1. INTRODUÇÃO
O alvo do presente artigo será analisar o instituto do precatório como meio de pagamento das dívidas da Fazenda Pública decorrentes de sentenças transitadas em julgado à luz da teoria dos Direitos Fundamentais, com enfoque principal nos termos propostos por Robert Alexy e alguns importantes estudiosos brasileiros dessa doutrina, bem como da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, mormente no que tange às recentíssimas alterações trazidas pela Emenda Constitucional nº 62 de 2009 e as respectivas Ações Diretas de Inconstitucionalidade das quais é objeto de verificação frente à supremacia constitucional.
Neste escopo, em seguida, será feita uma breve introdução ao regime de pagamento dos precatórios, pontuando suas principais características, e da concepção da tutela executiva como direito fundamental[1]. Feito isso, será possível adentrar no objetivo cerne deste trabalho que é o estudo da Emenda Constitucional nº 62 de 2009 e as alterações por ela promovidas no regime de pagamento dos precatórios, verificando, com base na doutrina e por meio de análise crítica dos precedentes do Supremo Tribunal Federal, sua adequação à ordem jurídica constitucional e aos princípios do Estado Democrático de Direito.
Em se tratando de assunto bastante denso e ainda recente, haja vista a existência de julgados da ADI datados no dia 25 de março de 2015[2], é importante salientar que este trabalho cuidará de apontar os principais pontos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sem conjecturar as muitas possibilidades de decorrências deste entendimento que porventura apareçam em um futuro próximo, mas, tão somente, as repercussões que, já nesse primeiro momento, podem ser feitas com relação aos direitos fundamentais à tutela executiva e à efetividade processual.
Resta, diante do que foi previamente exposto, explicitada as relevância e, sempre, atualidade da discussão, que, por mais que especificamente tratando de decisão judicial que fora concluída ainda em 2015, reflete um problema que vem se arrastando pela própria história do Brasil, ainda que sua criação histórica tenha visado a uma boa causa, que seria impedir benefícios pessoais nesses pagamentos[3], mas que acabou criando uma patologia, em oposição ao tempo necessário e ideal que se deveria ter para a conclusão de um processo judicial[4].
2.TUTELA EXECUTIVA COMO DIREITO FUNDAMENTAL E O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO
Grande contribuição recebeu a doutrina processual brasileira, quando a ela foram incorporados conceitos provenientes da Teoria dos Direitos Fundamentais, ou seja, quando se admitiu a necessidade de atribuir às normas constitucionais o reconhecimento dessa fator na aplicação dessas normas jusfundamentais, não apenas como normas sem o reconhecimento de sua aplicabilidade plena e imediata[5].
Com a consolidação de força normativa da Constituição[6], não é mais concebível a realização de um estudo em qualquer ramo do direito sem que haja a devida observância às normas constitucionais, sobretudo no que diz respeito ao Direito Processual, tendo em vista os conteúdos processuais tratados pelo texto constitucional serem considerados Constituição material[7].
De tal maneira, o Direito Processual, tal como as demais searas do direito, encontra, não apenas na regulação dos precatórios, como veremos mais adiante, mas em diversos setores, determinadas diretrizes com status de norma constitucional, que servem de parâmetro para estipular as demais normas que vão reger o processo judicial.
Esse conjunto de direitos e garantias consagrados no texto da Lei Fundamental estabelecerá um padrão processual que deve, impreterivelmente, por conta da supremacia constitucional, ser observado quando do controle das reformas constitucionais, como essa que se é analisada.
Sobre esse assunto, vale trazer in verbis os ensinamentos da doutrina italiana que faz uma excelente leitura relacionando Constituição e Processo, nas palavras de Andolina e Vignera[8]:
Le normi ed i principi costituzionale riguardanti l´esercizio della funzione giurisdizionale, se considerati nella loro complessità, consentono all´interprete di disegnare un vero e proprio schema generale di processo, suscettibile di formare l´oggeto di una esposizione unitaria.
A passagem supracitada afirma que as normas e os princípios constitucionais relativos ao exercício da função jurisdicional, se considerados na sua complexidade/completude, permitem ao intérprete desenhar um verdadeiro e próprio esquema geral de processo, suscetível de formar o objeto de uma exposição una/uniforme[9].
Na Constituição brasileira, podemos identificar três grandes grupos de dispositivos que veiculariam as normas desse conceito apresentado - o Modelo Constitucional de Processo: os direitos e garantias fundamentais concernentes à área em estudo, a maioria deles prevista no rol do art. 5º; os elementos constitucionais orgânicos estruturais do Poder Judiciário e alguns procedimentos diferenciados, como o controle concentrado de constitucionalidade. Há também quem inclua, seguindo orientação dos doutrinadores italianos citados acima, a parte das funções essenciais à justiça dentre um dos grupos referentes ao direito constitucional processual[10].
Posto isso, o modelo constitucional de processo deve ser visto como verdadeira proposta metodológica que serve de premissa para o desenvolvimento das demais normas que vão reger o sistema jurídico processual[11], o qual, reitero, deverá guardar congruência com as disposições hierarquicamente superiores e, por meio de métodos hermenêuticos constitucionais, buscar a máxima efetividade e a interpretação conforme a constituição para a concretização dos princípios processuais expressos ou implícitos no texto constitucional.
Dentre as determinações constantes no Modelo Constitucional de Processo que se pode extrair da interpretação do texto constitucional vigente na República Federativa do Brasil, é mister uma breve análise de alguns elementos nele constantes, tidos por mais relevantes no que diz respeito à consecução do direito fundamental à efetiva tutela executiva.
Igualmente, diante do exposto, classificando essas normas constitucionais de conteúdo processual não apenas como normas primárias, as quais comando condutas tidas como devidas; mas também normas secundárias, ou seja, normas que tratam sobre outras normas do ordenamento, de acordo com classificação proposta por Hart[12], diante do problema da heterogeneidade do Direito, é fácil notar a projeção destas, sobretudo à norma jusfundamental que resguarda o valor da razoável duração do processo, às modificações propostas no texto do artigo 100 da Constituição Federal e regime de pagamentos por meio de precatórios.
Nos encontramos, então, diante de uma modificação no texto constitucional que, em tese, estaria colidindo com direitos fundamentais já consolidados no ordenamento jurídico com status constitucional.
Ainda, repito, que a análise da constitucionalidade objeto de estudo deste empreendimento científico seja feita em tese, há que se considerar insuficiente esta forma de verificação da supremacia da constituição[13]. Logo, é mister fazer algumas adaptações das concepções de direitos fundamentais aqui apresentadas, que são necessariamente trabalhadas sob os prismas de casos concretos, a fim de não cometermos falhas metodológicas, mais precisamente, o sincretismo[14].
Feitas essas primeiras considerações sobre o método, não se trará por direito absoluto a ideia dos direitos fundamentais que resguardem a tutela executiva; mas como, de acordo com a teoria de Alexy, mandamentos de otimização, devendo, portanto, ser realizados na maior medida possível, conforme o contexto fático de cada caso concreto[15], podendo, portanto, da mesma forma dos demais, ser relativizado, principalmente quando em rota de choque com outras normas jusfundamentais.
Tomamos, pois, as linhas para definir esse direito fundamental que serviu de parâmetro para o controle de constitucionalidade da Emenda. Primeiro, deve vir a baila a clássica lição de Chiovenda sobre efetividade, bem como a própria finalidade do processo, asseverando que o processo deve dar, o quanto for possível, praticamente, a quem tenha um direito, "tudo aquilo e exatamente aquilo" que ele tenha direito de conseguir[16].
Esta lição no Brasil foi trabalhada, de maneira bem sólida, sob a expressão de "máxima coincidência possível"[17], formulada por José Carlos Barbosa Moreira que versa que a tutela jurisdicional a ser prestada pelo Poder Judiciário deverá ser capaz de proporcionar ao exequente, neste caso específico, uma satisfação de direito que seja a mais coincidente possível com o direito que ele teria pelo cumprimento do direito de maneira espontânea, ou seja, sem a necessidade das vias processuais, as quais, nesse estudo, focam no regime de precatórios.
Por fim, arrematam-se essas considerações com uma concreta definição do que é entender a tutela executiva como um direito fundamental: exigir a existência de meios executivos adequados a proporcionar uma tutela executiva integral equivalente ao direito consagrado no respectivo título executivo[18].
Estabelece-se, também, alguns poderes-deveres decorrentes das matérias aqui trazidas e que devem guiar o estudo a seguir. São eles: o poder-dever de interpretar o direito relacionado a esses meios executivos com o objetivo de dele extrair um significado que garanta a maior proteção e efetividade à norma jusfundamental que resguarda a tutela executiva; o poder-dever de deixar de aplicar normas que restrinjam um meio executivo, quando esta restrição não se encontre fundamentada por outro direito fundamental que prevaleça em casos de colisão; e o poder-dever de adotar os meios executivos que se mostrem necessários à prestação integral da tutela executiva, ainda que não previstos em lei, ou, até mesmo, "expressamente vedados em lei", desde que observados os limites impostos por eventuais outros direitos fundamentais[19].
Expostas essas premissas, é possível partir para um estudo mais detalhado do regime de pagamentos por precatórios instituído pela Emenda Constitucional de nº 62 de 2009, a fim de identificar se houve respeito ao direito fundamental à tutela executiva enquanto do exercício de controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, em virtude de violação desse direito fundamental por causa de uma alteração que torne insuficiente e não-efetiva a prestação jurisdicional, chegando a denegar esta tutela, no tocante aos processos de execução em face da Fazenda Pública.
3.BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE O REGIME DOS PRECATÓRIOS
O Estado, na forma como conhecemos hoje, por assim dizer, o Estado moderno, existe com o intuito de regular a vida em sociedade e de tutelar os diversos interesses públicos, por vezes conflitantes, em nome do princípio da supremacia do interesse público, elemento do binômio fundamental da Administração Pública, juntamente com a indisponibilidade do interesse público[20].
Para o exercício dessa tutela em juízo, à Fazenda Pública foram concedidas prerrogativas, a fim de, em virtude da dificuldade gerencial gerada pela sua magnitude, possibilitar uma atuação equiparada aos seus litigantes. É comum considerar as prerrogativas como tratamento diferenciado ou privilégios concedidos à Fazenda Pública. Esta visão, contudo, está equivocada, tendo em vista se constatar a aplicação do princípio da igualdade, com base no problema já exposto, diante da real necessidade de a Fazenda Pública gozar de determinados institutos[21].
É importante ressaltar que uma dessas prerrogativas constantes no regime jurídico de direito processual público diz respeito à execução em face da Fazenda Pública, que se dá por meio do regime de precatórios.
A Fazenda Pública, ao sofrer uma condenação judicial, fará o pagamento do débito por meio de uma ordem de pagamento, previsto no artigo 100 da Constituição. Trata-se, pois, de um rito diferenciado da execução por quantia certa comum, tendo em vista a impenhorabilidade dos bens públicos, não sendo possível a aplicação institutos como a penhora, por exemplo. Isso acaba por garantir ao Estado um prazo mais alongado para o adimplemento da obrigação e um maior controle de despesas em orçamentos futuros[22].
Com o final da execução, o juiz emite, a pedido do credor e corroborado por parecer favorável do Ministério Público, um ofício à Presidência do Tribunal com a requisição do pagamento. Aquelas requisições auferidas até o dia 1º de julho são lavradas como precatórios, devendo ser atualizadas e incluídas na proposta orçamentária do ano seguinte. Desse modo, o ente devedor terá, até o dia 31 de dezembro do ano de previsão do adimplemento, que depositar o valor relativo aos precatórios. Liberados os valores, o Tribunal, então, procede ao pagamento, conforme a ordem cronológica de apresentação e as preferências previstas no texto constitucional[23].
Finalmente, depois de aberta uma conta de depósito judicial, na qual é creditado o valor correspondente a cada precatório, o Tribunal oficiará o juízo original, que, com a efetiva transferência, procederá com a expedição do alvará de levantamento, que autoriza o beneficiário do crédito sacar os valores, e o consequente arquivamento do precatório no Tribunal[24].
4.REGIME DOS PRECATÓRIOS E O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 62/2009
A Emenda Constitucional nº 62/2009 promoveu alterações no artigo 100 da Constituição Federal e no artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), determinando muitas mudanças no regime de pagamento por precatórios.
Essas modificações dificultaram o recebimento das quantias pagas por meio do instituto dos precatórios pelos credores, representando ainda mais vantagens à Fazenda Pública, o que possibilitou a alcunha de “Emenda do Calote” a essa inovação no ordenamento jurídico.
Diante da densa plausibilidade de inconstitucionalidade da presente Emenda, quatro ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) foram propostas contra essas modificações no texto constitucional[25], sendo uma proposta pelo Conselho Federal da OAB em conjunto com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB); a segunda pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI); outra pela Associação dos Magistrados Estaduais (Anamages) e a derradeira pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
A legitimação ativa para propor ADI, contudo, está prevista em rol taxativo no artigo 103 da Constituição Federal de 1988 e, sobre o assunto, a jurisprudência do Supremo entende ser necessária a pertinência temática a alguns desses legitimados, a fim de que possam ajuizá-las, demonstrando o interesse na ação.
Nos julgados aqui abordados, o Supremo não conheceu as ADIs ajuizadas pela Anamatra e pela Anamages, considerando não haver relação direta e, consequentemente, pertinência temática entre a matéria veiculada pela Emenda Constitucional e as finalidades institucionais dessas entidades de classe. Quanto à Associação dos Magistrados Brasileiros, por outro lado, o STF conheceu da ação, decidindo pela existência de pertinência temática, pois a violação do princípio de separação dos poderes na Emenda repercutia diretamente no objetivo de defesa do Judiciário nacional, bem como a defesa do Estado democrático e a preservação dos direitos e garantias individuais e coletivos, todos previstos no Estatuto da associação de âmbito nacional dos magistrados.
4.1 Inconstitucionalidade formal
Fora levantada, nas ações já mencionadas, a possibilidade de inconstitucionalidade formal da Emenda nº 62. A Constituição determina, no parágrafo 2º do artigo 60, que a proposta de emenda constitucional seja discutida e votada, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos de votação, com a aprovação de, pelo menos, 3/5 (três quintos) dos votos dos membros respectivos de cada casa órgão do Poder Legislativo.
No trâmite do projeto de Emenda, em sua passagem pelo Senado Federal, os turnos ocorreram em mesmo dia, em duas sessões legislativas com menos de 1h de intervalo entre elas. No dia da votação em primeiro turno da PEC, após a aprovação e encerrada a sessão legislativa pelo Presidente do Senado, ainda na mesma noite, menos de 1h depois, abriu-se uma nova sessão legislativa para votação da proposta relativa ao segundo turno.
Não obstante essas alegações dos autores, o STF não acolheu o pedido, prevalecendo, nesta questão, o entendimento do Ministro Luiz Fux que afirmou, apesar da exigência constitucional dos dois turnos de votação, não se pode concluir que existe um interstício mínimo entre os turnos, diferentemente como previsto para criação de lei orgânica municipal (artigo 29, caput, da CF/88) e da Lei Orgânica do DF (artigo 32, caput, CF/88).
Vale mencionar, todavia, que há previsão no Regimento Interno do Senado que determina o intervalo de 5 dias úteis entre os turnos de votação, a fim de permitir uma reflexão mais aprofundada sobre os temas de Emenda Constitucional, sobre o qual o STF se eximiu de apreciar, defendendo o dispositivo como exclusivo de controle exercido pelo próprio Poder Legislativo.
Logo, se para a hipótese de aprovação de Emenda, o texto constitucional não é expresso quanto à exigência, deve-se interpretar como um silêncio eloquente do Poder Constituinte. Assim, para o Ministro Fux, quando a Constituição exige dois turnos, ela requer, tão somente, duas etapas de discussão, as quais, para a aprovação da Emenda 62/2009, foram rigorosamente cumpridas, na visão do STF.
4.2 Inconstitucionalidade material
O regime de pagamento por precatórios é veiculado pelos artigos 100 da CF e 78 do ADCT. Em seu caput, o artigo 100 dispõe sobre a regra geral dos precatórios, noutras palavras, os pagamentos devidos pela Fazenda Pública por ocasião de decisão judicial transitada em julgado devem ser realizados em ordem cronológica de apresentação dos precatórios.
4.2.1 Créditos preferenciais para idosos
A primeira questão sobre a inconstitucionalidade material é relativa às preferências no recebimento de precatórios. O parágrafo 1º do artigo 100 prevê a preferência para débitos de natureza alimentícia, enquanto o parágrafo 2º estabelece que débitos de natureza alimentícia cujos beneficiários sejam a) pessoas com 60 anos ou mais de idade ou b) portadoras de doenças graves terão preferência aos demais débitos alimentares.
Sobre essas prioridades de créditos alimentares de idosos e portadores de doenças graves, deve-se salientar que há limite de valor, o qual foi declarado constitucional pelo Supremo. Destarte, se a quantia devida for muito alta, parte dela será paga com preferência, enquanto o remanescente será quitado na ordem cronológica de apresentação do precatório.
Tem-se, por outro lado, o problema do momento em que deve ser observada a idade de 60 anos para que exista o direito à preferência. O texto constitucional do parágrafo 2º do artigo 100 veicula que, para que o indivíduo tenha direito à superpreferência, ele deve possuir os 60 anos ou mais no dia da expedição do precatório pelo juízo competente.
Entretanto, entre o dia de expedição do precatório e a data efetiva do pagamento e extinção da obrigação, é possível haver um lapso temporal considerável, sendo corriqueiro que pessoa não idosa no momento de expedição do precatório, complete, nesse demorado decurso de tempo do processo, mais de 60 anos de idade.
Nessa perspectiva, foi correta a declaração de inconstitucionalidade parcial pelo Supremo Tribunal Federal da expressão “na data de expedição do precatório”, por compreender que o requisito viola o princípio da isonomia e que a preferência deve abarcar todos os credores com 60 anos completos que esperam pelo pagamento do precatório de natureza alimentícia, permanecendo o restante do parágrafo 2º do artigo 100 constitucional e válido.
4.2.2 Compensação obrigatória
Outra polêmica surgiu acerca de instituição de um sistema de compensação obrigatório estabelecido pelos parágrafos 9º e 10 do artigo 100. O Tribunal competente, anteriormente à expedição de precatório, deveria solicitar à Fazenda Pública devedora informações acerca de débitos líquidos e certos existentes, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o exequente. Se, porventura, houvesse débitos, deveriam ser abatidos do valor a ser pago pela Fazenda Pública, conforme estabelecia o parágrafo 9º, prevendo uma sistemática de compensação entre o que era devido pelo exequente e aquilo que era objeto do precatório.
A título de ilustração, considere-se que determinada sentença transitou em julgado e condenou o Estado do Ceará a pagar 200 mil reais a Mariana. O Tribunal deveria, antes de expedir precatório, averiguar junto à Fazenda Pública se Mariana era devedora de valor líquido e certo ao Estado. Em caso afirmativo, havendo uma dívida de 100 mil reais com a Fazenda, seria obrigatória a compensação e, por conseguinte, o precatório seria expedido no valor de 100 mil reais.
O Supremo Tribunal Federal, nessa esteira, declarou que os parágrafos 9º e 10 do artigo 100 são inconstitucionais, haja vista esta obrigatoriedade no regime de compensação estabelecer um desequilíbrio processual pendente à Fazenda Pública, violando diversas garantias constitucionais, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, a coisa julgada e a isonomia, além, é claro, o princípio da separação dos Poderes.
4.2.3 Atualização monetária
Ademais, conforme já afirmado, é comum passarem alguns anos entre o dia de expedição do precatório e a data em que a obrigação é extinta com o pagamento efetivo, o que pode gerar desvalorização do valor real do crédito por causa da inflação, se não houver a atualização da quantia devida.
Com o intuito de impedir essa desvalorização, o parágrafo 5º do artigo 100 estabelece o dever de atualização monetária do valor do precatório quando este for pago. A Emenda 62/09 determinou um novo modo, disposto no parágrafo 12 do artigo 100, para como calcular os valores de juros moratórios e correção monetária em caso de pagamento atrasado de precatório, adotando-se, destarte, os índices e percentuais aplicáveis às cadernetas de poupança.
Sobre essa disposição, inserida pela Emenda 62/09, o STF decidiu, acertadamente, pela inconstitucionalidade da expressão “índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança” presente no parágrafo 12 do artigo 100 da CF, pois o índice oficial da poupança não impede a redução de poder aquisitivo da moeda, por se tratar de índice fixado previamente, baseado em critérios técnicos os quais não se relacionam com a inflação considerada no período.
Os Ministros defenderam que todo índice que é definido ex ante é inábil para refletir a real flutuação de preços averiguada no período. Por isso, como o índice da poupança é incapaz de manter o valor real da condenação, constitui uma violação à garantia da coisa julgada, porque o valor real do crédito da condenação judicial não corresponderá ao valor real que o credor receberá efetivamente quando do efetivo pagamento do precatório for pago, por causa da inflação.
Outrossim, é mister destacar a flagrante agressão ao princípio da isonomia, pois a correção dos créditos do Poder Público é feita com base na taxa SELIC, valor consideravelmente superior ao da poupança.
Ainda sobre o parágrafo 12 desse artigo, o Supremo também optou por declarar a inconstitucionalidade da expressão “independentemente de sua natureza”, objetivando esclarecer que são aplicáveis para os precatórios de natureza tributária os mesmos juros de mora incidentes sobre o crédito tributário.
Ademais, vale mencionar que o artigo 1º-F da Lei n.º 9.494/97 faz previsão muito semelhante a aqui exposta, prevendo, também, que os índices a se aplicar, nas condenações contra a Fazenda Pública, eram os índices de caderneta de poupança. Logo, a declaração de inconstitucionalidade do parágrafo 12 do artigo 100 da CF acarretou no fenômeno conhecido por inconstitucionalidade por arrastamento, em que o Supremo Tribunal Federal, por consequência lógica, também decidiu pela inconstitucionalidade do dispositivo mencionado.
4.2.4 Regime Especial para Pagamento de Precatórios
Uma situação grave quanto ao sistema de pagamentos por precatórios é a que envolve Estados e Municípios, pois alguns desses entes deixam de pagar precatórios já vencidos há mais de uma década, diferentemente da União, em que o contexto não é demasiadamente caótico e os precatórios não chegam a atrasar de maneira absurda.
Isso acarreta outro problema: se alguns Municípios ou Estados fossem obrigados a pagar todos os precatórios devidos, essa quantia seria muito significante, por vezes até superior ao orçamento anual, pois se trata de dívidas que crescem de maneira considerável com o decorrer do tempo.
Nesse espeque, a Emenda Constitucional nº 62 de 2009 acrescentou o parágrafo 15 ao artigo 100, asseverando a possibilidade de criação de um regime especial para pagamento de precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, constituindo vinculações à receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação, por meio de lei complementar, com a finalidade de que este regime especial permitisse uma maneira de Estados, Distrito Federal e Municípios reduzirem suas dívidas de precatórios sem inviabilizar os orçamentos.
A mesma Emenda, além do parágrafo 15, inseriu o artigo 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que estabelece hipótese de um regime especial de pagamento dos precatórios até que fosse editada a lei complementar de que trata o parágrafo. Regime especial que traz a previsão de um conjunto de mordomias aos Estados e Municípios, autorizando que esses entes façam uma espécie de “pregão”. Com isso, os credores dos precatórios podem oferecer propostas descontando os valores a eles devidos, com o intuito de receber mais brevemente.
Dessa forma, o regime especial excepciona o disposto no artigo 100 da Constituição, criando uma exceção à ordem cronológica de apresentação dos precatórios, permitindo a concessão de desconto ao ente público, a fim de receber mais prontamente o seu crédito.
É por esse motivo, que muito bem leciona a doutrina no sentido de que a Emenda Constitucional nº 62 de 2009 fez previsão de uma nova modalidade de “moratória” ou “concordata” para os Estados, Distrito Federal e Municípios, fundamentando o famigerado epíteto de “emenda do calote”[26].
O Supremo, muito acertadamente, numa decisão digna de encômios, declarou inconstitucional esse regime especial para pagamento de precatórios do parágrafo 15 do artigo 100 da Constituição, bem como o previsto artigo 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
A Emenda Constitucional 62 de 2009 reconheceu o descumprimento, ao longo de vários anos, pelo Poder Público das ordens judiciais de pagamento em desfavor do erário, além de ter admitido a existência de dívidas ainda pendentes. Pendências estas que o Estado se inclina a adimplir, mesmo que de maneira restrita a pequena parte de suas receitas.
Finalmente, restou evidenciado que, o comportamento inadimplente do Poder Público e o novo regime instituído objetivaram desonerar o erário público, por meio de uma coerção aos titulares dos precatórios a participarem desses leilões/pregões de descontos de valores já assegurados por decisão judicial transitada em julgado, violação gritante à segurança jurídica e ao direito de propriedade do credor.
4.2.5 Modulação dos Efeitos da Decisão
Nos julgamentos da ADIs, foi levantada a discussão sobre a modulação dos efeitos das declarações de inconstitucionalidades aqui expostas, entretanto, decidiram os Ministros do Supremo Tribunal Federal postergar a deliberação do assunto para o momento em que fossem provocados.
Destaque-se o fato de que houve manifestação relevante de alguns Estados que participavam do processo na condição de amicus curiae ajuizaram pedidos para atribuir a modulação dos efeitos da decisão, que apenas foi apreciado recentemente, em março de 2015, dando fim às discussões das ADIs.
A decisão corria muito bem, em relação ao respeito aos direitos fundamentais à uma tutela executiva e a efetividade do processo; mas, recentemente, em 25 de março de 2015, o Supremo Tribunal Federal concluiu esse julgamento, tocando na questão relativa à modulação dos efeitos da decisão que declarou a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional (EC) 62/2009, que instituiu o regime de pagamento de precatórios neste trabalho analisado[27].
Segundo esta recente decisão, tomada em uma questão de ordem levantada nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade de números 4357 e 4425, restou conservado de forma parcial o regime especial da emenda, por um período de cinco anos, a ser contado de janeiro de 2016, decisão altamente questionável do ponto de vista exposto no presente estudo, mas que já se consolidou nas doutrinas que entendem pela possibilidade dessa modulação de efeitos que atribui efeitos ex nunc às decisões[28].
Fora, também, estabelecido um novel índice de correção monetária e fixada a possibilidade de compensação dos precatórios vencidos com o estoque de créditos já inscritos em dívida ativa.
Ressalte-se, por oportuno, que, para este caso da compensação de precatórios vencidos com a dívida ativa, ainda não se tem aplicabilidade imediata a decisão, pois a regulamentação do assunto fora delegada ao Conselho Nacional de Justiça, com uma proposta normativa apresentada ao STF. Também será do CNJ a competência para regulamentar o uso compulsório de 50% dos depósitos judiciais tributários no pagamento de precatórios, da mesma maneira, por meio de apresentação de proposta ao Supremo.
No que diz respeito a correção monetária, o Supremo Tribunal Federal também modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade relativas à EC 62/2009. Tomou essa decisão a fim de manter válido o índice básico da caderneta de poupança para a correção dos precatórios, até o dia do julgamento, e estabeleceu sua substituição pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E). Os precatórios em esfera federal, por sua vez, continuarão imperados pelo disposto nas Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) relativas aos anos de 2014 e 2015, haja vista já ter sido fixado o Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial como apontador de correção monetária.
Com esta decisão, que concluiu pela modulação dos efeitos, o regime especial, tão criticado até então, foi delongado. Ainda que de forma parcial, algumas medidas que ensejaram o infeliz apelido de "Emenda do Calote" vão permanecer. Ou seja, foram mantidas as compensações, leilões e pagamentos à vista, previstos pela emenda constitucional e já realizados, sendo, doravante, vedadas.
Por mais tempo ainda, já que o prazo estabelecido foi de cinco anos, serão conservadas a possibilidade de realizar acordos diretos com os credores, respeitando a ordem preferencial e o limite de 40% na redução do valor do crédito atualizado. Outrossim, pelo mesmo período, restou a vinculação de percentuais mínimos da receita corrente dos estados e municípios ao pagamento de precatórios, bem como foram sustentadas as sanções em caso de estes recursos não serem liberados.