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Construindo a relação entre o Direito da Criança e do Adolescente e o Direito Orçamentário

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27/11/2003 às 00:00
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6. A Prioridade Absoluta na Execução Orçamentária

Execução orçamentária é o processo pelo qual se efetua as aplicações das dotações orçamentárias consignadas a um órgão ou unidade orçamentários na realização de um programa de trabalho em conformidade com preceitos legais (ex: lei nº 4.320/64; Lei Complementar nº 101/2000) e na Constituição Federal. Destaca-se aí a execução da despesa orçamentária que "envolve a prática de um conjunto de atos formais, que se inicia com a colocação da dotação à disposição da unidade investida de autoridade para comprometê-la". [15]

A questão proposta à análise não atine às classificações e aos requisitos que envolvem o processamento da despesa até a sua concretização, tais como, empenho, liquidação e pagamento da despesa. O que se pretende investigar, neste ponto, é a relação do princípio da prioridade absoluta ao atendimento de direitos de crianças e adolescentes e a fase de execução orçamentária, momento em que recursos são efetivamente destinados aos programas governamentais.

No tópico anterior, comentou-se acerca da impossibilidade de inclusão de créditos orçamentários mediante decisão judicial na fase de elaboração orçamentária, sob pena de violação ao princípio da separação de poderes. A solução, então, seria a abertura de crédito suplementar ou especial ou a transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria para outra ou de um órgão para outro, desde que existente a autorização legislativa.

Observe-se que, tanto no caso de abertura de crédito suplementar, quanto na transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria para outra, necessita-se autorização legislativa. O atendimento dos direitos à uma infância e juventude digna estaria condicionada à uma decisão política. As indagações que se colocam aí são: como garantir a prioridade absoluta, não existindo previsão de recursos na lei orçamentária anual, sem que ficar na dependência de autorização parlamentar para a abertura de crédito suplementar ou para o remanejamento de recursos? E, de outro modo, como garantir a prioridade absoluta, existindo recursos na lei orçamentária anual que, contudo, não são gastos? Sintetizando: há um meio de se executar o orçamento mediante uma decisão judicial, com ou sem prévia autorização legislativa, na fase de execução da despesa orçamentária, ou seja, a proteção judicial é possível para assegurar os direitos da criança não garantidos por recursos orçamentários?

Para responder à essas indagações, analise-se dois argumentos que comumente embasam a posição que nega tal possibilidade, a saber, o princípio da separação de poderes e o princípio do equilíbrio econômico.

Cláusula pétrea constitucional, o princípio da separação de poderes não pode ser objeto de proposta de emenda à constituição que o pretenda abolir (art. 60, §4º, III, CF). Três são os poderes estatais, previstos constitucionalmente e considerados supremo: Legislativo, Executivo e Judiciário, devendo atuar de forma independente e harmônica entre si (art. 2º, CF).

Na medida em que o Estado não possui vontade própria, expressa-a por meio de órgãos que exprimem vontade exclusivamente humana., daí por que a divisão de poderes se justifica ao confiar cada uma das funções governamentais (legislativa, executiva e judiciária) a órgãos distintos. [16]

A especialização funcional e a independência orgânica fundamentam o princípio da separação de poderes. O primeiro deles significa que cada órgão exerce precipuamente uma função a que é especializado; o segundo, que inexiste dependência ou subordinação entre os órgãos especializados (executivo, judiciário e legislativo). [17] Com a redação dada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 2º [18], o princípio da separação de poderes deve ser compreendido a partir da idéia de colaboração de poderes.

Um dos aspectos mencionados por José Afonso da Silva sobre esse tema interpreta o significado da independência dos poderes na liberdade a que cada órgão tem para organizar os seus respectivos serviços, observadas somente as disposições legais e constitucionais, "assim é que cabe ao Presidente da República prover e extinguir cargos públicos..." e "ao Chefe do Executivo incumbe a organização da Administração pública.. .". [19]

A possibilidade de intervenção judicial no orçamento violaria o princípio da separação de poderes na medida em que o poder judiciário exerceria atribuição precípua do poder executivo, responsável pela organização da administração pública, invadindo a sua esfera de competência.

De orientação liberal, o princípio do equilíbrio econômico pretende a compatibilização entre receitas e despesas públicas, evitando-se assim o desequilíbrio orçamentário, sobretudo, a existência de déficits. Sem dúvida, o fundamento deste princípio é a inesgotável "gana" governamental em agir de forma pouco racional e não planejada, podendo ser encarado como uma conquista da sociedade para evitar a sangria das finanças públicas.

Não é encontrado expressamente na Constituição Federal, todavia, há dispositivos constitucionais que induzem o equilíbrio orçamentário, como já salientado em outra passagem. [20] A identificação do princípio do equilíbrio financeiro é evidenciada a parir da inferência de regras jurídicas.São exemplos: o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual (art. 167, I); a proibição de realização de despesas ou assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais (art. 167, II); a proibição do Banco Central conceder empréstimos ao Tesouro (art. 164, §2º); a obrigatoriedade de depósito no Banco Central das disponibilidades de Caixa da União (art. 164, §3º); a transparência na concessão de incentivos e nas renúncias de receita (art. 165, §6º).

Erigido a pedra fundamental das finanças públicas, o princípio do equilíbrio orçamentário (e os dispositivos que o informam acima referenciados) pode contribuir para a argumentação que rechaça a possibilidade de execução orçamentária para programas destinados à infância e à juventude mediante sentença judicial diante de posição do Executivo e do Legislativo que não inclua recursos ou inclua-os insuficientemente na lei orçamentária anual. Inserida numa ótica de racionalidade financeira do Estado, uma interpretação literal do princípio do equilíbrio financeiro conduz o intérprete à conclusão de impossibilidade de realização de programas e ações que assegurem a efetivação de direitos da infância e juventude.

Tanto o princípio da separação de poderes, quanto o do equilíbrio econômico devem ser relacionados com o princípio da prioridade absoluta (art. 227, C.F.), através do método da ponderação, para que se verifique o alcance de ambos. A ponderação entre princípios somente é possível na medida em que estes se situam em um fase intermediária entre as regras e os valores jurídicos, pois, aquelas possuem maior grau de concretude e precisão que os princípios, enquanto os valores, por sua abstração, não são passíveis de inscrição no ordenamento jurídico. Situados em um grau hierarquicamente inferior aos valores, os princípios, diferem desses, por apresentarem maior concretude e, por isso, possuem capacidade de expressão, sistematização e confronto.

Pretendendo a substituição do modelo fechado da subsunção, a técnica da ponderação de princípios significou verdadeiramente uma ponderação de interesses no processo de aplicação do direito, tendo sido a jurisprudência dos valores quem mais consistentemente trabalhou a temática com base em sugestivos julgados da Corte Constitucional da Alemanha. [21]

Nesse sentido, "a ponderação de bens em cada caso é um método de complementação do direito, que visa a solucionar as colisões de normas", servindo-se o Tribunal Constitucional Alemão do método da ponderação de bens no caso particular ("Güterabwägung in Einzellfall") para determinar o alcance concreto dos direitos fundamentais (Grundrechte) ou princípios constitucionais (Verfassungsprinzipien) que colidam entre si nos casos particulares. [22]

O método da ponderação deve ser empregado no presente caso para avaliar concretamente o alcance do princípio da prioridade absoluta em cotejo com os princípios dá separação de poderes e do equilíbrio financeiro, pois, se por um lado, não resta dúvida da plena existência, validade e eficácia de tais princípios sobre o ordenamento jurídico, por outro, é de se duvidar da prevalência quase absoluta dos princípios da separação dos poderes e do equilíbrio financeiro no mundo jurídico.

Melhor explicando, a Constituição agrupa inúmeros sub-sistemas temáticos que informam valores, princípios e normas para cada área específica, a saber, tributária, família, financeira, econômica, penal, eleitoral, trabalhista. Daí o por quê não cabe dúvida de que os princípios da separação dos poderes e do equilíbrio financeiro existem, vigem e são eficazes juridicamente, cada qual em seu sub-sistema temático. Porém, como os fenômenos sociais não guardam classificação e efeitos em compartimentos, é possível que um mesmo fenômeno social tenha repercussão sobre dois ou mais sub-sistemas jurídicos, cada qual, lembre-se, com seus valores, princípios e regras bem definidos e compartimentados para a realização do mister regulatório de sua matéria.

É diante de casos particulares que o método da ponderação determina o alcance concreto dos direitos fundamentais ou dos princípios constitucionais que colidam entre si. O caso particular aqui referido, a exigir a ponderação de interesses, é a possível preponderância dos princípios constitucionais da separação de poderes e equilíbrio orçamentário sobre o também princípio constitucional da prioridade absoluta às crianças e aos adolescentes. O resultado desse raciocínio resultaria na impossibilidade da autoridade judiciária determinar a realização de despesas públicas no curso da execução orçamentária.

Contrariamente, o reconhecimento da preponderância do princípio da prioridade absoluta sobre o da separação de poderes e do equilíbrio financeiro culmina na possibilidade de concessão de provimento judicial que determine a realização de despesas públicas no curso da execução orçamentária para atender aos direitos de crianças e adolescentes.

Entendemos que a segunda posição deve prevalecer. Na verdade, os direitos da criança e do adolescente são duplamente fundamentais. Primeiro, por serem essenciais a toda e qualquer pessoa humana. Segundo, por exigirem efetivação prioritária sob pena de – quando se queira ou possa implementá-los –, nunca mais realizá-los. São direitos que exigem imediata implementação diante da peculiar condição a que estão submetidos crianças e adolescentes.

Os valores representados pelo princípio da prioridade absoluta impõe-se no jogo de princípios ante os princípios da separação de poderes e do equilíbrio orçamentário. Todavia, isso não significa, de modo algum, a opção por um governo de juízes (separação de poderes) ou a defesa do desequilíbrio das contas públicas. É escorado nesse raciocínio que entendemos ser plenamente possível a realização de programas e ações que implementem direitos de crianças e adolescentes, previstos ou não na lei orçamentária anual, por meio de provimento judicial.

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Há que se ter um remédio jurídico capaz de atender à omissão ou à insuficiência do gasto orçamentário efetuado pela administração pública com os direitos fundamentais, sob pena de submete-los às ideologias e conveniências políticas do governante em exercício. O meio adequado para ensejar a obrigação do Estado já na fase de execução, com ou sem previsão de recursos na peça orçamentária, parece ser a via da ação civil pública.

Ao final deste tópico, destaque-se a obrigação do Poder Executivo em publicar relatório resumido da execução orçamentária até trinta dias após o encerramento de cada bimestre (art. 165, § 3º, CF). É fundamental que esse relatório seja elaborado tematicamente de modo a permitir o acompanhamento da execução orçamentária junto aos órgãos da administração pública mais diretamente.


7. Mandado de Injunção

O artigo 5º, LXXI enuncia:

"Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania".

A criação da garantia constitucional do mandado de injunção pelo constituinte de 1988 buscou atender ao reclamo generalizado para uma maior efetividade das normas constitucionais, [23] ao conferir-lhes "imediata aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas, inerte em virtude de ausência de regulamentação". [24]

Nos regimes constitucionais anteriores, a existência de normas constitucionais sem regulamentação por inércia do legislador possibilitava o descrédito da própria Constituição já que ineficaz a norma. [25]

A finalidade do mandado de injunção é atuar, assim, nos casos em que o direito exige regulamentação para que possa ser exercido. Os requisitos para que essa garantia possa ser exercida são: a) a falta de norma regulamentadora de um direito, liberdade ou prerrogativa; b) o nexo entre a falta de norma regulamentadora e o exercício do direito, liberdade ou prerrogativa.

Diverge a doutrina acerca do alcance do mandado de injunção, se restrita aos direitos individuais ou se abrangendo os direitos sociais. Citando o professor Manoel Ferreira Filho que entende o mandado de injunção alcançando apenas os direitos individuais e políticos após ter considerado a expressão"inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania", Luís Roberto Barroso, [26] diversamente, ensina que ante a inexistência de cláusula restritiva, o mandado de injunção abrange todos os direitos constitucionais. A partir da perspectiva colacionada pelo professor Barroso, conclui-se que a restrição da garantia do mandado de injunção apenas aos direitos individuais e políticos é antes ideológica que científica. [27]

A função do mandado de injunção é, concretamente, possibilitar o exercício de um direito (civil, político, econômico, social ou cultural), liberdade ou prerrogativa a uma pessoa ou grupo que estão impossibilitados de exercê-lo por ausência de uma norma regulamentadora. Através do juízo de eqüidade, isto é, da possibilidade do julgador legislar no caso concreto ante a existência de uma lacuna da lei, acaba o julgador desempenhando um papel que originariamente cabe ao legislador. [28]

A importância do mandado de injunção em sede orçamentária é que "sendo uma das garantias processuais dos direitos fundamentais (art. 5º, IXXII, CF) pode dar lugar a alterações orçamentárias", surgindo daí a polêmica questão do judiciário ter "competência para remanejar verbas ou criar despesas para a proteção dos direitos". [29]

Por certo, a regulamentação de um direito, proposta em sede de mandado de injunção, traria reflexos orçamentários, seja à ocasião da elaboração orçamento, seja à ocasião da execução orçamentária. No primeiro caso, "acerca de sua utilização ao tempo da elaboração não se assiste grande controvérsia" já que pode-se dispor, no orçamento brasileiro, "do instituto do precatório para assegurar o cumprimento das decisões judiciais, através da reserva prévia das dotações orçamentárias, na forma do art. 100 da Carta Vigente". [30]

No cumprimento de uma decisão judicial em mandado de injunção com reflexos orçamentários, não há dúvida quanto à possibilidade de interferência judicial na elaboração orçamentária mediante o procedimento previsto no artigo 100 da Constituição Federal.

A dúvida surge na atuação judicial no momento da execução orçamentária, já que em tal caso surge a dúvida se a decisão judicial não feriria o princípio da separação de poderes, já que a elaboração orçamentária é de responsabilidade do Poder Executivo, que deve fazê-lo sob o primado da legalidade financeira. [31]

Comentando a questão no direito norte-americano, Ricardo Lobo Torres [32] manifesta que a maior parte da doutrina norte-americana, mesmo os defensores do administrative injunction (mandado de injunção), tem condenado as alterações judiciais do orçamento, alegando que a realocação de verbas pela via judicial (momento da execução orçamentária), fere os princípios da separação de poderes, do federalismo e da legalidade orçamentária embora se reconheça que as injunções afirmativas tiveram o mérito de antecipar inspiração às medidas do Legislativo "para o preenchimento das omissões normativas e as redefinições orçamentárias". [33]

Todavia, a inovadora garantia restou inviabilizada diante de decisão do Supremo Tribunal Federal que conferiu ao mandado de injunção os mesmos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por omissão, afastando-se a possibilidade da entrega direta do direito pelo judiciário, por meio de regulamentação ao caso concreto, em situações de omissão legislativa.

O resultado disso é que os efeitos do mandado de injunção passam a ser o de cientificar o Poder Legislativo, que mantém-se inerte, para que adote as providências necessárias ao suprimento da omissão. Em se tratando de omissão atribuída a órgão administrativo, este deve sanear a omissão no prazo de 30 dias (art. 103, § 2º, CF).

Afastou-se da melhor interpretação que se poderia dar a garantia constitucional do mandado de injunção: ser "um instrumento de tutela efetiva de direitos que, por não terem sido suficientes ou adequadamente regulamentados, careçam de um tratamento excepcional, qual seja: que o judiciário supra a falta de regulamentação, criando a norma para o caso concreto, com efeitos limitados às partes do processo". [34]

Tal entendimento diverge daqueles que sustentam a posição de que "a utilização do mandado de injunção na concretização daqueles direitos colocaria em cheque o princípio da legalidade financeira, previsto no artigo 165, da CF". [35] Isto por que, inevitavelmente, a decisão judicial num caso concreto, objeto de mandado de injunção, repercutiria no orçamento já que o cumprimento da garantia exigiria recursos públicos, situação que, para parte da doutrina, abalaria a segurança e a legalidade orçamentárias.

Concordamos com a posição em que o mandado de injunção não sirva ordenar ou recomendar a edição de uma norma, devendo, em tais casos, a substituição do órgão legislativo ou administrativo competentes para criar a norma pelo poder judiciário. Este criaria a regra necessária para os fins específicos do litígio que lhe cabe julgar. [36]

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Sobre o autor
Rinaldo Segundo

bacharel em direito (UFMT), promotor de justiça no MPE/MT e mestre em direito (Harvard Law School), é autor do livro “Desenvolvimento Sustentável da Amazônia: menos desmatamento, desperdício e pobreza, mais preservação, alimentos e riqueza,” Juruá Editora.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGUNDO, Rinaldo. Construindo a relação entre o Direito da Criança e do Adolescente e o Direito Orçamentário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 144, 27 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4541. Acesso em: 25 abr. 2024.

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