1. O indivíduo e o acesso ao Judiciário – alcance hermenêutico do preceito constitucional insculpido no art. 5°, XXXV, do Texto Maior
Antes de qualquer distanciamento de cunho crítico, mister a lembrança de que todos pertencemos a determinada história, classe, nação, cultura e tradição. Ao assumir um dos componentes de que nos reportava Ortega Y Gasset acerca do binômio que compõe a peculiaridade da vida humana [1], qual seja, a contextualização ou determinação fática, ou ainda, conforme Ricoeur [2], a essa pertença que nos precede e transporta, reivindicamos, como ponto inaugural para uma abordagem crítica, a inevitabilidade do caráter mediador da ideologia no âmbito jurídico [3].
Podemos afirmar, pois, que há um confronto ideológico entre o operador e a moldura sistemática que abriga o sistema jurídico do qual aquele faz parte, a despeito do manancial intermediário de abstrações e logicismos no interior dos quais se esforça travestir o processo num repositório de prescrições subsuntivas. Decorre daí, portanto, a assertiva de que não existe o pensamento livre de pressupostos, sendo qualquer de suas manifestações, no âmbito do direito, carregada ideologicamente. O interpretação, cabe referir, está inapelavelmente atrelada ao contexto ideológico, seja o de formulação – instância do Poder Constituinte Originário ou Derivado, seja o de hermenêutica – aplicação via inafastabilidade do julgamento.
Assim leciona Jorge Miranda:
"Mas existe, ao mesmo tempo, a noção das dificuldades ou (doutro ângulo) dos factores de perturbação que se deparam aos seus operadores; desde logo, a variedade de normas constitucionais quanto ao objecto e quanto à eficácia (como acaba de se ver) e a incompleição ou a indeterminação de muitas delas, ou da sua linguagem; a proximidade dos factos políticos e (na expressão, que vale a pena aqui repetir, de MORTATI), a ‘rebeldia’ destes perante os quadros puramente lógicos da hermenêutica; a influência ineliminável, senão da ideologia, pelo menos da ‘pré-compreensão’ de cada intérprete, num contexto plural e complexo; os diferentes critérios por que se movem os órgãos políticos, os órgãos administrativos e os órgãos jurisdicionais e as possíveis atitudes dos respectivos titulares; a origem compromissória de não poucas Constituições, marcadas por princípios diferentes, quiçá discrepantes (como a Constituição portuguesa de 1976 ou a brasileira de 1988)." (4)
Disso decorre a premissa de que os textos legais constituem obra aparentemente acabada, porquanto no decorrer do processo de concretização do direito, isto é, do trajeto entre o texto e a norma-para-o-caso, inexiste qualquer procedimento padrão que sustente o mero encaixamento de silogismos entre a norma jurídica e o fato (processo de subsunção). Motivo pelo qual se sustenta que a própria aplicação do direito já carrega consigo o ato de interpretar, para o qual carece o inarredável dever da fundamentação, garantido pela Constituição da República, no art. 93, IX.
Em outros termos, para uma efetiva prestação jurisdicional, nos moldes do que preceitua a garantia prevista no art.5º, inciso XXXV, de nosso Texto Maior, é indispensável que o acesso ao Poder Judiciário contemple bem mais do que singela decisão transitada em julgado. Não que se queira interferir no direito material controvertido em juízo, porém na maneira pela qual o conflito restou solucionado, num princípio dialógico de conformidade, em consonância com a obrigatoriedade da respectiva fundamentação.
A legitimidade democrática do Poder Judiciário, bem como do Ministério Público no uso de suas atribuições constitucionais, está assentada na motivação de seus pronunciamentos, cuja valia dirige-se à comunidade. Nesse sentido, concebendo a interpretação como o processo que outorga vivacidade aos ditames legais, depreende-se do ato hermenêutico um estatuto indireto de garantia fundamental aos cidadãos brasileiros, na esteira do disposto por aquela garantia constitucional. O direito à jurisdição, nesse sentido, transcende a mera entrada nos foros e tribunais, pois atrelado está ao dever dialógico da concretização do caso submetido ao exame judicial.
Em outros termos, referida garantia carrega como pressuposto a filtragem constitucional do intérprete na aplicação do direito, através de cuja atuação possibilita salvaguardar inovador alento e particularidade para as causas submetidas ao juízo de conhecimento. Significa embutir nos processos sob julgamento do Poder Judiciário e intervenção do Ministério Público o dever-poder a uma atuação dialética livre de si(u)mulações vinculantes, assim entendida sob o refreio de duas espécies de limites: a) material, mediante a tutela dos princípios e regras constitucionais, bem como de ordenamentos que lhes sejam afins e b) alentador, tendo em vista a exigência democrática da fundamentação, consoante o art. 93, inciso IX, da Carta Magna.
1.1 Todo ato judicial é um ato de controle de constitucionalidade: regras e princípios
Referida abertura está representada por uma figura simbólica denominada de novelo de constitucionalidade, tendo como eixo a moldura do texto constitucional, com o fito de proporcionar ao redor de si angulações hermenêuticas de diálogo para com o caso submetido ao crivo do Poder Judiciário e da atuação ministerial. Ao cabo de determinada interpretação num caso paradigmático porventura mal enraizado no sistema, tendo em vista, por exemplo, o conteúdo literal incongruente de determinado ordenamento em vigor, há a possibilidade de inovação com sede no controle de constitucionalidade pela interpretação conforme a Constituição.
Tal se dá sob a verificação do ângulo de força desempenhada pela prestação jurisdicional em relação ao índice parametrizado pela comunidade jurídica (espécie de senso comum teórico), retirado dos movimentos de dialeticidade hermenêutica com suporte no eixo constitucional – de cuja demarcação resultará juízos de acomodação ou estranhamento, segundo a carga de preponderância axiológica a qual bem desperta a sua ideologia social [5].
O controle de constitucionalidade sem redundar a modificação textual (sentenças e pareceres interpretativos), desta feita, é entendido como uma categoria inerente ao processo de interpretação, o qual, por sua vez, é intrínseco à acomodação ideológica por conta do sistema lingüístico, assim pressuposta a categoria gadameriana da applicatio [6]. O reconhecimento de que não há método garantidor da melhor interpretação em conteúdo – assertiva inclusive destacada por procedimentalistas como Alexy e Habermas [7], para quem existem caminhos discursivos legitimadores – pressupõe o passo primeiro de que a complexidade dos fatos que concatenam novas formas de litígio merece uma correspondente abertura cognitiva jurisdicional.
A própria concepção distintiva entre regras e princípios, conferindo àquelas uma minúscula margem de deliberação interpretativa, com fundamento no cotejo antinômico eliminatório a partir de dois dispositivos a abstratamente reger determinada matéria (tudo ou nada), enquanto para estes corresponderia um juízo mediador de ponderação em nome do caso concreto, já merece um questionamento pertinente.
Vale dizer, a relação estabelecida entre a regra e fato apenas preliminarmente sujeita o intérprete a um juízo de aplicação direta, mediante o qual limitar-se-ia no desenvolvimento de suas premissas com o condão de justificar a incidência do dispositivo. Nesse sentido, para todos os casos corresponde uma expectativa de subsunção normativa, cujo encaixe final legitima uma fundamentação de ordem explicativa, de natureza mecânica, metaforicamente ilustrada pelo brinquedo lego [8].
Com fundamento em Dworkin, Vera Karam de Chueiri [9], ao diferenciar a justificação por princípios (principles) e políticas (policies), manifesta-se da seguinte maneira: "(...) os juízes estão numa posição diferente da dos legisladores. Suas decisões devem ser fundamentadas por princípios e não por políticas, sob o argumento de que às partes pré-existem direitos e deveres, decorrentes dos precedentes e da legislação, cujo cumprimento lhes cabe obrigar". Nesse diapasão, concordamos com Juarez Freitas, para quem "o juiz (...) exerce poder criativo, devendo lutar, dialética e transdogmaticamente, para superar, no campo da hermenêutica, toda e qualquer subserviência ao Executivo e ao Legislativo" [10], vale dizer, investindo na atividade interpretativa a possibilidade de resgatar os princípios constitucionais, que representam uma escolha (ideológica) de um formato político bastante claro – a democracia de direito.
Contudo, no caso de aplicação de regras o intérprete também pode considerar elementos específicos de cada situação, embora sua pertinência dependa de um ônus de fundamentação capaz de superar os motivos para o cumprimento da regra. Em outros termos, o pressuposto operativo que exige uma certa margem de previsibilidade ao produto da interpretação, de maneira a legitimá-lo com fulcro na simples vinculação aos preceitos legais [11], em respeito a um dos pilares do Estado de Direito – a segurança jurídica – ostenta uma supremacia prima facie, até o momento em que se possa determinar um novo contorno ou perímetro da determinação normativa.
É o que preconiza Humberto Ávila:
"Na hipótese de relação entre regras, mesmo que o aplicador decida que uma das regras é inaplicável ao caso concreto, isso não significa que ela em nada contribui para a decisão. Mesmo deixando de ser aplicada, uma regra pode funcionar como contraponto valorativo para a interpretação da própria regra aplicável, hipótese em que, longe de em nada contribuir para a decisão, a regra não aplicada concorre para a construção – mediante procedimento de aproximação e afastamento – do significado da regra aplicada." (12)
Contrario sensu, não se pode olvidar que mesmo o sentido mais patente do preceito, embora desprezado em homenagem a uma interpretação que melhor repercuta o conflito em concreto, autoriza um desdobramento negativo do princípio da legalidade. A ponderação das razões que manifestam o desvio do entendimento correntemente aceito pela jurisprudência, uma vez justificando serem os elementos constantes da hipótese mero indicador para a decisão a ser tomada, em vez de seu puro fundamento, não destoa da exigência de previsibilidade, porquanto cumpre o dever constitucional da fundamentação com base no próprio ordenamento pátrio, eis que é a partir de alguns de seus dispositivos, e não ex nihilo, que se promove a inovação indispensável para o fato submetido ao juízo de conhecimento [13].
Não obstante a existência de mecanismos legais determinantes da vinculação por meio de precedentes jurisprudenciais (súmulas e jurisprudência dominante), tal qual se afiguram nos art. 38 da Lei 8.030/90 e 557 do Código de Processo Civil, impossível com base neles ultrapassar a própria perspectiva de novos entendimentos. Uma vez presentes certas condições, deve o julgador e o agente ministerial declinar de aplicá-los em virtude da excepcionalidade do fato sub judice, incumbindo-lhes a fundamentação que se o faz distanciar do paradigma ou mesmo da subsunção para si indevida.
1.2 Do controle jurisdicional interpretativo: a constitucionalidade da norma (interpretação) previne a do texto
O ordenamento jurídico brasileiro filia-se à família romano-germânica, ao sistema da civil law, para a qual basta que a decisão esteja de acordo com a lei. Nesse diapasão, o juízo de conformidade legal possui natureza controversa, cujas nuances motivam históricos debates a respeito de ser ela fática ou jurídica [14]. Parece-nos indubitável, contudo, que o Direito brasileiro reconhece no juízo de conhecimento uma dimensão deveras importante, tendo em vista submeter-lhe as conseqüências jurídicas a partir da concretização decisória mercê das possibilidades interpretativas em potencial.
Embasando tal raciocínio o princípio da decisão segundo o livre convencimento do magistrado (art. 131, 1ª parte, do CPC, com norte no dever de fundamentação constitucional – art. 93, inciso IX), poder-dever que se coliga à incumbência de com base nele persuadir racionalmente os destinatários da tutela jurisdicional (art. 131, in fine). Ademais, uma vez submetida ao crivo recursal, poderá calibrar o sistema jurídico até então conformado pela uniformização jurisprudencial. Em última análise, do primeiro grau de jurisdição é defeso subtrair-lhe, por obra de vinculações verticais, a potencialidade de inovar com base no caso concreto e em razão do contorno argumentativo em face dos preceitos legais afins.
A escolha de um sentido normativo que se concilie racional e razoavelmente ao conflito em exame, em detrimento de hipóteses interpretativas usuais, cujo automatismo na aplicação parece não redundar na melhor decisão possível, configura a inevitável decorrência de que sucedem à vontade legislativa fatos e sentidos novos fora dos limites fornecidos naquele horizonte. O que significa estabelecer que a própria interpretação poderá sanar a superveniência de uma decisão inconstitucional, se por ela entendermos a desconformidade posterior entre os fundamentos da decisum tradicional (cuja qualidade jamais lhe autoriza um poder de vinculação de que só a lei dispõe) e o recente paradigma.
Sob outro rótulo lingüístico, uma mudança das relações fáticas pode provocar mudanças na interpretação constitucional, no que se refere à norma produzida pelo intérprete para o caso concreto. Isto ressalta que não há qualquer óbice que impeça juízes e tribunais de aplicarem a interpretação conforme à Constituição, entendida esta como a modalidade instrumental, de estirpe genuinamente hermenêutica [15], que confere ao operador do direito a salvaguarda de um sentido constitucional mais forte do que outros, conquanto possíveis e também constitucionais, para a situação-limite, injustos.
"(...) no controle difuso, o juiz apura a inconstitucionalidade da norma (isto é, cogita do texto + fatos). Já o Supremo Tribunal Federal, na ação direta de inconstitucionalidade, declara a inconstitucionalidade do texto, o artigo da lei ou da medida provisória número tal. Ele apenas interpreta – vale dizer, não aplica o direito. O juiz que faz o controle difuso, no entanto, esse interpreta e aplica o direito; por isso ele decide no âmbito da norma, não do texto." (16)
A questão da vinculação das decisões definitivas do Supremo Tribunal aos juízes e tribunais inferiores implicou, na seara legislativa, a admissão da ação declaratória de constitucionalidade, seja por via direta ou inversa (caráter ambivalente previsto no art. 24 da Lei 9.868/99 [17]), por expresso o teor vinculativo da decisão do Pretório Excelso [18]. Entretanto, ao contrário do juízo aqui expresso, pretendeu-se constituir nela um contra-senso hermenêutico, por via de conferir a determinada compreensão do texto um efeito petrificador, à lei um sentido unívoco [19].
Quando um órgão judicial atribui um determinado sentido a um texto jurídico, apenas está estabelecendo positivamente um de seus sentidos possíveis, porque casos jurídicos diferentes proporcionarão novos saltos de compreensão. Isso explica o motivo pelo qual uma decisão, vale dizer, uma norma construída pelo intérprete no decorrer do processo de concretização do direito, jamais poderá ser reconhecida como vinculante. Como resultado, as normas são transformadas novamente em textos, com a gravidade de essa diabólica conversão retirar-lhes a qualidade paradoxal do múltiplo no uno. Esclarecedora a lição de Streck para o contra-senso hermenêutico:
"Por tudo isso, é insustentável o efeito vinculante de sentidos positivos dados aos textos normativos, porque esse sentido (declaração de constitucionalidade, sentença que rejeita uma ação de inconstitucionalidade, a interpretação conforme e o residual da nulidade parcial sem redução de texto), ao vincular/obrigar o restante do sistema jurídico, provoca o congelamento (entificação do ser) de todos os demais sentidos que exsurgem do processo hermenêutico, impedindo o aparecer da singularidade dos casos. Ora, os casos concretos (como se costuma nominá-los) estão ali como tais; se lhes tira o caráter de significado singular, ocorre uma de-significação, a partir de uma desvivência do mundo, relegando-se-os a um resto, ao abismo do Dasein. (...) é esse caso concreto, vingando o efeito vinculante, que ficará obnubilado pela petrificação de sentido produzido pelo efeito vinculante." [20]
A ampliação da eficácia da decisão judicial, ao ponto de alcançar quem não tenha participado do caso para o qual o direito foi aplicado, acaba por reunir o perverso ecletismo dos sistemas jurídicos da civil e da common law [21]. Uma determinada interpretação (norma) culmina por estender a própria atividade jurisdicional, decorrente de um singular precedente, aos casos semelhantes, como se fosse um texto. Aliás, com força vinculativa bem maior do que o mero texto normativo, pois na interpretação não se revela, como na lei, a paradoxal qualidade de universalidade, consistente em figurá-la como um ponto de partida interpretativo com vistas a ulteriores redefinições (22).
2. A interpretação conforme a Constituição como instituto imanente do sistema jurídico
Objetivamos tornar presente, pois, que a interpretação conforme a Constituição, na espécie do controle difuso ou incidental, representa o fator de oxigenação diacrônica no sistema jurídico, como conseqüência inarredável de uma das garantias fundamentais pétreas que outorga ao caso concreto a potencialidade de fazer uso, mediante necessária fundamentação, de uma nova situação jurídica, sem acarretar modificações no texto legal.
Em realidade, a interpretação conforme à Constituição constitui, nada mais, nada menos, do que a explicitação de uma garantia fundamental resumida no dever de o Estado-juiz, ao proclamar a justiça do caso concreto, nele reconhecer a possibilidade de inaugurações de sentidos provenientes de um mesmo texto de lei. Quiçá seja o fortalecimento do juízo de conhecimento, numa supremacia vertical legitimada, de baixo para cima, em vez do conservadorismo acrítico dos que entendem que "a interpretação correta é aquela que predominantemente emana dos órgãos superiores" [23].
Isso apenas preserva a liberdade do juiz de julgar o caso conforme sua consciência e a ordem jurídica, o que mantém a sua independência e imparcialidade, de forma a evitar o congelamento da jurisprudência, afastar o autoritarismo e conferir relevância ímpar ao princípio da igualdade [24]. Para tal, referido princípio desemboca no próprio valor do precedente que deu azo à uniformização de jurisprudência, como se constituído de supremacia ontológica em relação aos fatos futuros, dos quais se pretende subtrair potencialidade modificativa para o Poder Judiciário de primeiro grau e o Ministério Público.
Trata-se, portanto, da possibilidade de o juízo de conhecimento rechaçar não o texto em si, mas o sentido que dele emanou pela tradição, cuja reprodução, face à singularidade do caso, redundaria numa má decisão. A partir da categoria de percepção do sofrimento em Adorno, com as experiências decorrentes das práticas eugênicas do pós-guerra, proporciona-se uma dimensão da "angústia do estranhamento, a angústia do sinistro e do ameaçador" [25], padrão de normatividade que ultrapassa os limites da própria previsão abstrata em favor de uma nova compreensão interpretativa. Com ela, num espaço de mediação ético-política da sociedade, privilegiador da explicitação de um contrato social democrático-ideológico, flui a harmonia de sua aplicação aos casos concretos, preservando-se o máximo possível a força normativa da Constituição.
A noção de estranheza de sentido é suscetível de ser compreendida no que se refere a determinar as fronteiras entre as interpretações juridicamente possíveis e absurdas. De acordo com Marcelo Neves, "uma interpretação é incorreta quando a sua ‘estranheza’ impede que se possa compreendê-la como expressão de uma regra do jogo extraível do respectivo texto constitucional ou legal" [26]. A predominância de um entendimento hermeneuticamente estranho à luz de determinada matiz principiológica caracteriza-se como o temerário ingresso no campo da arbitrariedade, cuja reiteração teima por romper com as conquistas do estado constitucional.
O problema em delimitar as fronteiras entre as interpretações justificáveis e as que não poderiam ser admitidas por um estatuto de direitos, tal qual configuram-se os textos constitucionais num Estado democrático, importa que a partilha de sentido, no que se refere à estranheza aos últimos enunciados, reside antes numa congruência de pré-juízos acerca do papel a ser desempenhado por determinada fórmula política. E isto significa romper o simulacro da verdade nos enunciados normativos, porquanto o seu pressuposto de validade (legitimação) expira à exata medida de sua incompatibilidade ideológica em relação às expectativas de uma interpretação conforme a Constituição (legitimidade).
Como bem refere Warat, esta seria a função do mito, enquanto "esteriotipação semiológica da ideologia" [27], retórica atualmente travestida sob o cunho de um suposto pensamento racional metafísico, desde há muito combatido pela primeira geração da Escola Filosófica de Frankfurt, com Adorno e Horkheimer [28] – daí a importância da dialética negativa como constante revitalização de paradigmas no âmbito de novas situações hermenêuticas.
Quando se fala em interpretação constitucional, não se está admitindo a concepção ilusória de que só há uma solução correta para cada caso, mas a possibilidade de mais de um entendimento sob a égide dos seus princípios e regras, através de uma argumentação singularmente fundamentada. A juridicidade democrática não se contenta com a definição apriorística de certas decisões, posto que derivadas de sua mais alta Corte, por constituir o sistema uma conexão complexa de comunicações que lhe viabiliza reorientar as suas próprias propostas no interior daquele quadro normativo. A imprescindibilidade de um eixo hermenêutico de referência, ideologicamente assentado como um pressuposto valorativo, que permita dispor os deslizamentos de acomodação ou estranhamento no confronto com os sentidos concretos de contexto, constitui o ponto de partida na proposição crítica capaz de generalizar-se de forma congruente ou proporcional.
O estudo da hermenêutica jurídica pressupõe uma abordagem dos limites da interpretação, atividade intrinsecamente correlata à abordagem contextual dos signos, vale dizer, da potencialidade derivativa das palavras no processo de adjudicação de sentido. A despeito de admitirmos um espaço infinito de interpretações possíveis, que resguardem, para a aferição de sua validade, uma coerência estrutural interna, não seria admissível atribuir tamanho relativismo ao direito, uma vez que este está fundado sobre conteúdos ideológicos [29], delineando, sobremaneira, constantes soluções para problemas e litígios fáticos.
A atividade interpretativa, para que possa inaugurar ideologicamente instâncias de sentido (isentas, pois, de um cunho metafísico), preponderando no direito uma hermenêutica constitucional, carece de uma abordagem semiótica, a fim de que possa problematizar ou desconstruir a esfera de impertinência (con)textual decorrente de premissas que contrariam os pontos de partida argumentativo-fundamentais. A ideologia, destarte, conecta indissoluvelmente a tarefa hermenêutica com a sígnica, de forma a ressalvar no direito uma preponderância axiológica sobre o potencial processo de adjudicação de sentido, preservando-lhe a noção mesma de princípios transcendentes da legalidade posta.
Em suma, entendemos que o alento constitucional dá-se em face da angústia do estranhamento, numa dialética negativa que reconhece os limites do não-aceitável, jamais arrogando-se o papel de um construtivismo metafísico – isto é, que indique caminhos fixos e vinculantes. Ora, a desconstrução é, ao nosso ver, condição de possibilidade para o estabelecimento de uma primazia axiológica, é a pá que lavra singularmente o conteúdo; enfim o desconstrutivismo semiótico constitui etapa imprescindível para que se configurem as condições de possibilidade de uma hermenêutica ideologicamente aberta.
2.1 Comparativo com a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto
Quando utiliza este mecanismo de controle da constitucionalidade, elegendo a alternativa interpretativa que é compatível com a Magna Carta, o órgão jurisdicional está afirmando que a norma impugnada é constitucional, com a interpretação que a concilia com a Lei Fundamental, e, por conseguinte, está declarando, em outros termos, no bojo da fundamentação, qual o sentido tido por desconforme à Constituição, este sim suscetível de conteúdo vinculativo.
Nessa espécie de controle jurisdicional, o texto normativo permanece íntegro, porquanto a hipótese filtrada é interpretativa, de modo a estipular uma norma concreta a partir do mesmo texto jurídico, do qual, concomitantemente, possam decorrer sentidos antagônicos à Constituição. Entretanto, referido espaço de decisão em que são admissíveis várias possibilidades interpretativas, como se verá no derradeiro do presente trabalho, não se esboça tão-somente a partir de uma análise estritamente semântico-textual, senão de cunho hermenêutico-construtivo, mesmo a partir de preceitos aparentemente claros (estilo lego).
É o que tenta figurar Luís Roberto Barroso, para quem, quando o operador vislumbra salvar uma lei, não seria admissível fazer uma interpretação contra legem [30]. O próprio Supremo Tribunal Federal, na esteira da desprestigiada (filosoficamente) interpretação literal, em homenagem à vontade do legislador, evidencia os limites na técnica da interpretação conforme à Constituição, de modo que esta não poderá contrariar o sentido inequívoco que o Próprio Poder Legislativo pretendeu dar à norma [31].
Todavia, razão assiste a Ávila, em virtude de a própria regra também carecer, como os princípios (nesse caso reconhecidamente pela doutrina e jurisprudência), da atividade de ponderação de fundamentos. A ponderação diz respeito ao gênero normas, "na medida em que qualquer norma possui um caráter provisório que poderá ser ultrapassado por razões havidas como mais relevantes pelo aplicador diante do caso concreto" [32].
Nesse sentido, imperioso referir que a interpretação conforme à Constituição e a nulidade parcial sem redução de texto podem ser consideradas decisões interpretativas, a despeito de suas diferenças, uma vez que em ambas não há modificação do texto legal, mas o dimensionamento qualitativo de sua extensão aplicativa. Enquanto naquela se tem a declaração de que uma lei é constitucional com a interpretação que lhe é conferida pelo órgão judicial, nesta ocorre a hipótese de exclusão de determinada leitura tida por inconstitucional.
Nesse diapasão a assertiva de Zeno Veloso, ao proclamar que a declaração de inconstitucionalidade das leis só deve ser emitida quando o vício for extremo e insanável, em virtude do princípio de que elas carregam consigo a presunção de conformidade à Constituição. Para ele, pois, a interpretação conforme à Constituição "atende ao objetivo de manutenção ou conservação das normas no ordenamento jurídico" [33].
A propinqüidade entre as duas modalidades de controle é referida por Gilmar Ferreira Mendes, em trecho onde parece sugerir, com extremo acerto, a impossibilidade hermenêutica de um efeito vinculante no caso da interpretação conforme, exatamente por conta de sua positividade.
"De nossa parte, cremos que a equiparação pura e simples da declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto à interpretação conforme à Constituição prepara dificuldades significativas. A mais relevante delas advém do fato de que, ao fixar como constitucional dada interpretação e, expressa ou implicitamente, excluir determinada possibilidade de interpretação, por inconstitucional, o tribunal não declara – nem poderia fazê-lo – a inconstitucionalidade de todas as possíveis interpretações de certo texto normativo." (34)
Ou seja, ao atribuir um determinado sentido a um texto jurídico, é preciso ter claro que está estabelecendo, vale frisar novamente, apenas um dos sentidos constitucionais possíveis. Depreender o contrário significaria cristalizar a imposição ao sistema de única interpretação, tida como correta. Ao agregar um sentido, não poderá o juízo impedir que os demais órgãos encontrem outras maneiras para a aplicação daquele texto, como se toda a inconstitucionalidade fosse oriunda de interpretação diferente daquela tida por conforme à Constituição.
2.2 O instituto na modalidade de controle difuso – desfecho alentador de uma (das possíveis formas de) interpretação conforme à Constituição
Como pudemos observar, veja-se que o ato interpretativo é inevitável, com maior ou menor grau de complexidade, qualquer que seja o grau de clareza e precisão que se reconheça ao texto legal.
Assim sendo, a possibilidade de os Tribunais e de o juiz singular fazer uso da interpretação conforme à Constituição, repisamos, entendida esta como todo e qualquer pronunciamento apto a conferir um sentido alentador ao Texto Fundamental para o caso concreto, é algo como inerente à medida de sua competência para o julgamento.
Impedir essa aplicação pelo juízo de conhecimento seria, via obtusa, conferir aos órgãos de estrito direito a imposição de teses jurídicas de cima para baixo, em detrimento daquilo que poderia advir de novos casos e, conseqüentemente, de novas interpretações.
Tomemos como exemplo o contido no art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93, que regulamentou o artigo 203 da Constituição Federal, cujo teor estabelece que o benefício de prestação continuada é a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com setenta anos ou mais, desde que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. Referida lei considera incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a de um quarto do salário mínimo.
Indubitavelmente consagrou a norma regulamentadora uma hipótese objetiva para efeito de concessão do benefício assistencial – ¼ do salário mínimo – de modo que a clareza semântica do legislador sequer suportaria o cotejo de interpretações distintas pelo Poder Judiciário. Portanto, o entendimento segundo o qual o limite de atuação criativa do intérprete resta vinculado à margem de vagueza dos preceitos jurídicos (conceitos "luvas de borracha", segundo Teresa Wambier) não acataria a interpretação conforme à Constituição nesse caso, quando mais não seja o fato de ter o Supremo Tribunal Federal declarado dita norma constitucional.
"O Tribunal, por maioria, julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República contra o § 3º da Lei 8.742/93, que prevê o limite máximo de ¼ do salário mínimo de renda mensal per capita da família para que esta seja considerada incapaz de prover a manutenção do idoso e do deficiente físico, para efeito de concessão de benefício previsto no art. 203, V, da CF. Refutou-se o argumento de que o dispositivo impugnado inviabilizaria o exercício do direito ao referido benefício, uma vez que o legislador pode estabelecer uma hipótese objetiva para efeito da concessão do benefício previdenciário, não sendo vedada a possibilidade do surgimento de outras hipóteses, também mediante lei." [35]
Não obstante o reconhecimento inverso da constitucionalidade do dispositivo, em virtude do teor do art. art. 24 da Lei 9.868/99, decorrente da improcedência da ação direta de inconstitucionalidade, não estão impedidos juízes e tribunais de aplicarem a interpretação conforme à Constituição. Isso porque, numa leitura à luz da contemporânea hermenêutica aqui já debatida, tem-se que a constitucionalidade do texto não refreia outras interpretações possíveis, com sede em instrumentos disponíveis para a comprovação da miserabilidade.
Nesse sentido, menciona Streck julgamento ocorrido na circunscrição judiciária de Caxias do Sul, em que o juiz federal Eduardo Appio aplicou o instituto da interpretação conforme na hipótese em comento, no sentido de que "a comprovação de hipossuficiência de que fala a lei não pode constituir-se em único instrumento para comprovação desta, a qual pode ser provada através de outros meios postos à disposição do juiz da causa". [36]
É o que está referendando, aliás, o Superior Tribunal de Justiça, o que nos faz concluir pela impossibilidade de a dogmática superar o inevitável processo de adjudicação de sentido.
"A jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça pacificou já entendimento no sentido de que o critério estabelecido no artigo 20, parágrafo 3º, da Lei nº 8.742/93 (comprovação da renda per capita não superior a 1/4 do salário mínimo) não exclui que a condição de miserabilidade, necessária à concessão do benefício assistencial,resulte de outros meios de prova, de acordo com cada caso em concreto." [37]