A interceptação telefônica, o princípio constitucional da reserva de jurisdição e o fenômeno da serendipidade no processo penal

18/12/2015 às 20:54
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O presente artigo tem como objetivo apresentar aspectos relevantes da interceptação telefônica e do fenômeno da serendipidade no processo penal, à luz do princípio constitucional da reserva de jurisdição.

A República Federativa do Brasil, amparada na Constituição Federal, consagrou as garantias e direitos fundamentais do homem dentro de um contexto jurídico voltado a proporcionar a existência e sobrevivência humana de forma plena, digna e livre, possibilitando uma coexistência harmônica e pacífica entre seus cidadãos. Tendo em vista sua natureza indissociável da pessoa humana, tais garantias e direitos devem ser assegurados a todos, sem distinções, formalmente reconhecidos e materialmente concretizados na forma da lei, como se observa no art. 5º, caput, da CF, compreendendo, inclusive, limitações impostas à própria atuação do Estado, no escopo de assegurar liberdade, autonomia e igualdade a todos sob seu governo. De acordo com Silva (2006, p. 25) “direitos fundamentais do homem-indivíduo são aqueles que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade e do próprio Estado”.

            Nesse sentido:

Os Direitos Fundamentais são reconhecidos como posições jurídicas concernentes às pessoas, que, sob a ótica do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância, integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, quer sejam ou não integrantes do sistema constitucional positivado, ou seja, quer estejam ou não descritos no texto da constituição formal. (SANT'ANA, 2014)

            Dentre esses direitos resguardados pela Carta Magna, encontram-se os direitos à intimidade e ao segredo das comunicações, pertencentes aos chamados direitos fundamentais da 1ª dimensão (direitos civis e políticos), pois compõem as chamadas liberdades clássicas ou formais, em razão da exigência da não interferência do Poder Público em assuntos de foro particular do indivíduo. Seguindo esse contexto, o princípio constitucional da reserva de jurisdição, ou da reserva jurisdicional, implícito no inciso XII, do art. 5º, da Constituição da República, assegura a inviolabilidade do sigilo de correspondência, das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas.

            No entanto, sabe-se que os direitos e garantias fundamentais não têm caráter absoluto como já pacificou o Superior Tribunal Federal: “(...) os direitos e garantias não têm caráter absoluto” (RTJ 173/807-808, Rel. Min. Celso de Mello, Pleno).

            Verifica-se, destarte, que os direitos fundamentais podem sofrer limitações em face de outros direitos também indispensáveis à existência e preservação da sociedade como a conhecemos e, consequentemente, à conservação do próprio Estado Democrático de Direito. Se assim não fosse, imensa insegurança jurídica arrastaria o país para o caos.

            Desse modo, nada obstante o princípio da reserva de jurisdição proteger o direito à intimidade e à privacidade das comunicações, importa frisar a exceção contida na parte final do inciso XII do art. 5º, CF, in verbis: “(...)por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. Trata-se, portanto, de norma constitucional de eficácia contida, uma vez que sua aplicabilidade é restringida por uma norma infraconstitucional: a Lei 9.296/1996, ou simplesmente Lei da Escuta Telefônica, que disciplina a parte final do citado inciso XII, dispondo sobre a quebra de sigilo ou interceptação de comunicações telefônicas.

            Obviamente, essa interceptação não é realizada de qualquer forma ou por mero capricho do órgão julgador, pois consiste em técnica especial de investigação, de caráter intrusivo, uma vez que penetra na intimidade e na vida privada do investigado. Assim sendo, demanda prévia autorização judicial, na forma do art. 1º da Lei 9.296/1996: “a interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal em instrução processual penal, observará o disposto nesta lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça”. Ademais, sua autorização exige, além da ordem judicial fundamentada, o preenchimento dos requisitos elencados no art. 2º: a) quando houver razoáveis indícios de participação e autoria na infração penal; b) quando a prova não puder ser feita por outros meios e; c) quando o fato investigado constituir infração penal punida com pena de reclusão. Por conseguinte, infere-se da referida lei que a interceptação das telecomunicações só deverá ser levada a efeito, se presentes os requisitos legais, ante a necessidade de coligir provas aos autos. Nos termos do art. 155 do CPP, “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial (...).”. Dessa forma:

  

Prova é tudo aquilo que será utilizado para contribuir na formação do convencimento do órgão julgador. A prova pode ser entendida como o ato de provar (instrução probatória); o meio para provar: são os instrumentos para demonstração da verdade; e o resultado obtido com a análise do material probatório, isto é, o efeito ou o resultado da demonstração daquilo que se alega. (TÁVORA; ARAÚJO, 2015, p. 232)

            Levando-se em consideração que sem provas, logicamente não haverá sentença penal condenatória e diante da dificuldade de se produzir um acervo probatório suficiente à condenação de certos criminosos, a receptação telefônica surge como meio extraordinário de obtenção de prova, incluída nas técnicas investigativas especiais. Trata-se, portanto, de ferramenta sigilosa de investigação, à disposição das polícias e do Ministério Público para a apuração de crimes graves, muitas vezes praticados por organizações criminosas, exigindo, assim, o emprego de métodos diferenciados de investigação.

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Em sede processual penal, foram utilizadas inicialmente para a persecução penal do tráfico de drogas, sendo que, atualmente, também são usadas para a investigação de crimes praticados por organizações criminosas. Funcionam como verdadeiros meios de obtenção de prova, sendo identificadas, em regra, pela presença de dois elementos: o sigilo e a dissimulação. Por meio delas, são coletadas informações, indícios ou provas de um crime sem conhecimento do investigado, de modo a proporcionar aos órgãos estatais o fator surpresa. Nesse caso, o contraditório será exercido apenas de maneira diferida. (BRASILEIRO, 2015, p. 579)

            Todavia, é de bom alvitre frisarmos a exigência prevista no parágrafo único do art. 2º: “em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada”. Evidencia-se, assim, a preocupação do legislador com a individualização dos fatos e dos sujeitos passivos alvos da ação investigatória. Não obstante ser exigida a descrição clara da situação objeto da investigação, no curso da interceptação outros fatos penalmente relevantes podem ser descobertos, ocorrendo o chamado fenômeno da serendipidade (ou encontro fortuito), termo originado do inglês serendipty, que significa algo como descobrir coisas ao acaso. O maior questionamento é referente à validade das provas descobertas fortuitamente, tendo em vista que a autorização judicial para a escuta telefônica deve ser específica para o alvo da investigação (situação ou pessoas).

Ao enfrentar o tema em recentes julgados, o STJ tem permitido tal hipótese, entendendo pela validade da prova, desde que os novos fatos-pessoas guardem conexão com os inicialmente investigados – serendipidade de 1º grau (STJ - HC 144137/ES. (ASFÓRA, 2013).

            Porém, inexistindo qualquer conexão entre os fatos ou pessoas que motivaram a escuta e o encontro fortuito, não se admite a prova, servindo esta apenas como “notitia criminis” hábil para a instauração de procedimento investigativo próprio. É o que a doutrina chama de serendipidade de 2º grau.   

            Quanto à quebra de informações sobre registros ou dados cadastrais da linha telefônica, o entendimento jurisprudencial é de que essas informações não estão abrigadas pelo princípio da reserva jurisdicional, uma vez que não estão ligadas à intimidade das pessoas. Assim, não há de se falar em violação (AgReg no HC 181546/SP, Relator Min. Marco Aurélio Bellize, 5ª Turma, pub. 11/02/2014). No entanto, exige autorização judicial fundamentada.

REFERÊNCIAS:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

BRASIL. Lei 9.296, de 24 de julho de 1996.

BRASILEIRO, Renato. Manual de processo penal. 3 ed. rev. amp. atual. Salvador: Jus Podium, 2015.

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

TÁVORA, Nestor. ARAÚJO, Fábio Roque. Código de processo para concursos. 6 ed. rev. amp. atual. Salvador: Jus Podium, 2015. 

TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. 19 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

ASFÓRA, Fernanda. Interceptações telefônicas – princípio da serendipidade. Disponível em http://www.canalcarreiraspoliciais.com.br> Acesso em 15 de dezembro de 2015.

GOMES, Luiz Flávio. Natureza jurídica da serendipidade nas interceptações telefônicas . Disponível em http://www.lfg.com.br. Acesso em 18 de dezembro de 2015.  

SANT'ANA, Juliana Silva Barros de Melo. Restrições de direitos fundamentais por reserva de jurisdição decorrente da sua colisão. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 4155, 16 nov. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/29908>. Acesso em: 14 dez. 2015.


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Sobre o autor
Robson Souto

Servidor do TJSE, autor de obras jurídicas.

Informações sobre o texto

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