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A Justiça e o Direito da Índia

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13/12/2003 às 00:00
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3 - O DIREITO HINDU

Como já dito, o Direito hindu é o Direito tradicional da Índia, aplicável pelos e aos adeptos do hinduísmo em determinadas situações (por exemplo, Direito de Família), coexiste com o Direito estatal.

3.1 - O DHARMA E O COSTUME

CHRÉTIEN-VERNICOS (Internet) fala sobre o Direito hindu de forma extremamente clara:

INTRODUÇÃO

Não se deve confundir hindu com indiano. Os habitantes da Índia são os indianos, dentre os quais, aqueles que adotam o hinduismo (religião) são os hindus. Direito indiano e Direito hindu não são sinônimos: o Direito indiano é o Direito do Estado indiano, que se aplica a todos os seus habitantes qualquer que seja sua religião, enquanto que o Direito hindu é o Direito que somente se aplica à comunidade hindu. A exposição das concepções hindus do Direito começa por um paradoxo porque não há na tradição hindu termo para explicar o conceito de Direito, bem assim o sentido jurídico da palavra lei. Em 1772, o governo britânico ordenou que "em todos os processos referentes a sucessões, casamento, castas e outros usos e instituições religiosos" aplica-se aos hindus suas próprias leis. Foi então necessário fazer-se um esforço para estudar e traduzir os livros sânscritos nos quais estavam codificadas as "leis hindus". Esses livros eram o que se chamava de "tratados de dharma"; daí a equação feita para os tradutores ocidentais: tratado de dharma = livre de Direito, código, e dharma = Direito

Os indianos seguiram essa prática. Todavia, quando se traduziu o conceito de Direito nas línguas modernas utilizaram-se outros termos. Assim, nos dicionários hindis modernos existem dois termos para Direito, um emprestado da tradição arabo-persa (muçulmano) kanun e a outra da tradição sânscrita (hindu) vidhi. E quando a Constituição indiana foi traduzida em hindi, vidhi foi traduzida oficialmente por Direito.

Tal fato é devido a que as línguas indianas modernas tinham todas elas utilizado a expressão dharma para designar um outro conceito importado do Ocidente: religião. A idéia de um Direito separado da religião ou de uma religião separada das outras regras de vida social não existe na tradição hindu. O pivô do sistema é o dharma, que não é nem religião, nem Direito, mas que representa os conceitos hindus do Direito.

Nós veremos de início a noção de dharma (§1º) depois as fontes do dharma (§2º) e enfim os caracteres do dharma (§3º)

§1 – Noção de dharma

A – A EXPRESSÃO DHARMA

Dharma é formado com o sufixo ma sobre a raiz dar ou dhr. Essa raiz exprime a ação de segurar, suportar, manter, preservar, guardar. Dharma é a maneira segundo a qual, ou os meios pelos quais alguém segura, suporta ou mantém. Por uma aproximação de sentido isso se torna não somente a maneira de fazer as coisas mas também a única maneira de fazê-las.

Dharma é a maneira como se deve portar, suportar ou manter.

No nível cósmico, dharma é a maneira como se mantêm todas as coisas, a maneira como o cosmos ou o equilíbrio do cosmos é mantido. No nível microscópico, é a maneira como cada elemento constitutivo do cosmos contribui com sua parte para manter o equilíbrio geral. Certamente, cada elemento cósmico tem seu próprio dharma, mas na prática, os hindus fixam sua atenção sobre o dharma dos seres vivos. Cada indivíduo tem seu próprio dharma, seu svadharma determinado essencialmente por dois fatores: o fato de pertencer a uma das quatro etapas da vida (asrama), o fato de pertencer a uma das quatro classes sociais (varna). O dharma de cada um é a maneira pela qual ele deve se comportar para manter a ordem cósmica existente.

B – O DOMÍNIO DO DHARMA

O dharma de uma pessoa regula todas suas atividades quaisquer que seja sua natureza.

1 – Suas atividades cotidianas:

Quando ela deve acordar, como deve dividir suas atividades diárias, quando ela deve dormir. Sua alimentação, o que ela deve comer, qualitativa e quantitativamente.

2 – As relações humanas com os poderes sobrenaturais.

Prescreve os rituais das cerimônias pelas quais essas relações são mantidas, e assim, o que fazer em termos religiosos.

3 – As relações de um indivíduo com os seus semelhantes. O dharma governa também os contatos sociais, dos quais muitos aspectos pertencem ao campo do Direito.

O Direito hindu é, com todos os outros aspectos das atividades de um hindu, parte do dharma hindu. As regras do Direito hindu serão encontradas nos dharmasastras, os Tratados de dharma, mas esses textos contém uma infinidade de outras regras que têm pouco ou nada em comum com o Direito. Além disso, o dharma, é principal fonte do Direito, admite além dele próprio outras fontes.

§ 2 – As fontes do Direito hindu

As fontes do Direito hindu são o dharma, do qual veremos as fontes materiais, mas também o costume.

A – AS FONTES MATERIAIS DO DHARMA

O dharma provém de uma Revelação (sruti), que posteriormente foi parcialmente escrita, desde a tradição e enfim de comentários, que foram baseados em precedentes.

1° -A Revelação ou a literatura sruti

Sruti, sruti, shruti, significa audição, de onde ouvido, de onde revelado.

O dharma provém de uma Revelação que beneficiou alguns escolhidos e que foi parcialmente escrita nos textos sagrados chamados Veda, que significa o conhecimento (do latim vídeo, ver), mas também sabedoria.

Os védas consistem em quatro coletâneas das quais a mais antiga é o Rigveda, que data de mais ou menos 1100 a.C. M. Sinhá escreve que o Rigveda é o texto mais sagrado para os hindus" e que constitui "uma parte da tradição hindu viva". A literatura védica é essencialmente de natureza religiosa e houve necessidade de ser desenvolvida e interpretada.

2° - A Tradição ou a literatura smriti

Smrti é a memória daquilo de que se lembra igual a tradição.

Autores humanos, sábios, interpretaram entre 600 e 100 a.C. as revelações e moldaram-nas em uma ciência jurídica do dharma.

Suas obras são em geral chamadas dharmasastras: tratados de dharma, mas se distinguem cronologicamente dois tipos: os dharmasutras e os dharmasastras.

a – Os dharmasutras

Chamam-se dharmasutras, a primeira literatura smriti. São manuais de dharma em prosa 9suscinta e enigmática) utilizada igualmente para outros segmentos do saber (ioga, arquitetura...). Eles enunciam os preceitos de dharma sob forma de aforismos. Foram sem dúvida compostos entre 600 e 300 a.C.

Os mais antigos e mais célebres são os atribuídos a Gautama, Apastamba, Vasistha e Baudhayana. Os primeiros dharmasutras são muito vagos e apresentam pouco interesse quanto aos aspectos jurídicos do dharma. Com o tempo cada vez mais as regras de Direito aparecem e ainda mais nos dharmasastras.

b- Os dharmasastras

Desde seu aparecimento os dharmasastras, deram seu nome ao conjunto de textos. São mais detalhados e escritos em versos, dísticos de 32 sílabas chamadas sloka). Os mais significativos são os de:

  • Manu, chamado Manusmriti, provavelmente escrito sob a forma atual entre 200 a.C. e 200 d.C.. É sem dúvida a tradução em versos métricos de uma obra superior de dharmasutra atribuída a Manu. Tornou-se o mais influente dos textos de Direito e de doutrina hindu tanto na Índia quanto no sudeste da Ásia.

  • de Yajnavalkya, escrito em nome de um sábio ilustre entre 100 a.C. e 300 d.C., enunciado proeminente do Direito hindu durante o período britânico.

  • Narada, nome de um antigo sábio, provavelmente entre 100 e 300 d.C.

  • Consideram-se também entre os dharmasastras, os poemas épicos, dentre os quais Mahabharata:

  • O Mahabharata, a grande (maha=magna) história épica das batalhas das tribos baratas (tribos arianas que invadiram a Índia) é o mais extenso poema épico do mundo. É uma história-padrão, ou seja, um conjunto de narrações nas quais diversas histórias sucessivas são incluídas, no interior de outras histórias. O núcleo do texto deve datar de mais ou menos 500 a.C.; mas o texto atual contém muitas adições posteriores e é impossível datar as diversas partes com exatidão. Uma data entre 200 a.C. e 200 d.C. é muitas vezes utilizada. É dividida em 18 partes menores (parvan). As passagens de doutrina jurídica se encontram mais freqüentemente na décima segunda parte, o Santi parva, nos 129 primeiros capítulos, Bishan (o autor suposto das passagens jurídicas) discorre sobre os deveres do rei (rajadharma); os 38 seguintes tratam dos deveres especiais em tempos de dificuldades; apaddharma; os 189 capítulos do fim têm menor interesse jurídico e tratam do fim da existência terrestre (mokshadharma).

Enfim encontra-se entre as fontes do Direito uma obra que pertence à artha (a ciência do útil e do governo).

  • O Kautilya, obra escrita entre 325 a.C. e 200 d.C., da categoria de arthasastra [5], que expõe a ciência para atingir o bem-estar material e o sucesso. Por referências indiretas sabe-se que ele existia no entanto somente foi reencontrado no início do século XX no sul da Índia. Provavelmente composto principalmente por uma pessoa chamada Canakya ou Kautilya, que era ministro de Candagupta Maurry, o qual dirigiu um império no norte da Índia de 321 a.C. a 297 a.C.. Essa obra foi indubitavelmente composta entre 320 e 300 a.C.. É um texto maquiavélico que ressalta o artha em detrimento do dharma e afirma que o fim justifica os meios.

3° - Os comentários, nibandhas

A partir do século VIII, cessa-se de escrever novos dharmasastras. Daí em diante serão interpretados nas obras freqüentemente chamadas de gestos, nibandhas. Foram muito utilizados durante o peíodo colonial, mas os especialistas em dharma parecem fazer pouco caso dessas obras.

B – O COSTUME

O costume, "achara", é também considerado como uma fonte de Direito tratando-se da "prática engrandecida e sem ambigüidade dos virtuosos. Os dharmasastras mencionam a possibilidade da aplicação do costume, falando na prática dos bons sadacara ou prática dos sábios sistacara. Assim foi dito: " as leis do país, castas, famílias que não são opostas (contrárias) aos textos sagrados têm também autoridade". "Os agricultores, comerciantes, criadores, emprestadores de dinheiro e artesãos (têm autoridade para afirmar as regras) para sua respectiva classe". Tendo tido conhecimento de processos desse tipo quem (em cada classe) tem autoridade para falar dará a decisão jurídica." Conforme um autor, se em princípio os sastras são a fonte teórica do Direito, na prática as máximas e costumes tinham prevalência.

§ 3 – Os caracteres do dharma

O dharma se aproxima em significado do que nós chamamos Direito, no entanto, não é a mesma coisa que ele.

A –O DHARMA NÃO RECONHECE DIREITOS MAS UNICAMENTE DEVERES

Fundado sobre a crença de que existe um ordem no universo inerente à natureza das coisas, necessárias à preservação do mundo. O dharma é o conjunto de obrigações que se impõe aos homens, porque elas decorrem da ordem natural das coisas.

Conseqüentemente, nosso conceito de Direito subjetivo (fundamento do nosso Direito atual) parece aos hindus profundamente exótico: o dharma é concentrado na idéia de dever e não de direito. Um dharma particular é desenvolvido nos dharmastras, é aquele do rei, e consiste igualmente em deveres.

O rei é denominado raja porque seu dharma mais elevado é de tornar as pessoas felizes (ranjayati). Ainda uma vez, esses deveres são encarados como uma contribuição à manutenção do equilíbrio geral. Sua responsabilidade é de sustentar o equilíbrio entre os indivíduos e o seu reinado. Deve proteger o fraco contra os ataques do forte, para que este último não devore o primeiro como um peixe na água.

B – O DHARMA CONSAGRA A DESIGUALDADE SOCIAL

O dharma não é o mesmo para todos, dependendo de um lado da casta do indivíduo e de outro de sua idade, do estágio de vida no qual ele se encontra

1° - A casta

A organização social da Índia é caracterizada pelas castas. A casta é um conjunto de pessoas a quem o nascimento permite de contratar casamento entre elas e de se alimentarem juntas. (endogamia, comensalidade, craft exclusiveness) Conforme um texto do Rigveda, os hindus se dividem em princípio em quatro classes (varnas):

  • Os Brahmanes, encarregados do ensino e dos sacrifícios religiosos;

  • Os Ksatriyas ou guerreiros, encarregados de proteger a ordem através das armas;

  • Os Varsyas, encarregados dos negócios;

  • Os Sudras, encarregados da agricultura.

O restante da população é considerado fora das castas: os chandalas ou párias. O sistema é na realidade mais complexo, pois se combina com um outro sistema chamado jati, que já existia na Índia no momento da invasão das tribos arianas.

Existem por volta de 2000 castas (jâti), ordenada hierarquicamente cada casta, com um real despreso pelas castas inferiores.

2° - Os estágios da vida, ashram ou asaram ou asrama

Idealmente, a vida de cada pessoa (mâle) passa por quatro etapas.

  • O estudante, brahmancharine (ou bramacarin), início da vida, deve ser consagrado ao celibato, à austeridade e ao estudo;

  • O grahastha (ou grhasth), chefe de família, chefe da casa;

  • O vanaprastha, ermitão na floresta, que não se preocupa com os bens deste mundo;

  • O Sanayasin, o asceta.

C - O DHARMA É UM DIREITO REVELADO MAS NÃO ABSOLUTO

1° - O dharma pode em determinadas situações ceder o lugar ao costume

Os dharmasastras são superpostos à todas as coletividades existentes nas quais cada castas, cada região, cada família e cada grupamento tem seus costumes particulares. Os bramares que escreveram os dharmasastras não eram puros teóricos, não eram legisladores mas sim moralistas cuja missão essencial era de revelar aos homens as regras de conduta decorrentes da natureza das coisas. Se as regras atualmente seguidas, as regras costumeiras estão de acordo com o ensinamento dos sastras, elas ficam consagradas, adquirindo força obrigatória. Mas, em caso de desconformidade, a regra do dharma não prevalece frente à regra costumeira. Para o comum dos homens absorvidos nos seus trabalhos cotidianos não se pode querer obrigá-los senão aos seus costumes ancestrais. Bem assim, os dharmasastras reconhecem a primazia do costume sobre a regra do dharma. Pode-se citar inclusive Manu (IV, 178), quando afirmando que se deve seguir o costume dos seus ancestrais. E E o mesmo autor recomenda aos reis se informarem sobre os usos das castas do país, dos guildes, das famílias e fixarem os deveres de cada um (VIII, 41). Assim, em razão de sua própria natureza, a regra do dharma não pode se impor, ela apenas propõe.

As prescrições dos dharmasastras não se tornam regras de Direito a não ser quando são aceitas pela população e sejam praticadas por ela.

2° - O dharma é somente "relativamente" imutável

Conforme a teoria, o dharma, revelado, é eterno e imutável. Todavia, parece que os textos, apesar de aparentarem uma fascinante uniformidade, dão muitas vezes soluções diferentes ao mesmo problema podendo-se pensar que se tratam de variações locais ou temporais, mas muitas vezes as variações estão dentro de um mesmo texto. Os autores hindus apresentam então duas explicações.

a – A teoria do apad ou dificuldade

Não contentes em apresentar soluções diferentes para o mesmo problema, os textos permitem explicitamente tipos de variações especiais. Em numerosas ocasiões, após um assunto particular do dharma ser enunciado, são apresentadas regras suplementares para serem aplicadas somente em casos de apad, o que geralmente se traduz em épocas de sofrimentos. Mas a expressão não se apresenta sempre claramente definida, pode-se evidentemente referir a calamidades gerais, tais como inundação ou seca, mas pode também se referir a um sofrimento referente a uma ou algumas pessoas. A teoria do apad pode então ser vista como uma indicação que os autores dos textos sobre o dharma admitiam possível um determinado grau de variação do Direito e adaptação do Direito às circunstâncias.

b –As idades do mundo

A teoria segundo a qual o dharma é eterno (sanatana) e imutável deve ser adaptada a um outro conceito muito popular no hinduismo. Os hindus, como os antigos gregos e muitas outras civilizações crêem na sucessão de quatro yugas (idades do mundo), do melhor para o pior. O tempo presente é o Kaliyuga, a idade de Kali. O dharma era perfeito durante a primeira idade, mas diminui de um quarto a cada idade sucessiva, com o resultado de que na idade de Kali, o dharma se mantém apenas sobre um dos pés. Conseqüentemente, numerosas práticas descritas nos textos do dharma são chamadas Kalivariyas, "práticas a serem evitadas na idade de Kali". Por exemplo, os dharmasastras mais recentes utilizaram esse critério para explicar as posições antigas e contraditórias sobre o lévirat (nigoya): o lévirat era uma prática comum nas primeiras idades, mas deve ser evitado no Kaliyuga. O hinduismo acredita inicialmente na deterioração gradual de cada yuga e em seguida no eterno retorno, com interrupções, das quatro idades. A conclusão lógica é então que para os hindus ortodoxos dharma e Direito são de fato sujeitos a mudanças contínuas.

3.2 - A LEGISLAÇÃO E A JURISPRUDÊNCIA

A legislação e jurisprudência em face do dharma são abordados por DAVID (1996:440-441):

Legislação e precedentes judiciais não são considerados pelo dharma e pela doutrina hindu como fontes do Direito. É permitido ao príncipe legislar. Porém, a arte de governar e as instituições do Direito Público dependem do artha, não do dharma. O dharma exige que se obedeça às ordens legítimas do príncipe, mas ele próprio continua, pela sua natureza, fora das "intromissões" deste. Legislação e ordens do príncipe não podem produzir efeito algum sobre o dharma. São apenas medidas ditadas pela oportunidade e possuem um caráter temporário; justificadas pelas circunstâncias do momento, serão modificadas quando estas circunstâncias tiverem mudado. Por outro lado, postos em presença de uma lei, os juízes não poderão aplicá-la rigorosamente; uma grande discrição lhes deve ser concedida para conciliar, tanto quanto for possível, justiça e governo.

Tal como na legislação, não se pode ver uma verdadeira fonte do Direito na jurisprudência. A organização da justiça é, como a legislação, uma matéria que depende do artha. As decisões dos tribunais podem ser justificadas pelas circunstâncias, O dharma é simplesmente um guia; é da ordem natural das coisas que os juízes se afastem dele, se boas razões os impedem de com ele se conformarem, contanto que não ofendam um princípio fundamental do dharma. A decisão do juiz, em vista deste empirismo, não deve em caso algum ser considerada como um precedente obrigatório; a sua autoridade é limitada ao litígio que foi submetido à sua apreciação; ela apenas tem justificação em relação às circunstâncias especiais que a originaram.

3.3 - A DOUTRINA MODERNA

DAVID (1996:441-442) mostra a doutrina moderna do Direito hindu:

O dharma agrupa as regras do Direito e a sua forma de expressão é bem diversa da dos direitos do Ocidente ou do Direito muçulmano. Prescrições de ordem ritual e de ordem jurídica se misturam uma às outras nos dharmasastras. Um grande número de regras que interessam ao Direito deviam, por isso, ser procuradas nos livros que, por seus títulos, parecem se referir mais à religião do que ao Direito.

O livro que mais particularmente se referia ao Direito, como se entende no Ocidente, era um livro chamado vyavahara. Começava por tratar da administração da justiça e do processo e continuava por considerar dezoito categorias de litígios, respeitantes ao Direito privado e ao Direito criminal.

Algumas regras de Direito Público eram formuladas nos dharmasastras, mas a ciência do governo era objeto de uma outra ciência, tratada nos arthasastras.

Os autores de livros modernos sobre o Direito hindu, influenciados pelas concepções ocidentais, já não pretendem expor o dharma, mas sim o Direito positivo que é aplicável nos nossos dias aos hindus. Eles excluem das suas obras tudo o que, segundo a concepção ocidental, pertence ao domínio da religião e também todos os ramos de Direito que vieram a ser regulados, na India, pelo Direito territorial aplicável a todos os indianos, sem considerar a religião a que pertencem. O Direito hindu, por eles exposto, compreende principalmente as seguintes matérias: filiação, incapazes, adoção, casamento e divórcio, propriedade familiar, sucessões ab intestat, sucessões testamentárias, fundações religiosas, damdupat, convenções benami, indivisão perpétua. Estas matérias não deixam transparecer a originalidade profunda do Direito hindu; mas basta abrir um livro de Direito hindu para descobrir, no interior de cada uma delas, numerosos termos que não puderam ser traduzidos porque correspondem a noções desconhecidas no Ocidente. Existem, por exemplo, segundo o Direito hindu, oito espécies de casamentos, e a existência de uma propriedade familiar (Joint Family property) contribui igualmente para a complexidade do Direito hindu. É necessário estar-se familiarizado com concepções e estruturas sociais do hinduísmo para poder ler e compreender um livro de Direito hindu.

3.4 - A DOMINAÇÃO MUÇULMANA

DAVID (1996:442) mostra como ficou limitado o Direito hindu nesse período:

Sob o domínio muçulmano, que se estabeleceu no norte e no centro da Índia no século XVI, os tribunais apenas aplicaram o Direito muçulmano. O Direito consuetudinário hindu continuou a ser aplicado pelos panchayats [6] de castas, mas não pôde desenvolver-se e ver reforçada a sua autoridade pela ação dos organismos, judiciários ou administrativos, do Estado. Ele afirma-se, assim, como questão da religião, da decência e dos costumes, mais do que como Direito.

PANIKKAR (1977:326) esclarece sobre o Direito hindu no período da dominação muçulmana:

Os muçulmanos não tocaram nas leis... [porque] não dispunham de aparelho legislativo adequado.

O Direito muçulmano aplica-se somente aos adeptos dessa corrente religiosa, tal como o Direito hindu, e, assim mesmo, restrito a determinados aspectos da vida desses adeptos, dentre os quais a área de Família e Sucessões.

DAVID (1996:429) fala que as jurisdições tradicionais muçulmanas [foram] suprimidas na Índia Britânica desde 1772 [...]

3.5 - A DOMINAÇÃO BRITÂNICA

PANIKKAR (1977:326) esclarece sobre o Direito hindu no período da dominação britânica, dizendo que os ingleses não interferiram no Direito hindu por uma questão de conveniência, a fim de evitar atrito com os nativos.

DAVID (1996:442-443) trata agora do período da dominação britânica:

Tal era a situação quando, no século XVIII, o domínio britânico se substituiu — primeiro de fato, depois de Direito — ao do Grande Mogol.

De acordo com o princípio que constantemente dominou a sua política, os novos conquistadores da Índia não procuraram impor aos seus novos súditos o Direito inglês. Eles pretenderam aplicar às populações dá Índia, principalmente em matéria de Direito privado, as regras que lhes eram familiares. O estabelecimento do domínio britânico teve, no entanto, sobre a evolução do Direito hindu, uma influência considerável. Esta influência manifestou-se de duplo modo.

Inicialmente manifestou-se de modo positivo, fazendo sair o Direito hindu da clandestinidade e reconhecendo oficialmente o valor e a autoridade deste direito, contrariamente ao que acontecia sob o domínio muçulmano: Direito hindu e Direito muçulmano foram colocados no mesmo plano, no momento em que os juízes britânicos tiveram de estatuir sobre litígios para os quais se aplicavam esses direitos.

Se o domínio britânico foi, sob este aspecto, favorável ao progresso do Direito hindu, foi, pelo contrário, sob outro ponto de vista, fatal ao Direito hindu tradicional. Originou uma profunda transformação deste Direito; e teve, sobretudo, como corolário acantoná-lo na regulamentação de certas relações, enquanto setores cada vez mais importantes da vida social foram submetidos a um novo Direito de natureza territorial aplicável a todos os habitantes da Índia sem considerar a sua religião.

3.6 - AS INTERFERÊNCIAS DA FRANÇA, HOLANDA E PORTUGAL

Antes de consolidar-se definitivamente a dominação inglesa sobre toda a Índia, existiam ainda colônias de outros países sobre o território indiano.

Para conhecimento da realidade histórica mostramos ao Leitor alguns dados que, se não têm valor de atualidade, têm-nos como, no mínimo, curiosidades históricas, principalmente quanto a Pondichéry.

BONNAN (1999) fala da vida judiciária de Pondichéry (então colônia francesa na Índia) no período compreendido entre 1766 e 1817, com características francesas, bem diferenciadas das demais regiões da Índia. A colonização francesa também atingiu as regiões de Carical, Maé e Chandernagor, sendo que em 1954 a França entregou à Índia todas suas então colônias.

Sabe-se que nas regiões de Goa, Damão e Dio (à essa época colônias portuguesas na Índia), as atividades judiciárias tinham contornos portugueses, devolvendo Portugal à Índia em 1961 sua última colônia (Goa).

O mesmo se pode dizer quanto ao espaço colonizado pelos holandeses na Índia, restritos à área de Cochim.

Na época a Índia era um território muito maior do que a atual Índia (pois englobava o atual Paquistão), no entanto fragmentado em inúmeros governos independentes e não formando uma unidade a não ser com a independência em 1947.

Cada um desses governos locais ou regionais mantinha suas regras de Direito e sua Justiça própria.

Os ingleses foram, certamente, os unificadores da Índia e sua presença durante cerca de dois séculos no solo indiano alterou profundamente a estrutura do país.

No entanto, não se pode desprezar as demais interferências, como a francesa, holandesa e portuguesa, pela contribuição que deram em termos de maior ocidentalização da Índia.

ANNOUSSAMY (2001:59-61) fala num repositório de costumes tamúis redigido por Claas Isaaksz, chefe da localidade de Jaffnapatnam, apresentado ao governador Cornelis Joan Simons, da Índia holandesa, que ANNOUSSAMY classifica como um documento precioso.

3.7 - O RECURSO AOS PUNDITS

DAVID (1996:443) fala da colaboração decisiva dos pundits (estudiosos do Direito hindu) nas áreas dominadas exclusivamente pelos ingleses:

O desejo de respeitar as regras do Direito hindu foi contrariado pela ignorância que os novos donos da Índia revelaram, no início do seu domínio, sobre o Direito hindu. Originariamente os ingleses acreditaram, de maneira errada, que o dharma era o Direito positivo da Índia. Entretanto, as obras que o comentavam estavam escritas numa linguagem que eles não conheciam, e a sua complexidade desorientava-os. Para se libertarem dos obstáculos, por diversas vezes pensaram levar a cabo uma obra de codificação. Enquanto esta obra não era realizada, recorreram a um expediente. Decidiram que os juízes seriam auxiliados por peritos, os pundits, que lhes indicariam, com base nos dharmasastras e nibandhas a solução aplicável ao litígio. Até 1864, a função do juiz foi somente conferir força executória à decisão que os pundits lhe indicavam como devendo ser dada ao litígio.

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3.8 - O RECURSO A OUTRAS TÉCNICAS

DAVID (1996:443-444) fala dos outros recursos para bem interpretar o Direito:

Os pundits foram, por parte de alguns autores, objeto de veementes críticas. Acusaram-nos de terem sido venais, de terem interpretado mal os textos do Direito hindu, e até de os terem falseado. Na realidade, o próprio princípio sobre o qual era fundado o recurso ao pundits era falso: a solução dos litígios não podia buscar-se unicamente nos livros sagrados, porque as regras neles expostas apenas constituem um ideal; no momento da sua aplicação é necessário dotá-las de uma grande flexibilidade para que sejam também considerados os costumes e a eqüidade.

Os juízes britânicos sentiram-se sempre embaraçados, enquanto a sua atividade se limitou unicamente a dar força executória às decisões dos pundits. Quando foram publicadas traduções suficientes dos livros dos dharmas, quando igualmente passaram a existir livros de Direito e especialmente compilações de jurisprudência relativas ao Direito hindu e escritas em inglês, o sistema que fora seguido pareceu ultrapassado. E isso era mais evidente porque a ciência agora revelava e denunciava o erro que fora cometido na caracterização da natureza e da autoridade do dharma.

Mas qual era então a solução que convinha adotar? A atitude tomada não foi a mesma por toda parte. As províncias e os tribunais eram agora muito independentes uns dos outros. No norte e no centro da India compilaram-se os costumes das populações e começou-se a aplicá-los. No sul, pelo contrário, na jurisdição do tribunal de Madras, perseverar-se-ão os processos anteriores, considerando, em suma, que as populações pareciam estar profundamente conformadas com eles, e que a segurança das relações jurídicas impunha o respeito pelos precedentes.

3.9 - DEFORMAÇÃO SOFRIDA PELO DIREITO HINDU

DAVID (1996:444-446) fala das modificações que ocorreram no Direito hindu:

O modo como o Direito hindu foi aplicado, em um e outro caso, suscitou muitas críticas. Os juízes, se queriam seguir as regras do dharma, estavam mal apetrechados para o fazer. Um terço ou, no máximo, a metade dos dharmasastras foi traduzida em língua inglesa, e os juízes apenas podiam ter um conhecimento muito parcial de um sistema que exigia o conhecimento global das suas fontes. Sancionaram-se assim regras que nunca tinham existido ou que tinham caído em desuso. Por outro lado, se pretendiam aplicar os costumes, os juízes arriscavam-se a aceitar demasiado facilmente como verdadeiras as descrições destes, contidas em obras escritas pelos europeus que não haviam visto ou compreendido em toda a sua complexidade as concepções e os costumes hindus. A infinita variedade e o caráter destes costumes não puderam ser compreendidos pelos juristas habituados à idéia de uma commune ley. Os juízes britânicos, por outro lado, de acordo com os seus próprios métodos, concederam aos precedentes judiciários uma autoridade que a tradição hindu de modo algum lhes reconhecia. Por vezes, também modificaram, de modo consciente, o Direito hindu, pois, na verdade, as suas soluções pareciam-lhes chocantes — nunca se aperceberam que estas soluções podiam corresponder ao sentimento de justiça existente no seio da comunidade hindu. A necessidade de usar uma terminologia inglesa, imprópria para exprimir os conceitos do Direito hindu, foi outra das causas da distorção deste Direito. Por efeito destes diversos fatores, o Direito hindu foi submetido a consideráveis deformações no período do domínio britânico.

A recepção das regras de prova do Direito inglês veio modificar as condições de aplicação do Direito hindu. Idéias tiradas da equity inglesa foram, do mesmo modo, aplicadas para regular as relações entre membros de uma comunidade familiar de bens ou o estatuto das fundações de caridade hindus; no primeiro caso, deformaram a noção hindu de benami c, no segundo caso, vieram deformar o conceito hindu de fim altruísta ou exigir condições que a liberdade dharma na o comportava segundo o Direito hindu.

Estas deformações serviram para reduzir uma diversidade de costumes locais, que os próprios hindus consideravam como um mal. Por outro lado, muitas vezes, contribuíram para uma evolução que muitos acham ter sido benéfica, na medida em que modernizava o Direito hindu, respeitando o seu espírito. Os juristas hindus aprovam, assim, certos desenvolvimentos que a jurisprudência operou em matéria de comunidade familiar ou em relação ao princípio que impõe ao filho pagar as dívidas justamente contraídas pelo seu pai. Os tribunais souberam, nestas matérias, respeitar as idéias fundamentais do Direito hindu, suavizando, com considerações de boa-fé e de eqüidade, o que a regulamentação tradicional podia apresentar de mais absoluto e obsoleto. Era justo e necessário que se produzisse uma evolução do Direito hindu; os tribunais, por vezes, apenas fizeram reconhecer o valor de novos costumes, em condições perfeitamente admissíveis do ponto de vista do Direito hindu; reconheceram a validade do testamento feito por um hindu, quando a prática de testar, ignorada completamente pelo antigo Direito hindu, se difundiu.

3.10 - LIMITAÇÃO DO DOMÍNIO DO DIREITO HINDU

DAVID (1996:446-447) mostra como o Direito hindu tem um âmbito restrito:

O domínio britânico não teve simplesmente por efeito deformar, quando o julgava aplicável, o Direito hindu. Ele teve, outrossim, a conseqüência de o limitar a certos domínios.

Ohinduísmo, que atribui a cada ato do homem um valor espiritual, destinado a regular em todos os seus aspectos a vida social, está apto a formular, para todas as situações concebíveis, regras de conduta. Porém, somente certas categorias de relações — aquelas que interessam a uma sociedade essencialmente agrícola e rural — tinham sido objeto da regulamentação elaborada, até o momento em que o domínio britânico se instalou na Índia. Existiam numerosas regras relativas à organização da família ou das castas, ao regime da terra, e ao das sucessões. Nas outras matérias o Direito hindu era pouco desenvolvido. Não pagar as dívidas, por exemplo, era simplesmente considerado pelo dharma como um pecado; o Direito não previa uma sanção precisa no caso de inadimplência do devedor.

Odomínio britânico pôs termo ao desenvolvimento original que o Direito hindu tinha podido comportar, relativamente às novas relações advindas da evolução da sociedade. O Direito hindu foi aplicado pelos tribunais apenas em certos domínios particulares: sucessões, casamento, castas, usos e instituições ligados à religião. Fora disto, é um outro sistema de Direito, como vamos ver, que se desenvolveu e se aplicou na Índia.

Poderia ter sido de outra maneira? Permitimo-nos duvidar disso.

A regra em Bombaim, Calcutá e Madrasta era que o Direito hindu dos contratos devia ser aplicado quando o réu fosse um hindu. O princípio assim exposto não teve grande efeito na prática; os interessados optaram, a maior parte das vezes, por submeter a sua questão ao Direito inglês, que comportava uma maior certeza; a própria interpretação do Direito hindu foi muitas vezes feita à maneira dos juizes estranhos à civilização da Índia.

3.11 - A LEGISLAÇÃO BRITÂNICA

DAVID (1996:447) fala da influência do Direito inglês:

Os próprios hindus manifestaram o desejo de reformar um Direito que apenas imperfeitamente correspondia aos seus costumes. A maneira normal de operar estas reformas devia ser pelo recurso à legislação. As autoridades britânicas, porém, intervieram com reserva no domínio em que o Direito hindu fora limitado. Ao tempo do domínio britânico, somente leis de alcance limitado foram promulgadas. Rejeitaram-se certas regras, ligadas ao sistemas das castas ou consagrando a incapacidade da mulher, que chocavam numerosos elementos evoluídos da população hindu. Regularam-se igualmente em 1870, pelo Hindu Wills Act, os testamentos feitos pelos hindus. Mas nenhuma codificação geral interveio para modernizar e expor no seu conjunto o Direito hindu; esta obra fora projetada em 1833, mas o projeto foi abandonado em 1861.

Uma obra legislativa mais importante foi concluída, quando do domínio britânico, a respeito das matérias onde se deixara de aplicar o Direito hindu; mais adiante iremos expor o movimento que contribuiu para constituir um Direito anglo-indiano. Devemos somente assinalar que, apesar das grandes leis que se publicaram, continuou, em certos aspectos, a ser possível tomar em consideração concepções próprias do Direito hindu. Os tribunais de Bombaim e de Calcutá puderam assim continuar, depois da promulgação do Indian Contract Act, em 1872, a sancionar a dita regra de damdupat, segundo a qual os juros não podem, em caso algum, elevar-se a uma soma superior ao capital que é devido; o tribunal de Madras julgou de modo diferente, entendendo que esta regra se devia considerar revogada; mas uma lei de 1938 veio recolocá-la em vigor, em Madras, no tocante às dívidas contraídas nos estabelecimentos agrícolas.

3.12 - A INDEPENDÊNCIA

DAVID (1996:447-451) fala do Direito hindu após 1947:

A independência da Índia, conseguida em 1947, modificou os dados do problema e originou um novo desenvolvimento no Direito hindu.

No plano judiciário, as diferentes High Courts estabelecidas na Índia Britânica eram apenas, antes da independência, submetidas ao controle, estrangeiro e longínquo, da Comissão Judiciária do Conselho Privado; os tribunais dos Estados principescos (Baroda, Travancore, Cochin, Mysore, Hyderabad) eram plenamente soberanos e escapavam a esse controle.

Depois da independência, um novo Supremo Tribunal veio coroar a hierarquia de todos os tribunais estabelecidos na Índia. Compete-lhe a confirmação ou a retificação das decisões tomadas na época do domínio britânico; uma certa obra de reforma e de unificação do Direito hindu pôde, assim, ser realizada.

No plano legislativo, foi constituída uma comissão legislativa para estudar, a nível geral, algumas formas legislativas que deveriam ser introduzidas no Direito da Índia sem excetuar o Direito da comunidade hindu, Os trabalhos desta comissão levaram desde logo a resultados espetaculares. Não existe, por assim dizer, nenhum princípio importante de Direito ortodoxo que não tivesse sido afetado ou renovado pela legislação ou pelos códigos.

A Constituição repudiou o sistema das castas; o artigo quinze proíbe toda a discriminação fundada sob pretexto da casta. Toda a matéria do casamento e do divórcio foi profundamente reformada pelo Hindu Marriage Act de 1955 (alterado em 1964). O casamento, considerado como um sacramento pela religião hindu, era para o Direito hindu tradicional uma doação que os pais da mulher faziam desta ao marido; a mulher, objeto do contrato, não tinha de consentir o casamento; o casamento era indissolúvel e a poligamia autorizada. Todas estas regras foram repudiadas pelo novo Direito hindu: a poligamia é proibida; a lei prevê o divórcio e até a possibilidade de conceder uma pensão alimentar ao cônjuge divorciado; exige que os cônjuges consintam pessoalmente no casamento, como se se tratasse de um contrato, e estabelece uma idade mínima para o casamento tanto para o homem como para a mulher; reduz igualmente o número de impedimentos matrimoniais. Uma verdadeira revolução é, portanto, trazida ao Direito hindu. A nova lei, porém, continua a ser apenas aplicável aos hindus e não a todos os cidadãos da Índia, tendo sido conservadas certas regras tradicionais do Direito hindu.

Três outras partes de um Código Hindu, da qual a lei sobre o casamento constitui a primeira parte, foram votadas pelo parlamento: a parte relativa à menoridade e à tutela (Hindu Minority and Guardianship Act, 1956), a parte relativa às adoções e à obrigação alimentar (Hindu Adop tions and Maintenance Act, 1956) e a parte relativa às sucessões (Hindu Succession Act, 1956).

A lei sobre as sucessões, coroando um movimento que já inspirara um certo número de leis, esforça-se por assegurar a devolução sucessória de acordo com a ordem preestabelecida pela vontade do defunto, ordem na qual as mulheres encontram um lugar; a sucessão, segundo o Direito hindu antigo, era reservada exclusivamente às pessoas que podiam, segundo a religião, conceder vantagens de ordem espiritual ao defundo, e esta idéia diretriz conduzia em geral à exclusão das mulheres. Os inconvenientes do sistema limitavam-se a uma época em que os bens, salvo exceções, eram propriedade da família; o declínio da comunidade familiar de bens, na nossa época, tornou necessária a alteração do Direito.

Reformas de grande alcance foram igualmente efetuadas em matéria de comunidade familiar de bens. Já em 1930, declarou-se que os salários adquiridos pelos indivíduos lhes pertenciam como bens próprios. Esta primeira reforma foi seguida de outras. Desde 1936, uma parte da propriedade familiar cabe, como bem próprio, aos diversos herdeiros ou legatários, entre os quais figura a viúva do defunto. Leis de reforma agrária procuraram, por outro lado, nos diversos Estados da Índia, depois de 1950, reduzir os grandes domínios, evitando, contudo, uma fragmentação excessiva da propriedade.

O Direito hindu sofreu, nos nossos dias, profundas reformas. Continua a ser um Direito unicamente aplicável à parte hindu da população da Índia; mas numerosos costumes que comprometiam a unidade deste Direito foram abolidos. Em relação ao passado, esta é uma importante modificação. As reformas que foram operadas são, por outro lado, substanciais. Daí não resulta que sejam condenáveis em face da ortodoxia. O dharma foi elaborado para uso de grupos sociais colocados a níveis muito diversos de civilização; nunca pretendeu ser mais do que um ideal, destinado a orientar a conduta dos homens, e acomoda. se, pela sua própria natureza, a todas as espécies de acordos provisórios impostos pelo costume ou pela legislação; a situação é aqui muito diferente da do Direito muçulmano. Os atuais governos da Índia puderam afastar-se consideravelmente deste Direito-modelo; contudo, não deixaram de afirmar, sempre que possível, o seu respeito pelos princípios da civilização hindu. O desejo de ser fiel à tradição existe apesar de todas as mudanças, e o Direito hindu permanece, por esta razão, como uma das concepções fundamentais da ordem social existente no mundo contemporâneo.

Uma transformação radical é realizada quando concebemos o Direito não no quadro da comunidade hinduísta, mas sim no quadro das fronteiras geográficas da Índia. Esta mutação foi operada, como veremos, em numerosos domínios, onde atualmente convém falar, em vez de Direito hindu, de Direito indiano.

O artigo quarenta e quatro da Constituição previu a generalização deste sistema, com a elaboração de um código civil que seria comum a todos os cidadãos da Índia. Porém, como se viu, um outro método foi utilizado; é para uma modernização e uma unificação do Direito hindu que até aqui se orientaram os esforços. Não é impossível, contudo, que se chegue gradualmente a realizar a promessa da Constituição, por meio de reformas que, em pontos particulares, afastarão ou modificarão os direitos de estatuto pessoal para os substituir por um Direito comum.

Certas leis podem iniciar tal movimento, prevendo e regulando relações entre indianos de credos diferentes, que a religião de uns e outros não autorizava. O Special Marriages Act, 1954, declara, assim, válidos em face da lei os casamentos celebrados entre hindus e muçulmanos ou outros não-hindus. A adoção desta lei define claramente a revolução que se operou nas idéias desde há um século; há cem anos, sir Henry Maine havia efetivamente elaborado um projeto de lei semelhante, mas este projeto viria a ser abandonado em virtude da oposição unânime que suscitara; "bispos, pundits, rabinos, mobeds e mullahs encontravam-se, pelo menos por uma vez, em completo acordo". É possível que um Direito interpessoal venha assim a desenvolver-se, constituindo uma nova espécie de ius gentium aplicável no domínio até agora reservado a estatutos pessoais distintos.

Seja qual for a evolução futura, o Direito hindu continua a ser, atualmente, para a imensa maioria dos indianos, o único sistema de Direito que diz respeito à sua vida privada. É aquele que rege o seu estatuto pessoal e este é compreendido no seu sentido mais amplo. O estatuto pessoal não abrange só as relações extrapatrimoniais, mas também compreende aspectos do Direito patrimonial, quer se considere o Direito sucessório ou a comunidade familiar de bens. O Direito hindu penetra, por este meio, no Direito Comercial. Se um negócio, por exemplo, é explorado pelos membros de uma família, como será muitas vezes o caso, sem que estranhos a esta família lhe sejam associados, as regras do Direito Comercial indiano, insertas no Indian Partnership Act, não serão aplicáveis; as relações entre sócios serão reguladas pelo Direito hindu, porque elas derivam do seu estatuto e não se consideram como emergentes de um contrato. Por outro lado, não é necessário insistir sobre a importância que apresenta a comunidade familiar de bens, do ponto de vista do crédito, num país onde apenas a família pode, em princípio, ser proprietária; mas parece que as comunidades familiares de bens se vão tornando cada vez mais raras.

O que é permitido pergunta-se, sobretudo, é em que medida o Direito estatal dá hoje conta da realidade sociológica da Índia. O legislador pode, de um só golpe, abolir o regime das castas, autorizar os casamentos intercastas, substituir os punchayats de aldeias aos punchayats de casta tradicionais. Porém, a sua obra, mesmo se necessária ao desenvolvimento do país não pode, de um dia para outro, mudar hábitos e pontos de vista enraizados há séculos e ligados a crenças religiosas. A maioria dos hindus (80%), vivendo no campo, continua a viver como seus antepassados; são administrados e julgados, à margem dos organismos oficiais, pelas instituições que sempre conheceram. Uma obra de legislação não basta; impõe-se uma obra paciente de reeducação.

Osucesso desta obra está ligado ao desenvolvimento de uma economia moderna na Índia; é evidente a dificuldade de escapar aqui a um círculo vicioso, sendo este desenvolvimento consideravelmente freado pelas estruturas, crenças e comportamentos forjados por uma tradição imemorial, sempre venerada.

3.13 - AS LEIS DE MANU

As Leis de Manu contêm o maior número de normas jurídicas do Direito hindu.

ANNOUSSAMY (2001:7-9) mostra a diferença entre as opiniões de E. DALLOZ ("in" Répertoire méthodique et alphabétique de legislation, de doctrine et de jurisprudence, t. I, livre 1, Paris, édition de 1870) e E. GIBELIN (Études sur le droit civils des hindous; recherches de législation comparée sur des lois de l''Inde, les lois d''Athènes et de Rome, et les coutumes des Germains, t. 1, Pondichéry, 1846), adotando o primeiro um tratamento de crítica rude contra determinados institutos jurídicos hindus e o segundo muito complacente com esses mesmos pontos questionáveis.

Por aí se vê que o tema é extremamente polêmico.

BOUGLÉ (1993) fala sobre esse Código:

Não que ele constitua, como se acreditou, no "Código da Índia". Mas, de todos os textos hindus onde se encontram questões de Direito, ele foi sem dúvida, desde há muito tempo, o mais conhecido e estimado: numerosas inscrições colocam Manu à testa dos juristas, e nenhuma revelação, nas regiões mais diversas, é mais comentada que a sua. [...] O Código de Manu é de início e acima de tudo um breviário de conduta piedosa. O Direito somente aparece nos Códigos hindus misturado, melhor dizendo, envolvido e trespassado pela religião. [...] A noção de sanção puramente restitutiva não é lembrada. Para distinguir as infrações civis dos crimes propriamente ditos, a terminologia era insuficiente: parece que todas as infrações eram do mesmo grau (aparâdha), que trazem como conseqüência os castigos (danda). [...] O Direito Civil e comercial não tinham sido ainda destacados do Direito penal. [...] Se o criminoso queria se esquivar dos tormentos futuros somente tinha um recurso: procurar voluntariamente os castigos que lhe prescreviam os brâmanes. [...] A maior parte dos castigos rigorosos...não são aplicados aos brâmanes; seus prestígio desarma os rigores do braço secular. Eles podem ser condenados ao banimento, mas não à morte. Ninguém pode castigá-los fisicamente mesmo que com um ramo de erva. De forma mais geral, o teto das comissões varia em função da situação social das pessoas: atinge o máximo quando o ofendido pertence às altas castas e o ofensor às mais baixas. [...] Em resumo, imbuido de religião e ligado à desigualdade, menos preocupado em reparar do que em punir, e de punir na forma mais dura, tal nos parece, através dos Códigos clássicos o Direito hindu.

Transcrevemos a tradução de Ana Clara Victor da PAIXÃO do original em inglês de Raimon PANNIKAR, divulgada através da Internet em http://www.serrano.neves.nom.br/cgd/036_xxx_cgd/041cgd.htm:

1. Um rei, desejoso de investigar casos legais, deve entrar em sua corte de justiça, preservando uma postura digna, juntamente com os Brâmanes e seus conselheiros mais experientes.

2. Ali, sentado ou de pé, erguendo seu braço direito, sem ostentações em suas vestes ou ornamentos, examinará os assuntos dos pretendentes.

3. Diariamente decidirá um após outro os casos que lhe forem submetidos sob os dezoito títulos da lei, de acordo com os princípios extraídos dos costumes locais e com os Institutos da sagrada lei.

4. Desses títulos, o primeiro é o não pagamento de débitos, depois o depósito e o penhor, a benda sem propriedade, as desavenças entre parceiros, e as doações,

5. O não pagamento de salários, não cumprimento de acordos, rescisão de compra e venda, disputas entre proprietários e servos,

6. Disputas de limites, lesão corporal e difamação, furto, roubo e violência, adultério,

7. Dívidas do homem e da esposa, partição da herança, jogo e aposta, estes são, neste mundo, os tópicos que geram demandas judiciais.

5. De acordo com a lei eterna, decidirá as pretensões dos homens que demandarem os assuntos já mencionados.

9. Mas se o rei não investigar pessoalmente as lides, apontará um estudioso Brâmane que as julgará.

10. Este homem entrará naquela alta Corte, acompanhado por três assessores, e analisará todas as causas submetidas ao rei, sentado ou de pé.

11 - O lugar onde os três Brâmanes versados em Vedas e o estudioso indicado pelo rei se sentarem será chamado "a corte de Brahman".

12 - Mas onde a justiça, ferida pela injustiça, se apresentar, e os juizes não extraírem o dardo, então eles também serão feridos pelo dardo da injustiça.

13 - Ou a corte não deve ser adentrada ou a verdade deve ser dita. Um homem que não diz nada ou fala falsamente se torna um pecador.

14 - Onde a justiça é destruída pela injustiça, ou a verdade é destruída pela falsidade enquanto os juizes olham, estes também devem ser destruídos.

15 - A justiça, sendo violada, destrói; a justiça, sendo preservada, preserva. Assim, a justiça não deve ser violada, uma vez que a justiça violada nos destrói.

16 - Pela divina justiça, diz-se que um vrishna que a viola (a justiça) é considerado pelos deuses como sendo um homem abominável como um Sudra; terá ele, assim, a recompensa por violar a justiça.

17 - O único amigo que segue os homens depois da morte é a justiça, pois tudo o mais é perdido ao mesmo tempo que o corpo.

18 - Um quarto da culpa por uma decisão injusta cairá sobre aquele que cometeu o crime, um quarto sobre a falsa testemunha, um quarto sobre todos os juizes, e um quarto sobre o rei.

19 - Mas quando aquele que é merecedor da condenação é condenado, o rei está livre da culpa, e os juizes estão salvos do pecado, e a culpa recairá apenas sobre o perpetrador do crime.

20 - Um Brâmane que vive apenas pelo nome de sua casta, ou aquele que se autodenomina um Brâmane, embora sua origem seja incerta, pode, se agradar ao rei, interpretar a lei, mas nunca um Sudra.

21 - O reinado desse monarca, que assiste enquanto um Sudra aplica a lei, afundará como uma vaca no pântano.

22 - Aquele reinado onde Sudras são muito numerosos, que está infestado por ateus e destituído de habitantes "duas vezes nascidos", em breve perecerá inteiramente, afligido pela fome e pela doença.

23 - Tendo ocupado o assento da justiça, tendo coberto seu corpo, e tendo louvado as divindades guardiãs do mundo, deverá ele, com a mente concentrada, começar o julgamento das causas.

24 - Sabendo o que é moralmente correto e o que não é, o que é justiça pura ou injustiça, ele examinará as causas dos suplicantes de acordo com a ordem das castas (varna).

25 - Pelos sinais externos ele descobrirá a disposição interior dos homens, por suas vozes, suas cores, seus movimentos, seus aspectos, seus olhos e seus gestos.

26 - O funcionamento interno da mente é perceptível através da aparência, os movimentos, o andar, os gestos, a fala, e as mudanças dos olhos e da face.

27 - O rei deverá proteger a herança e outras propriedades do menor, até que ele tenha retornado da casa do seu tutor, ou até que ele deixe para trás sua menoridade.

28 - Da mesma maneira devem ser amparadas as mulheres estéreis, ou aquelas que não tem filhos, ou cuja família tenha sido extinta, ou aquelas esposas viúvas fiéis a seus senhores, e aquelas mulheres afligidas por doenças.

29 - Um rei rigoroso deverá punir como ladrões aqueles parentes que se apossarem das propriedades de tais mulheres durante suas vidas.

30 - O rei manterá em depósito, durante três anos, os bens daqueles que houver desaparecido; dentro deste período o proprietário dos bens deverá reclamá-los, depois disso o rei poderá tomá-los.

31 - Aquele que diz "Isto me pertence" deve ser examinado de acordo com a regra; se ele descreve acuradamente a forma e o número de artigos que encontrados, então ele é o proprietário, e deve receber a propriedade.

32 - Mas se ele não sabe realmente o tempo e o local onde o bem foi perdido, sua cor, forma e tamanho, ele é merecedor de uma multa de valor igual ao do objeto reclamado.

33 - Agora ao rei, recordando o dever dos homens bons, deverá tomar um sexto da propriedade perdida e depois encontrada, ou um décimo, ou pelo menos um duodécimo.

34 - A propriedade perdida e depois encontrada pelos servos do rei deverá permanecer guardada em poder de oficiais; aqueles que o rei condenar por havê-la roubado, ele os fará serem mortos por um elefante.

35 - Daquele homem que disser verdadeiramente a respeito de um manancial de riquezas "Isto me pertence", o rei tomará um sexto ou um duodécimo.

36 - Mas aquele que o afirmar falsamente, será multado em um oitavo de seus bens, ou em uma parte do valor calculado do tesouro que existia.

37 - Quando um estudioso Brâmane encontrar um tesouro, enterrado nos tempos antigos, ele deverá tomá-lo por inteiro, pois ele é o mestre de tudo.

38 - Quando o rei encontrar um tesouro oculto na terra ele dará a metade aos Brâmanes, e porá a outra metade em seu tesouro.

39 - O rei receberá metade dos valores e metais encontrados no solo, em troca de sua proteção, e porque ele é o senhor do solo.

40 - A propriedade roubada por ladrões deve ser devolvida pelo rei aos homens de todas as castas; um rei que usa tal propriedade para si incorre na mesma culpa que o ladrão.

41 - Um rei que conhece a lei sabrada, deve estudar a lei das castas, dos distritos, das guildas e das famílias, e aplicar a lei peculiar a cada um.

42 - Pois os homens que seguem suas próprias ocupações e cumprem com os seus próprios deveres se tornam queridos pelo povo, mesmo que vivam à distância.

43 - Nem o rei nem seus servos devem iniciar uma lide, nem tentar extinguir aquela que tenha sido submetida a sua apreciação por outro homem,

44 - Como um caçador encontra a toca de um veado ferido pelas gotas de sangue, assim deve o rei descobrir de que lado jaz a verdade, pelas inferências dos fatos.

45 - Quando envolvido em procedimentos judiciais, ele deve prestar completa atenção à verdade, ao objeto da disputa, e a si mesmo, mais do que às testemunhas, ao local, ao tempo e ao aspecto.

46. O que pode ser praticado pelos virtuosos, pelos homens "duas vezes nascidos" devotados à lei, será estabelecido como lei, se isto não contrariar os costumes dos países, famílias e castas.

47. Quando um credor pede, diante do rei, a restituição da quantia de dinheiro em poder do devedor, ele fará com que o devedor pague a soma que o credor prove ser devida.

48. Por quaisquer meios que o credor seja capaz de obter bens de propriedade do devedor, até mesmo por esses meios ele poderá forçá-lo e fazer com que pague.

49. Através de persuasão moral, por meios legais, por meios artificiosos, ou pelo procedimento costumeiro, um credor pode recuperar a propriedade emprestada; e (até mesmo) pela força.

50. Um credor que recupere por si mesmo a sua propriedade não deve ser ser culpado pelo rei por retomar o que lhe pertence.

ALTAVILA (2000:61-82) analisa com rigor o Código de Manu:

O Código de Manu não poderia deixar de ser um código copioso e exaustivo, oriundo que foi de uma civilização mística e convencional, cujo rendilhado de pedra dos templos imensuráveis e inúteis, espelha a sua orientação rotineira e persistente.

[...] O código hamurábico era um cárcere; porém um cárcere espaçoso, com janelas gradeadas, por onde entravam livremente o ar e a luz.

A lei escrita de Manu era, todavia, um subterrâneo tenebroso, onde o hindu de classe média ou inferior encontrava infalivelmente um abismo legal diante de cada passo inseguro, pois os degraus que nele se construíram eram anulados pelas cavidades.

Há, no livro do prof. Carlos Ayarragaray "La Justicia en la Biblia y en Talmud" um esclarecido comentário da legislação de Manu, feito por Alberto López Camps onde destacamos esta consideração acertada:

— "La ley de Manu forma un código de preceptos artificiales, que respondió al ideal de cíerta escuela brahmanica, y no es una legislación proclámada por un poder público".

Quando os árias invadiram a Índia, transportaram consigo princípios monoteístas; porém esse período védico foi superado pelo período bramânico que destruiu a epopéia cosmogônica dos arianos e evolucionou pela legislação religiosa da casta invencível dos sacerdotes.

O Código de Manu (Manu foi o Adão do paraíso indiano) faz parte da coleção dos livros bramânicos, enfeixado em quatro compêndios: — o Maabdrata, o Romaiana, os Purunas e as Leis de Manu.

É natural que, instituindo a vida estatal, o culto, as relações civis e criminais, — tenham os brâmanes consagrado uma preponderância absoluta sobre a vida nacional, através de leis que não admitiam comentários.

O período búdico, que se projetou seis séculos antes de Cristo, modificou profundamente a fase teogônica anterior, mas aboliu em absoluto os preceitos raciais que ainda hoje subsistem.

E tanto assim que, em face da perseguição dos brâmanes, o budismo emigrou, com eficiência, para a Indo-China, Japão, Tibet e Mongólia, onde encontrou um solo espiritual favorável ao seu enraizamento.

Manu foi apenas um pseudônimo da classe sacerdotal. Havia sempre o proclama de uma emanação divina em todas as leis de antanho, como já dissemos. Era um meio astucioso de corresponsabilizar os deuses pelos interesses humanos.

[...] O Código de Manu, inspirado a Brama pelo descendente do Ser Supremo e que "le Richi Bhrigou est supposé l’avoir fait connaitre" no século XIII, — foi traduzido do sânscrito para o francês por M. Loiseleur-Deslonchamps e editado em 1850 sob a direção de M. Lafévre, na coleção "Moralistes anciens".

O professor Hersílio de Souza, em 1924, publicou uma tradução portuguesa, recolhida do original francês. Evidencia-se no seu trabalho um cunho de meticulosidade, conquanto diferente do original francês nos textos complementares. A tradução presumidamente foi feita dessa edição centenária que consultamos, pois o autor diz: — "Seguindo Deslonchamps, damos aqui a parte das leis de Manu que constituem propriamente o Código Civil e Criminal, encerrados nos capítulos oitavo e nono".

A obra editada em Paris se mostra em três partes, tratando respectivamente de Religião, Moral e Leis Civis, sendo que a tradução de vinte e cinco instâncias foi feita por M. Pauthier, conforme declara o editor, sendo Deslonchamps o autor de "toute la suite".

As duas primeiras partes vão se entrelaçar adiante, na última, que se amplia precisamente por oito capítulos: — Das Funções dos Juízes, Dos Testemunhos, Dos Juramentos, Do Roubo, Do Adultério, Dos Deveres do Marido e da Mulher, Dos Jogos de Azar e Apostas, Dos Deveres do Kchatrya, do Vaisya e do Soudra e das Classes Misturadas.

A tradução do professor pernambucano seguiu uma melhor técnica de codificação e compreende 18 Títulos, uma Parte Geral e Disposições Finais. Observamos ainda que a tradução direta do sânscrito não distribui as matérias em forma articulada, ao passo que a versão portuguesa se distende em caráter numérico.

Podemos, assim, admitir a existência de uma outra edição, consultada pelo autor de "Novos Direitos e Velhos Códigos".

Van Bemmelen, depois de nos esclarecer que Max Müller apresentou as traduções inglesas de cinco códigos hindus, sob o título Sacred books of the East, refere-se à existência de outras traduções e bem assim diz que "otros de los códigos relacionados con la ley de Manu han salido de las escuelas brahmánicas: ei de Narada, dei siglo IV, V e VI de nuestra era; y ei de Brihaspati, que acaso sea todavia un poco más reciente".

Formulado dez séculos depois do Código de Hamurabi, não teve, todavia a projeção legal deste, porquanto a legislação cuneiforme se infiltrou pela Assíria, Judéia e Grécia e constituiu "um legado comparável ao que Roma fez ao mundo moderno".

Foi um código sem ressonância fora dos limites hindus. Seu manuseio vale por unia dissecação legal e nada mais.

A parte geral — Da Administração da Justiça — desdobra-se inexplicavelmente nestes três capítulos, sendo que o último não se justifica estar ali encaixado, pela diversidade da matéria:

I —Dos ofícios dos juízes.

II — Dos meios de prova.

III — Das moedas.

O artigo 1º estabelecia um freio inicial para o rei, que "deve comparecer à Corte de Justiça em um porte humilde, sendo acompanhado de brâmanes e de conselheiros experimentados". Tudo isto apenas simples exteriorismo, para impressionar os milhões de seres bestializados pelo horror dos castigos e pelo narcótico do medo daquele mundo além da morte, para onde os justiçados já iam com a condenação lavrada na terra. E como os brâmanes eram os compendiadores da lei, por esse intróito do código o soberano não poderia de modo nenhum decidir sozinho, ou mesmo acompanhado dos seus conselheiros.

O artigo 3º, como comprovação do emaranhado legal hindu, é redigido da seguinte forma:

Que cada dia ele decida, unia depois da outra, pelas razões tiradas dos costumes particulares locais às classes e às famílias e dos Códigos e leis, as causas classificadas sob os dezoito principais títulos que se seguem.

Logo daí se estabelecia o sentido previlegial consuetudinário e o merecimento das castas e das linhagens.

Quando, todavia, os casos não se enquadravam nas matérias capituladas, o rei poderia julgar "seus negócios apoiando-se sobre a lei eterna". Ora, essa lei eterna resultaria da consulta feita aos brâmanes e do modo como quisessem eles nortear a sentença do soberano, — sempre acautelando os interesses da classe das funções religiosas.

Segue-se um amontoado de considerações, sempre visando a superioridade do pensamento sacerdotal, do qual se salva esta concepção elevada:

Art. 13 — A justiça é o único amigo que acompanha os homens depois da morte; porque qualquer outro afeto é submetido à mesma destruição do corpo.

Mais adiante, e para que o rei não desprestigiasse a casta influente, vem esta consideração pitoresca:

Art. 17 — Quando um rei tolera que uni sudra pronuncie julgamento à sua vista, seu reino está em perigo igual ao de uma vaca num atoleiro.

Como parte pretensiosamente psíquica, mas perigosa nos julgamentos, esclarecia-se que:

Art. 22— Conforme o estado do corpo, o porte, a marcha, os gestos, as palavras, os movimentos dos olhos e da face, se adivinha o trabalho interior do pensamento.

Prossegue o capítulo com a determinação de que se um homem achasse um tesouro, o rei deveria ter dele 6%, ou 10%, conforme a condição do descobridor. Se o tesouro fosse achado por um brâmane, seria todo seu, "porque ele é senhor de tudo o que existe". E se o descobridor fosse o próprio rei, então os brâmanes teriam direito a 50% do achado. Deduzimos que o soberano hindu, em tal conjuntura, ficava colocado em condição inferior à de um simples indivíduo que desenterrasse um punhado de ouro ou de pedras preciosas.

O segundo capítulo, — Dos meios de prova — é vastíssimo e decalcante da matéria nele próprio estatuída. Prescreve-se que somente homens dignos de confiança, "isentos de cobiça", possam ser escolhidos para testemunhas de fatos levados a juízo; sendo tal missão vedada aos artífices de baixa classe, aos cozinheiros, aos atores, aos estudantes, aos ascetas e aos hábeis teólogos que seriam, então, uma espécie de advogados, desnecessários a esclarecerem a confusão legal.

A mais interessante proibição testemunhal é, entretanto, a que contém adiante:

Art. 49- Nem um infeliz acabrunhado pelo pesar, nem um ébrio, nem um louco, nem um sofrendo de fome ou sede, nem um fatigado em excesso, nem o que está apaixonado de amor, ou em cólera, ou uni ladrão.

Desta maneira, o hindu que se apresentasse perante a corte, estando reconhecidamente apaixonado por uma mulher, não merecia fé pública para depor, era considerado em privação de sentido. Num estado em que os casamentos eram negociados na infância pelos pais dos nubentes, havia mesmo razão de considerar um louco o homem que se apresentasse descontrolado pelos efeitos perturbantes do amor.

É de justiça, porém, esclarecer que o código hindu, nessa exceção processual, vai ao encontro da moderna teoria do renomado jurista italiano prof. Enrico Altavila, pois no primeiro volume de sua Psicologia Judiciária, no capítulo pertinente às "Emoções e paixões", estão consignados, em abono de Manu, os seguintes argumentos:

"O amor apresenta, como as idéias fixas, fenômenos muito evidentes de obsessão e de impulsão: a obsessão implica uma restrição especial do campo da consciência, que explica o exclusivismo, que é o caráter distintivo da paixão. O homem enamorado é, por conseguinte, testemunha medíocre, pela obtusidade da sua consciência, para percepcionar acontecimentos estranhos ao seu amor, e pelos freqüentes erros do juízo que comete".

Nessa emergência, a patologia forense dos indo-arianos oferecia um aspecto que a psicologia penal do século XX referenda através da obra do ilustre criminalista da Universidade de Nápoles.

Quanto ao testemunho feminino, a lei bramânica circunscrevia-o desta forma:

Art. 50 — Mulheres devem prestar testemunho para mulheres.

O artigo seguinte, porém, excepcionava o crédito visual e auditivo, expressando que "na falta de testemunhas convenientes, pode—se receber o depoimento de uma mulher".

Ainda em socorro do Código de Manu fomos encontrar, neste particular, esta observação do professor argentino Ricardo Levene, no seu livro El Delito de Falso Testimonio:

"El sexo es otro factor. La mujer depone más bajo ei influjo de los sentimientos y pasiones que ei hombre. Su psiquis suele volverse más irritable por sus estados patológicos normales. Su emoción se acrescenta en estado de gravidez y además es facilmente sugestionable".

Derivando sempre pelo sentido racial, as leis indianas indicavam taxativamente que os "misturados" somente poderiam depor para a casta amorfa daqueles que se uniam ou resultavam da união de castas diferentes.

A testemunha que depunha sobre coisa diversa do que vira e ouvira, seria "precipitada no inferno, com a cabeça para baixo e privada do céu". Neste particular, como lá observamos. Manu também legislara para a eternidade.

Oartigo 109 estabelecia o grau das penas: - simples repreensão, severas censuras, multa e castigo corporal. A pena espiritual ficava omissa neste dispositivo, conquanto surgisse, impiedosa, em muitos outros artigos tenebrosos. Observemos que o próprio rei poderia ser recomendado ao fogo do inferno pelos brâmanes, desde que não aplicasse aos culpados os castigos legais, — isto é, aqueles que os seus conselheiros achassem compatíveis com os seus interesses. Era, assim, o soberano hindu um prisioneiro político e religioso daquela casta que retinha nas mãos ávidas todos os poderes do nebuloso e complicado estado bramânico.

O terceiro capítulo da parte introdutiva, — Das moedas, —nos seus oito dispositivos dedicados ao cobre, à prata e ao ouro, evidenciava que o metal circulante merecia urna atenção especial dos legisladores brâmanes.

O valor monetário começava da poeira do sol quando "passa através de uma janela". Oito grãos de poeira formavam, então, a unidade metálica concreta. Seguiam-se os valores crescentes, até atingir uma "nikka", que deveria ser o maior valor concebido pelos economistas da Índia. Entretanto, o código não se referia ao privilégio da cunhagem das moedas, nem às falsificações ou cerceios. Tanto melhor para a aplicação das penalidades arbitrárias, urdidas no momento crucial dos julgamentos.

A parte especial derivava, de início, para as dívidas.

A ação de cobrança tinha a sua propositura perante o rei, depois de o credor ter usado inutilmente de todos os recursos legais: — astúcia, ameaça e violência.

Omutuante de dinheiro garantido por um penhor tinha direito, além do seu capital especializado, aos juros de 100% ao mês.

Não coma a prescrição em determinados casos e sobre determinados "bens", como prescrevia a lei:

Art. 143 - Um penhor, o limite de uma terra, o bem de uma criança, um depósito aberto ou selado, "mulheres", as propriedades de um rei e as de um teólogo, não ficam perdidas por que um outro delas goze.

Podia-se fazer a inovação da dívida, desde que fossem pagos os juros; o filho não respondia pelas dívidas do pai, desde que ele tivesse gasto o dinheiro com mulheres, músicos, jogo e licores espirituosos.

Os ébrios, os loucos e os doentes eram incapazes para contratar. Os contratos somente eram válidos se "compatíveis com as leis estabelecidas e os costumes imemoriais".

A fraude anulava o contrato; os herdeiros pagavam as dívidas do de cujus; as dívidas poderiam ser ressarcidas com a prestação de trabalhos e a lei proibia que os advogados administrativos fizessem queixa dos credores perante os soberanos.

O capítulo — Dos depósitos — apresentava esta disposição recomendável:

Art. 174 — Qualquer que seja o objeto e de qualquer maneira que ele seja depositado nas m5os de uma pessoa, deve se reaver esse objeto da mesma maneira; assim depositado, assim restituído.

O capítulo — Das empresas comerciais feitas por associados — introduz no direito uma instituição que mais tarde, na Idade Média, foi generalizada na Europa Central: a associação de classe ou o cooperativismo.

E estabelecia, então, o velho código.

Art. 204 — Quando vários homens se retinem para cooperar, cada um por seu trabalho, em uma mesma empresa, tal é a maneira por que deve ser feita a distribuição das partes.

Compreendia-se perfeitamente o espírito de tal instituição, pois a indústria manual gerava toda a economia do país e bem caprichosos foram aqueles artesãos que trabalharam no engaste das gemas preciosas, nas primorosas estatuetas de marfim, nos móveis de decorações reveladoras de um refinado senso artístico, nos lavores de prata e ouro sobre famosas caixas de teca, nos couros luxuosamente pirografados, nos interiores onde a pintura revelava as belezas da fauna e da flora. Foram eles que retalharam no monólito dos templos aquelas milhares de estátuas e baixos-relevos dos deuses medonhos da mitologia indo-ariana. Contentados com a casa, o pão e a esperança de um lugar na eternidade, compraziam-se em realizar tuna obra silenciosa e duradoura. Esqueciam a sua própria condição humilde, na criação de um estilo que culminou também na fatura dos vasos de metal, recamados de frisos damasquinados de prata, nos bizarros instrumentos de música tauxiados de madrepérola e marfim, nas aljavas de recamos esquisitos, nos capacetes de guerra, nos tecidos de maravilhosa estamparia, nos objetos de adorno que são legitimas obras-primas. Quando a lei os reconheceu e os amparou, não foi certamente por benignidade, mas pela necessidade de sua sobrevivência laboriosa e construtiva.

O capítulo destinado às ações para serem retomadas as coisas dadas não possui valor analítico, parecendo-nos que as doações não eram costumeiras entre os hindus.

O capítulo — Da recusa de cumprir as convenções é omisso e impreciso, não oferecendo igualmente margem para um comentário que possa interessar. A retrovenda era cabível em todos os negócios, dentro de dez dias, mesmo que não, estivesse exarada no corpo do contrato e se tratasse de coisa imperecível. Essa norma de arrependimento foi introduzida na legislação moderna com a prévia especificação pelas partes contratantes, pelo que concluímos que a tradição da coisa vendida somente se operava necessariamente depois do prazo fixado pelo art. 215.

O capítulo - Das contestações entre proprietários de animais e pastares — não se reveste de aspecto merecedor de crítica, tendo apenas um sabor bucólico e regional.

No capítulo — Das questões sobre limites — exigia-se que os demarcadores teriam de exercer as suas funções "pondo terra sobre as cabeças, conduzindo grinaldas de flores vermelhas e com vestimentas vermelhas". Somente assim, sob tal dilúvio escarlate, a demarcação teria valimento perante a corte, porque a cor exercia uma importante significação psicológica em tais audiências.

O capítulo — Das injúrias — era ferocíssimo: estabelecia penas de língua cortada, estilete de ferro em brasa, óleo fervendo pela boca e pagamento de multa.

Na parte — Das ofensas físicas — Talião se apresenta como colaborador de Manu. Aliás ele exerceu notável influência em todas as legislações antigas, inclusive na grega e na romana. Passemos por cima de tantos requintes de crueldade, indignos de serem comentados.

O código dos brâmanes distinguia o furto e o roubo. Em qualquer dos casos, as penalidades máximas se relacionavam com os bens das classes superiores, principalmente da casta sacerdotal.

A diferenciação estava contida neste dispositivo:

Art. 324 - A ação de tirar uma coisa por violência, à vista do proprietário, é um roubo; em sua ausência, é furto, do mesmo modo o que se nega ter recebido.

A distinção da lei era, entretanto, quanto à presença ou ausência do dono da coisa, desprezando o característico da violência física instituído no Direito subsequente.

A legítima defesa era tomada em consideração, desde que não houvesse no criminoso "nenhum meio de escapar".

O capítulo mais apurado e mais minucioso é o Do adultério ampliando-se por 69 artigos, por vezes repetidos. O zelo por esse aspecto da vida hindu deixa-nos diante deste dilema: ou a previsão social era sincera, ou as mulheres da Índia antiga não eram muito sérias. Propendemos para a primeira asserção, pois o artigo inicial mandava que o rei punisse o sedutor com "mutilações infamantes" e, em seguida banisse do reino "aqueles que se comprazem em seduzir as mulheres dos outros".

Aliás, o legislador hindu não implantava tal rigorismo contra o adultério em respeito à manutenção da moral social, mas sim "porque é do adultério que nasce no mundo a mistura das classes". Sempre a preocupação racial; sempre o horror pelas castas inferiores, nascidas dos membros inferiores do deus criador e mitológico.

A minudência e a pragmática tocavam as raias da estultice quando definiam, desta maneira, certos casos de transgressão conjugal, numa linguagem técnica que era, todavia, mais um estímulo do que unia disposição penal:

Art. 349 — Ter pequenos cuidados com uma mulher, mandar-lhe flores e perfumes, gracejar com ela, tocar nos seus enfeites ou nas suas vestes, sentar- se com ela no mesmo leito, — são provas de um amor adúltero.

Art. 350 — Tocar o seio de uma mulher casada ou em outras partes do seu corpo, de uma maneira indecente; deixar- se tocar assim por ela, são ações resultantes do adultério, "com mútuo consentimento".

Dispensamos prudentemente o comentário de muitos outros dispositivos reguladores desta complicada matéria, não somente pela hilaridade, como pelo requinte de realismo com que foram exarados pelos circunspectos sacerdotes de Brama.

Entre as penas mais bizarras para os adúlteros, registravam-se estas: — cabeça raspada e regada com urina de burro e cremação com fogo de ervas de caniço.

Seguem-se as prescrições — Dos deveres da mulher e do marido.

O Código de Manu foi o mais rigoroso, até hoje, em relação à mulher. Pelo Código de Hamurabi, a mulher poderia ser comerciante, na organização política hebraica a mulher poderia chegar à proeminência de Juiz, como no caso de Débora; no Egito as mulheres tinham propriedades individuais e poderiam testar livremente. Na Índia, a mulher era uma escrava e a sua pobre vida decorria dentro da angústia do círculo de ferro deste dispositivo:

Art. 415- Uma mulher está sob a guarda do seu pai durante a infância, sob a guarda do seu marido durante a juventude, sob a guarda de seus filhos em sua velhice; ela não deve jamais conduzir-se à sua vontade.

Este artigo, porém, vai completar o seu sentido no artigo 442, em que a mulher culpada "depois de sua morte renascerá no ventre de um chacal e será atormentada de moléstias como a tuberculose e a elefantíase".

Alguns historiadores dispensam à legislação hindu muito apanágio de moralidade; entretanto, essa moralidade era apenas convencional e derivava do espírito rotineiro e dogmático da cultura sacerdotal. Para exemplo, vem o caso da falta de descendência. O egípcio, o caldeu, o hebreu, o árabe e outros povos repudiaram a mulher de ventre estéril, garantindo-lhe, porém, a subsistência, uma vez que ela não fosse diretamente culpada por não procriar. Entretanto, o hindu engendrou no seu código as disposições mais aberrantes sobre o assunto, até a atualidade. Assim é que os artigos 471 e 472 autorizavam o conúbio da esposa com um cunhado ou outro parente, desde que o reprodutor a procurasse discretamente à noite, "regado de manteiga líquida e guardando silêncio". Ignoramos a importância que representava para o ato essa unção legal e indispensável.

O capítulo — Da partilha e das sucessões — desdobra-se prolixamente por 115 artigos, muitos dos quais repisam a matéria anterior e outros tratam de assuntos diferentes de sua epígrafe.

Enquanto isso, o Código de Hamurabi desenvolve toda a relação de família em 56 artigos, incluindo neles os dispositivos sucessórios, começando do artigo 162. Apenas o código mesopotâmio se emparelha ao código hindu, nessa parte de Direito Civil, eximindo a mulher da herança do marido, que recai em benefício dos descendentes.

O capítulo é iniciado com o seguinte dispositivo:

Art. 516 — Depois da morte do pai e da mãe, que os irmãos, tendo-se reunido, partilhem entre si igualmente os bens de seus pais, quando o irmão mais velho renuncia a seu direito; eles não são donos de tais bens durante a vida daquelas duas pessoas, salvo se o pai mesmo tenha preferido partilhar esses bens.

Seguem-se os decretos e privilégios da primogenitura, pois o estado hindu tinha a preocupação de reter a fortuna particular em poucas mãos e de incrementar o aumento da pobreza que seria um elemento fácil de ser detido na fronteira da lei:

Art. 517 — Mas, o mais velho, quando ele é eminentemente virtuoso, pode tomar posse do patrimônio em totalidade e os outros irmãos devem viver sob sua tutela, como viviam sob a do pai.

Art. 518 — No momento de nascer o mais velho, antes mesmo que a criança tenha recebido os sacramentos, um homem se torna pai e paga sua dívida para com os seus antepassados, o filho mais velho deve, pois, ter tudo.

Como justificativa desse privilégio do primogênito, o art. 519 explica que o nascimento do primeiro filho dá ao homem a imortalidade e que "os sábios consideram os outros (filhos) como nascidos do amor". Alias, essas vantagens da primogenitura tinham suas fontes nas leis primitivas, originadas do princípio fundamental de que a família deveria ser sempre representada por um chefe, que mantivesse o culto dos antepassados. Seria mais fácil, dessa maneira unilateral, cumprir os deveres religiosos para com os ascendentes, do que dividindo-se os poderes familiares e afrouxando-se o vigor da agnação preferencial.

Mateo Goldstein considera "cuán arraigado estaba en la Índia ei culto de los antepassados" e diz que "según ia Ley premosaica, todo jefe de familia teMa cl derecho de ejercer las funciones sacerdotales y después de su muerte era ei hijo primer nacido quien le reemplazaba en ese derecho; pero carecia de éi en vida dei padre; tomaba ei sacerdocio en la sucesión de su padre". Considera, todavia, o mesmo esmerilhador do Direito hebreu que esse sistema somente se operava na fase pré-mosaica, citando aqueles três dispositivos do capítulo 21 do Deuteronômio, que não nos convencem, porquanto Moisés confirma no versículo 17 que "aquele é o principio de sua força, o direito da primogenitura seu é".

Como comprovação do caráter religioso da primogenitura hindu, o art. 537 prescreve que — "O direito de invocar Indra, nas orações chamadas Swabrahmanyâs, é concedido àquele que nasceu primeiro". E o art. 597 determina como devem ser feitas as libações de água aos antepassados (pai, avô paterno e bisavô) e bem assim o oferecimento de um bolo propiciatório.

Tal era a preocupação por uma descendência varonil, que o Código de Manu regulava as falhas da aviação da seguinte forma:

Art. 538 — Aquele que não tem filho macho pode encarregar sua filha da maneira seguinte, de lhe criar um filho, dizendo: que o filho macho que ela puser no mundo se torne meu e cumpra em minha honra a cerimônia fúnebre.

Mas a explicação desse interesse de linhagem ou de agnação está explicado nessa benemerência legal e religiosa:

Art. 548 — Por um filho, um homem ganha mundos celestes; pelo filho de um filho, ele obtém a imortalidade; pelo filho desse neto, ele se eleva à morada do sol.

O restante do capítulo pode ser resumido da seguinte maneira:

— Os filhos de mulher "não autorizada a ter um filho de outro homem", o filho "engendrado pelo irmão do marido com mulher que tem filho varão", — não são classificados herdeiros — (art. 554).

— Os filhos dos brâmanes, de mulheres diferentes, terão a herança diferida pelas suas castas — (art. 563).

—O filho macho de uma mulher que se case grávida, será considerado como de seu marido — (art. 584).

— O filho de um brâmane com uma mulher de baixa categoria "é chamado cadáver vivo" — (art. 589).

— Recai no pai e nos irmãos o direito sobre a herança "de um homem que não deixe filhos de solteira, nem de viúva" — (art. 596).

— Não havendo herdeiros masculinos ou femininos e extinguindo-se com o morto a sua linhagem, será herdeiro o preceptor intelectual ou o discípulo do defunto. Só na falta desses últimos, a fortuna recairia na categoria dos Brâmanes "versados nos Três Livros Santos, puros de espírito e de corpo e senhores de sua paixões", os quais ofereceriam o bolo e prestariam os demais deveres fúnebres — (arts. 598-599).

Entretanto, o art. 600 estabelece contradição com essa norma de herança, pois diz textualmente:

— A propriedade dos Brâmanes não deve nunca voltar ao rei, tal 6 a regra estabelecida; mas nas outras classes, na falta de qualquer herdeiro, que o rei se emposse do bem.

Os artigos 607 e 608 regulam a sucessão da mulher casada sem descendentes, de um modo complicado: — se o casamento foi realizado "segundo os modos de Brama, dos Deuses, dos Santos, dos Músicos Celestes ou dos Criadores, — devem os bens voltar ao seu marido". Se, todavia, o casamento foi realizado "segundo o modo dos maus gênios, a partilha recai nos seus ascendentes".

Assim, a herança será regulada pela interpretação dada ao modo como foi celebrado o casamento dessa "jovem mulher casada".

Existe a seguinte proibição sucessória no Código de Manu:

Art. 612 — Os eunucos, os homens degredados, os cegos e surdos de nascimento, os loucos, idiotas, mudos e estropiados, não são admitidos a herdar.

Entretanto, essa proibição podia ser remediada pelo sistema adotado neste cínico dispositivo:

Art. 614 - Se algumas vezes, dá na fantasia ao eunuco e aos outros de se casarem e terem filhos, a mulher do eunuco, tendo concebido então de um outro homem, — segundo as regras prescritas, esses filhos são aptos a herdarem.

Outra disposição ociosa do art. 615 está no caso da compartilha dos bens do irmão mais velho, pelos outros irmãos, quando eles, vivendo em comum, "se aplicam ao estudo da ciência sagrada".

E o Código Hindu prossegue no preceito, mas agora com esta redação nociva e sem nexo, uma vez que a coisa a ser partilhada fora ganha justamente pelo irmão que não tinha ciência:

Art 617 - Mas a riqueza adquirida pelo saber pertence exclusivamente àquele que a ganhou.

Os últimos dispositivos desse capítulo oferecem, felizmente, algo de eqüidoso: — o art. 627 determina uma sobrepartilha ao filho nascido depois do inventário; o art. 629 prescreve a reabertura da sucessão quando forem encontrados bens que não se arrolaram; o art. 630 proíbe a partilha das vestimentas do de cujus e ordena que certos bens devem continuar com a sua finalidade: a serventia da água dos poços, os escravos, as pastagens, os animais etc.

Prevaleceu, na elaboração deles, o sentido econômico e social sobre o convencionalismo bramânico; isto porque não era possível uma completa extensão dos direitos da classe favorecida: algumas migalhas jurídicas haveriam de sobrar da mesa de banquete daqueles deuses humanos, embora nem chegassem para enganar a fome dos sudras, saídos originariamente dos pés da divindade criadora.

O capítulo — Dos jogos e combates de animais — enfeixa também matérias diferentes de sua propositura.

Inicialmente, o Código de Manu condenava os jogos e as apostas, tal qual o Alcorão como veremos adiante, no estudo a ele referente; sendo que o princípio legal bramânico considerava-os "furtos manifestos" e Maomé definia o jogo como "abominação inventada por satanás".

O Direito hindu classificava os jogos de duas maneiras:

a) jogo ordinário, em que se empregam objetos inanimados, — como por exemplo, os dados.

b) jogo de aposta, aquele no qual são utilizados seres animados, como galos.

O art. 632 recomendava a prescrição dos jogos e apostas por parte do rei, "porque essas duas práticas criminosas causam aos principais a perda de seus remos".

E o art. 638 explicava: "o homem sábio não se deve entregar ao jogo, nem mesmo para se divertir".

Em seguida, a lei deriva para outros assuntos.

Regulava-se assim o pagamento das multas: — os militares, os comerciantes e os servos pagavam as infrações com serviços, porém os brâmanes pagariam "pouco a pouco" (art. 640).

Nessa divisão do código foi tauxiado artigo que deveria estar na parte concernente às ofensas físicas, pois estabelece no artigo 648 que se imprima a fogo, sobre a testa do homem que desonra o lar do seu chefe espiritual, uma figura obscena; na testa de uni ébrio, um alambique; na testa de um gatuno, uma pata de cão; na testa do assassino de um brâmane, um homem sem cabeça.

Ao fim dessa parte legal, há este dispositivo filosófico que, em outra sociedade menos escravizada pelos ditames religiosos, teria uma aplicação magnânima:

Art. 660 — Considera-se como tão injusto para um rei deixar ir um culpado, quanto condenar um inocente; a justiça consiste em aplicar a pena conforme a lei.

As Disposições finais, que deveriam ser traduzidas por Disposições gerais, compreendem 84 artigos.

O art. 662 recomenda ao rei conciliar a afeição dos povos dos países que lhe são submetidos; o art. 663 lembra a necessidade de o rei construir fortalezas em regiões florescentes e extirpar os celerados; o art. 665 considera que um rei que não reprimir os ladrões "é excluído da morada celeste".

Oart. 668 dividia os ladrões em duas classes:

a) ladrões públicos, os que operam vendendo diferentes coisas de maneira fraudulenta.

b) ladrões ocultos, os que penetram nas moradas por uma brecha e os salteadores das florestas.

O art. 678 recomenda uma prática condenável: utilizar-se dos ex-ladrões para confabular com os ladrões em atividade e atraí-los para um festim, onde deveriam ser capturados e dizimados.

Apesar da ojeriza legal contra os ladrões, o art. 681 prescrevia que não se fizesse "morrer um ladrão sem que seja preso com o objeto roubado e os instrumentos do roubo".

Oart. 693 adotou estranhamente esta medida de ordem higiênica e de difícil justificação por parte do infrator:

— Aquele que faz suas dejeções na estrada real, sem uma necessidade urgente, deve pagar dois Karchapanas e limpar imediatamente o local que emporcalhou.

A lei, todavia, eximia de multa os velhos, os doentes, as mulheres grávidas e. as crianças, que seriam somente repreendidos e intimados a limpar o local.

Há um dispositivo dedicado à medicina, estabelecendo a qualificação dos delitos, mas não determinando as penas.

Art. 695 — Todos os médicos e cirurgiões que exercerem mal a sua arte, merecem unia multa; ela deve ser do primeiro grau para um caso relativo a animais; do segundo, relativo a homens.

O art. 698 é dedicado aos crimes contra a economia popular, punindo os que alteram os preços e vendem mercadorias deterioradas.

Ignoramos porque o Código de Manu adotou contra os ourives esta medida horrorosa:

Art 703 — Mas, o mais perverso de todos os velhacos e um ourives que comete uma fraude; que o rei o faça cortar em pedaços, por navalhas.

Neste capítulo há muitos artigos que dispõem, relembram e elevam os direitos dos brâmanes, que têm poderes até para destruir o exército do rei, por meio de "imprecações e seus sacrifícios mágicos".

Encerra-se o Código dilucular de Manu recomendando uma obediência cega às ordens dos brâmanes versados no conhecimento dos livros santos, pois somente assim um sudra obterá "felicidade depois da morte e obterá um nascimento mais elevado".

Depois de uma legislação desalumiada como esta, só mesmo a reação passiva de Buda.

A raça, teimosamente ainda hoje dividida em classes, acomodou-se à nova doutrina do príncipe mendigo, porém continuou, séculos afora, ignorando a existência miserável dos párias e eliminando os que pregam igualdade humana, como Gandhi, o Buda formado em Oxford.

O paraíso de Manu é tenebroso e exclusivista. O paraíso de Sáquia-Muni é uma espécie de vácuo onde, pela sua natureza, não há som, nem palpitações, nem luz num lago imenso, sem o espumejar de uma onda, sem margens e sem horizonte, onde se afogam aniquiladamente todos os espíritos.

Renan situou bem essa paragem imaginária e nirvânica: — Un paradis dans lequel l’homme se trouve reduit à l’état de cadavre disséché.

Babilônia reduziu-se a ruínas; todavia revive no diorito do seu código materialista, porém humano. A Índia, todavia, subsiste; mas a sua sobrevivência é um encadeamento contraditório do seu passado e do seu presente e, no seu primitivo código de 746 artigos, pouco penetrou a perlucidez de um sentido judicioso.

Depois de analisar aquela fantástica e fantasiosa arte construtiva hindu, talhada em pórfiro e granito, abrigando divindades caricatas e medonhas nos seus dois mil templos, — César Cantu remata seu entusiasmo com estas palavras: — "A arquitetura indiana ê a religião e a literatura do bramanismo, gravada na face da terra como um imenso monolito".

O mais elegante e erudito dos historiadores do século XIX omitiu, porém, como parte complementar da escultura indo-ariana, o Código de Manu. Porque essa legislação extensa como o templo subterrâneo de Elora, escavado em dez quilômetros de rocha viva, é também um templo de granito vermelho, revestido de imagens e lavores extravagantes, revelando mais a tortura do pensamento bramânico do que mesmo a altura de uma concepção legal.

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Sobre o autor
Luiz Guilherme Marques

juiz de Direito em Juiz de Fora (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Luiz Guilherme. A Justiça e o Direito da Índia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 164, 13 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4552. Acesso em: 24 abr. 2024.

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