Em outras palavras, se os municípios devem promover um adequado ordenamento territorial, “mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”, devem, também, evitar lesões aos padrões de desenvolvimento urbano.

Nesse cenário, vale pontuar que, por essa competência ter relação direta com o direito urbanístico, os municípios sujeitam-se, necessariamente, a normas federais e estaduais, pela aplicação do art. 24, inciso I, da Constituição Federal, abaixo transcrito:

 

Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico.

 

Assim, a União e os estados da federação editam normas gerais que, aplicadas como diretrizes, permitem o exercício da autonomia municipal constitucionalmente prevista.[4] Dessa maneira é que se inserem as políticas municipais de desenvolvimento urbano, que, consoante o art. 182 da Constituição Federal, “têm por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”.

Dito isso, tem-se que, dentro do que é federal e estadualmente estabelecido, o município tem autonomia; porém, deve atender às exigências postas pela lei, notadamente a Lei de Parcelamento do Solo Urbano, que trata das diretrizes e exigências mínimas para loteamento das áreas municipais — igualmente, dentro daquilo que o próprio município estabelecer, também advém dele o dever de fiscalização dos padrões urbanísticos.

Nessa senda, é necessário lembrar do artigo 40 da Lei n.º 6.766/1979, que assim dispõe:

 

Art. 40. A Prefeitura Municipal, ou o Distrito Federal quando for o caso, se desatendida pelo loteador a notificação, poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença, para evitar lesão aos seus padrões de desenvolvimento urbano e na defesa dos direitos dos adquirentes de lotes.

 

Muito já se discutiu acerca do termo acima grifado (“poderá regularizar”), se consistiria em discricionariedade (faculdade) do município ou em poder-dever de atuação. Quanto a isso, o Superior Tribunal de Justiça já firmou posicionamento uníssono pela segunda opção (poder-dever de atuação), in verbis:

 

O art. 40 da Lei 6.766/79, ao estabelecer que o município ‘poderá regularizar loteamento ou desmembramento não autorizado ou executado sem observância das determinações do ato administrativo de licença’, fixa, na verdade, um poder-dever, ou seja, um atuar vinculado da Municipalidade.[5]

 

Não se pode deixar de dizer, todavia, que esse “poder-dever” não se refere a, necessariamente, regularizar todo e qualquer loteamento particular feito em área municipal. Isso porque a norma insculpida no art. 40 da Lei de Parcelamento do Solo Urbano não pode representar um mecanismo desarmonizador de políticas públicas municipais.[6]

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Em outras palavras, o dever municipal não deve ser entendido, unicamente, como de necessária regularização de situações irregularmente (ou clandestinamente) configuradas, mas, também, como de remoção daqueles que se alojaram em local impróprio.[7] Isso, a propósito, é reforçado pelo § 5º do artigo 40 da Lei de Parcelamento do Solo Urbano, segundo o qual “[a] regularização de um parcelamento pela Prefeitura Municipal, ou Distrito Federal, quando for o caso, não poderá contrariar o disposto nos arts. 3º e 4º desta Lei, ressalvado o disposto no § 1o desse último”: as disposições dos arts. 3º e 4º tratam, exatamente, dos requisitos mínimos para a realização e loteamentos e da necessária atenção à legislação urbanística local.[8]

Todos esses dispositivos já citados devem ser lidos, também, em concordância com o Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001), que, no art. 2º, traz, dentre outros comandos, os seguintes, que reforçam a importância da atuação municipal voltada à garantia do direito a cidades sustentáveis e a adequação do parcelamento do solo com a infraestrutura urbana:

 

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

(...)

VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

(...)

c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana.

 

Da análise de todos os dispositivos transcritos, da Constituição Federal, da Lei de Parcelamento do Solo Urbano e do Estatuto da Cidade, observa-se, categoricamente, o dever municipal de fiscalizar a ocorrência de danos em suas áreas urbanas, aí incluídos os danos ambientais decorrentes de loteamento clandestino.

Ora, se o município tem o dever expresso, na Constituição e em diferentes leis, de promover adequado ordenamento territorial, regularizar loteamentos ou remover ilicitudes relativas ao parcelamento do solo e desenvolver uma política urbana que harmonize a infraestrutura local e a garantia do direito à cidade sustentável, resta claro que a ocorrência de um dano ambiental em seu território implica responsabilização solidária do município com aqueles que procederam diretamente ao dano.

Tudo isso vai ao encontro de outros dispositivos da Constituição Federal, quais sejam, o art. 225, que impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente, para as presentes e futuras gerações, e o art. 23, inciso VI, que estabelece como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas”.

Igualmente, na Lei n.º 6.938/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, encontra-se perfeitamente a responsabilização objetiva do poluidor, assim considerado “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental” (art. 3º, IV, da mesma Lei). Isso porque o § 1º de seu art. 14 expressamente prevê que:

 

Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

 

Não é demais ressaltar, também, o § 6º do art. 37 da Constituição Federal, que consagra a responsabilidade civil do Poder Público ao prever que “[a]s pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Assim sendo, seja por aplicação da responsabilidade objetiva, seja por omissão ilícita e inconstitucional do município[9], que, inerte com relação a todos os seus deveres de proteção e fiscalização, permitiu o evento danoso que resultou em ofensa ao interesse público de preservação ambiental, impõe-se a responsabilização solidária do ente municipal.

Ademais, há que se lembrar que a limitação da responsabilização àqueles que diretamente promoveram os loteamentos clandestinos reduz consideravelmente a possibilidade de restauração ou compensação dos danos, tendo em vista o elevado custo de se reparar danos de natureza ambiental.

Noutra vertente argumentativa — em posição contrária à responsabilização municipal solidária —, pode-se cogitar a aplicação dos princípios da razoabilidade e da reserva do possível para o instituto da responsabilidade civil. Tal entendimento teria justificativa na impossibilidade de o ente municipal evitar todo e qualquer dano ambiental decorrente de loteamentos clandestinos, exatamente por sua ocorrência “às escuras”. Ditou de outra maneira, argumenta-se que exigir fiscalização absolutamente eficaz dos municípios seria como exigir que o Estado impeça todo e qualquer crime.

Cogita-se, também, a ausência de culpa e de nexo causal relativamente aos atos do município: só poderiam ser responsabilizados aqueles que realizaram, de forma direta, as ocupações irregulares e causaram danos ao meio ambiente.

Esses dois argumentos contrários, todavia, não merecem prosperar. É que, como visto, a responsabilização do Poder Público por danos ambientais é objetiva; e, ainda que se entenda que a responsabilidade seja subjetiva, por se discutir a omissão do ente municipal, percebe-se que, por todos os deveres a ele impostos, a inércia omissiva caracteriza a culpa do município.[10] Quanto ao nexo causal, os deveres de fiscalização, plenamente plausíveis em âmbito municipal — observa-se, nesta temática, que aplicar a reserva do possível seria uma banalização do princípio[11] —, também deixam clara a sua configuração: por não cumprir com sua competência de fiscalizar, regulamentar, equacionar e impedir a implantação do loteamento clandestino, há completa relação entre a ação (ou omissão) do município e a degradação ambiental.

Para exemplificar a discussão aqui travada, convém citar o julgamento do REsp 1.113.789/SP[12] pelo Superior Tribunal de Justiça, cujo acórdão foi bastante didático. In casu, o Ministério Público do Estado de São Paulo instaurou ação civil pública em face do Município de São Paulo, de alguns gestores municipais e de loteadores que agiram clandestinamente. Em primeira instância, o município foi excluído do polo passivo da lide, ao argumento de que seria impossível responsabilizá-lo por ausência de fiscalização completa e eficaz. No Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a sentença foi mantida, asseverando-se que:

 

(...) não foi o Município que deu azo aos danos ambientais, mas sim todos aqueles que de forma direta promoveram o desmatamento, ou dele se aproveitaram para auferir lucro, ou para, a pretexto de 'exercer o direito de moradia', dilapidaram o patrimônio natural. A responsabilidade por danos causados por loteamento clandestino é do loteador e dos compradores dos lotes ilegais e não do Município, sendo isento o Administrador que agiu dentro dos limites da lei. Por isso, no caso concreto, não se vislumbra a responsabilidade do Município ou do Administrador Regional na forma como requerida. (fls. 2.283-2.284 dos autos; grifos daqui)

 

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, reformou a decisão, entendendo pela responsabilização do ente público, ao fundamento de que o município, se não impediu a consumação do dano ambiental e o prejuízo ao erário, deve ser responsabilizado em conjunto àqueles que promoveram o malsinado loteamento, sendo, assim, parte legítima para figurar no polo passivo da ação civil pública.

Na linha do que se demonstrou neste tópico, a Corte Superior asseverou que o art. 40 da lei estabelece um poder-dever do ente municipal, que deve ser lido em consonância com o art. 30, VIII, da Constituição Federal, com vistas ao adequado ordenamento territorial e aos padrões locais de desenvolvimento urbano. Assim, é plenamente possível ao Poder Judiciário compelir o município a regularizar o loteamento ou, como demonstrado, remover ocupantes de local ambientalmente degradado para preservar a infraestrutura urbana.[13]

Assim, demonstrada a necessidade de responsabilização solidária do ente municipal por danos ambientais decorrentes de loteamentos clandestinos, passa-se à análise de outro problema jurídico, relativo à restauração de áreas degradadas.

 

2. DA RESTAURAÇÃO DE ÁREAS DEGRADADAS: ENTRE O INTERESSE PÚBLICO DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E A CONSOLIDAÇÃO HABITACIONAL E ECONÔMICA DA OCUPAÇÃO DE LOCAIS CLANDESTINAMENTE LOTEADOS

 

Bem examinada a responsabilidade ambiental dos entes municipais, resta outro ponto bastante controverso acerca do supracitado contexto de prática de loteamentos clandestinos: acaso a ocupação de um local clandestinamente loteado se consolide habitacional e economicamente, deve prevalecer o interesse público de preservação ambiental, recompondo-se a área degradada, ou essa tutela específica resta impossibilitada?

Propõe-se, aqui, a resposta de que a reparação e a preservação ambiental devem prevalecer, em razão da supremacia do interesse público e por ter-se em vista a ilegal consequência assumida pelos adquirentes de lotes irregulares. Isso porque esses fatores predominam sobre escassas argumentações contrárias no sentido de que a tutela convertida em pecúnia seria mais razoável e de que não se poderia remover adquirentes de boa-fé.

Deveras, como primeiro argumento favorável à resposta proposta, há que se levar em consideração a supremacia do interesse público, que, em tais casos, é retratada, primordialmente, na proteção ambiental, o que repercute em toda a sociedade, nas gerações presentes e futuras (art. 225 da Constituição Federal).

Ademais, não se pode esquecer que a consolidação habitacional e econômica da ocupação, quando ocorrida, parte, inevitavelmente, de bases ilegais. Isso porque, se o loteamento foi realizado de forma imprópria, os seus adquirentes e aqueles que disso se aproveitaram assumiram uma consequência ilegal, submetendo-se, portanto, a eventual ação de remoção.

Contrariamente, cogita-se que alguns adquirentes de lotes eivados de irregularidades agiram de boa-fé e, ainda, que, consolidadas as ocupações, a tutela de reparação da degradação ambiental pode ser convertida em pecúnia, o que seria favorável perante esse balanceamento de interesses.

Ocorre, todavia, que esses fundamentos contrários, em primeiro lugar, ignoram a publicidade dos atos de registro de propriedade, o que demonstra que a aquisição de tais lotes ocorre de maneira, no mínimo, duvidosa. Em segundo lugar, os argumentos opostos à resposta proposta afrontam diretamente o dever constitucional de tutela do meio ambiente, que é consagrado, como visto ao longo deste artigo, no artigo 225 da Constituição. Assim, há que se restaurar áreas degradas, pois esse é o interesse público que se impõe, inobstante a necessidade de, eventualmente, remover habitações consolidadas no local — nesses casos, também é dever municipal, como se sabe, fornecer alguma outra habitação digna a quem se encontra no local, o que não significa, todavia, que o direito à habitação deva prevalecer com sustentáculo em atentados ao meio ambiente.

Por essas razões, também, a tutela específica de reparação deve ser sempre buscada, o que decorre até mesmo da legislação processual civil, que, no artigo 461, expressamente prevê que, na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica, dispondo-se no § 1º desse dispositivo que “[a] obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente”.

A esse respeito, faz-se oportuno citar dois acórdãos do Superior Tribunal de Justiça que, relativos a danos ambientais causados em um mesmo local, tiveram conclusões diferentes. São eles os Recursos Especiais 332.772/SP[14] e 403.190/SP[15] e, inobstante serem datados de 2006, podem elucidar muito bem o conflito de interesses ora apresentado. Ambos os processos (ações civis públicas) foram ajuizados pelo Ministério Público do Estado de São Paulo e tiveram o Município de São Bernardo do Campo no polo passivo, visando à sua responsabilização pela realização de construções, decorrentes de loteamento clandestino, em local próximo à Represa Billings, no Estado de São Paulo, o que comprometeu a mata atlântica e afetou os recursos hídricos locais.

No primeiro (REsp n.º 332.772), o magistrado sentenciante entendeu que a tutela específica pretendida pelo Ministério Público restou impossibilitada pela consolidação da ocupação do local, determinando-se, apenas “no que era possível”[16], a substituição de matérias impermeáveis por outras permeáveis (tais como camadas asfálticas por paralelepípedos e calçamentos por gramas). A decisão foi mantida no Tribunal de Justiça e na Corte Superior.

No REsp n.º 403.190, o juízo de origem julgou totalmente improcedente na o pleito ministerial, ao fundamento de que a tutela específica não era mais possível em face da consolidação da ocupação do local, o que inviabilizaria o retorno ao status quo ante. Em segunda instância, por sua vez — e, pelo que se viu acima, de forma mais escorreita —, houve condenação à restauração da área, com completa recomposição da superfície do terreno, recobrimento do solo com vegetação, desassoreamento dos córregos e demais providências que seriam indicadas em laudo técnico.

No Superior Tribunal de Justiça, manteve-se a decisão da instância recorrida, demonstrando-se expressamente a prevalência do interesse público de preservação ambiental; veja-se, a propósito, trecho bastante elucidativo do acórdão, que vai ao encontro da tese defendida neste artigo:

 

Não se trata tão somente de restauração de matas em prejuízo de famílias carentes de recursos financeiros, que provavelmente deixaram-se enganar pelos idealizadores de loteamentos irregulares na ânsia de obterem moradias mais dignas, mas de preservação de reservatório de abastecimento urbano, que beneficia um número muito maior de pessoas do que as residentes na área de preservação. No conflito entre o interesse público e o particular há de prevalecer aquele em detrimento deste quando impossível a conciliação de ambos. (Grifos daqui)

 

A Corte determinou, também, que a restauração deveria ser precedida de laudo técnico, para contemplação da “real necessidade de demolições, frente à restauração ambiental pretendida, também associada à possibilidade de legal loteamento da região, mensurada nos autos da ordem de 7.500m², e exploração adequada dentro dessa área”, o que representou uma acertada aplicação da razoabilidade em harmonia com o interesse público de proteção ambiental.

 

3. CONCLUSÃO                                                     

 

A ocorrência de danos ambientais por realização de loteamentos clandestinos deve ser frontalmente combatida pelos entes municipais, que têm o dever de evitá-los e respondem solidariamente aos causadores diretos dos danos. Ademais, devem ser compelidos a atuar na restauração de áreas degradadas. Essas proposições decorrem do enfrentamento de dois específicos problemas jurídicos ao longo dos tópicos anteriores, quais sejam, (i) o tratamento dos caracteres da responsabilização municipal por danos ambientais decorrentes de loteamentos clandestinos e (ii) a possibilidade de reversão do dano ambiental quando se consolidam situações geradas por esse fenômeno, como, por exemplo, a instauração de famílias e o surgimento de um comércio.

Com efeito, viu-se que a responsabilização do município por esses danos ocorre por diversos fatores, merecendo destaque o seu poder-dever de regularizar loteamentos impróprios e a ilicitude do ato (comissivo ou omissivo) de esquivar-se da obrigação de afastar a consolidação de prejuízos à devida infraestrutura urbana.

Demonstrou-se, também, que, acaso a ocupação de um local clandestinamente loteado se consolide habitacional e economicamente, deve prevalecer o interesse de restauração e proteção ambiental, em razão da supremacia do interesse público e tendo em vista a ilegal consequência assumida pelos adquirentes de lotes irregulares.

Com essas constatações, pretendeu-se chamar atenção à força normativa do art. 225 da Constituição Federal, sedimentando-se diretrizes para a responsabilização municipal por danos que, como visto, ocorrem por sua desídia ou ausência de fiscalização (ou, ainda, por violação do Untermassverbot, termo de origem alemã que indica a proibição da insuficiência das medidas públicas). Outrossim, buscou-se contribuir, pelo diagnóstico de casos concretos, com o tema da reparação de áreas degradadas, demonstrando-se que essa tutela específica deve ser sempre buscada, seja por aplicação da legislação processual civil, seja por prevalência dos princípios de proteção ambiental e de tutela do interesse público, de modo a rechaçar habitações e atividades econômicas construídas com sustentáculo em atentados ao meio ambiente.

 

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Sobre o autor
Rodrigo Santos Valle

Advogado, sócio-fundador do Escritório Malta Valle Advogados. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília - UnB (2010-2014). Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP (2015-2017).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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