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Um Brasil quase esquecido:a caligrafia como comprovação da intelectualidade

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Padronizações, no século XXI, constituem um verdadeiro censo limitador à liberdade de pensamento e de expressão.

Caros leitores, mais uma vez presenciei resquícios de um Brasil [quase] esquecido. Em pleno século XXI, o Brasil ainda teima — como em muitas outras exigências de “superior”, ou o mínimo de “intelectualidade” — em ler cartilhas normativas de bom comportamento, como se trajar direito, como falar direito, como escrever [caligrafia direito], como a mulher deve se vestir adequadamente — para não ser estuprada —, e muitos outros assuntos chancelados de “corretos”.

Claro que o mínimo de regra deve existir nos símbolos humanos, como na escrita, na fala etc. Para que a humanidade não viva numa Torre de Babel. Neste artigo, o caso da “letra feia”. Assisti [26/12/15, domingo] uma reportagem, no Jornal Nacional, a qual mostrou as consequências de ter uma caligrafia feia, isto é, incompreensível. Bom, para muitos, a tal da caligrafia feia soa como falta de estudos, ou seja, o cidadão é analfabeto — e, diga-se de passagem, funcional.

Pois bem. Alguns casos para enriquecer este artigo. Transcreverei alguns cabeçalhos interessantes. Vamos lá:

“Médico xinga farmacêutico de imbecil e analfabeto no Maranhão. Farmacêuticos falam que são raras receitas com letra legível. Receitas com ‘garranchos’ são proibidas há 35 anos no país”.

“Candidatos fazem aulas de caligrafia para passar em concurso e vestibular. Escrita à mão requer muito treino, diz professor de escola especializada. Professor dá dicas de como obter uma letra bonita”.


Afinal, o que é erro quanto ao bom português e o que é erro na caligrafia?

Escrever certo, falar corretamente, eis a situação intrigante. Várias mudanças ortográficas aconteceram no país. “A pharmácia sómente deve ter remédios. Mas, é possível ver pé-de-moleque sendo vendido”. Nossa, de onde saiu este frase? Sim, não se escreve mais farmácia com “PH”, não há acento agudo no o do “somente”, não há mais hífens em “pé de moleque”. Escrita é um símbolo, como a ideográfica dos chineses. E símbolos mudam, ao decorrer do tempo humano: o que é certo ou errado?

Lembro-me que, e o tempo voa, eu e demais alunos, todos tínhamos que treinar os símbolos em cadernos de caligrafia, ou seja, treinar a mão para escrever “bonito”, como mandava a cartilha da padronização no Brasil. Querendo, ou não, formou-se um status social diferenciador. Mesmo que o indivíduo escrevesse conforme a gramática normativa, porém, com caligrafia “preguiçosa”, “desleixada”, “feia”, ainda assim existia, e existe, preconceito. Afinal, o cidadão superior é “perfeito” em tudo o que faz. E se escrevesse bem — ótima caligrafia —, e em gramática normativa, era considerado um indivíduo com maior escolarização, logo, era considerado um ser “grandioso” pela conquista alcançada através do próprio esforço pessoal. Desculpem-me, mas médicos são considerados “analfabetos”, “imperfeitos” ou “burros”?

Num país de estrema miséria — quando se compara as potencialidades econômicas versus os milhões de brasileiros que ganham Bolsa Família, e se analisa os privilégios e regalias dos agentes políticos — o narcisismo é fruto desta desconexa vida brasileira. Não obstante, o Brasil foi construído sobre dois pilares: darwinismo social, do século XIX, e a eugenia, do século XX. A eugenia foi institucionalizada no Brasil através da CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL(DE 16 DE JULHO DE 1934):

“Art. 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:

b) estimular a educação eugênica”.

No livro Preconceito linguístico o que é, como se faz, de Marcos Bagno, mais evidente fica a apartheid Made in Brazil. Ora, há casos em que o sujeito “ignorante” é estigmatizado de “retardado”, “preguiçoso” etc. Continuando no livro de Marcos Bagno, não posso deixar de transcrever alguns parágrafos importantes:

“Carlos Drummond de Andrade (preciso de adjetivos para qualificá-lo?), no poema ‘Aula de Português’ também dá testemunho de sua perturbação diante do ‘mistério’ das ‘figuras de gramática, esquipáticas’, que compõem ‘o amazonas de minha ignorância’. Drummond ignorante?

E o que dizer de Machado de Assis que, ao abrir a gramática de um sobrinho, se espantou com sua própria ‘ignorância’ por ‘não ter entendido nada’? Esse e outros casos são citados por Celso Pedro Luft em Língua e liberdade (pp. 23-25). E esse mesmo autor nos diz:

Um ensino gramaticalista abafa justamente os talentos naturais, incute insegurança na linguagem, gera aversão ao estudo do idioma, medo à expressão livre e autêntica de si mesmo”.

(...)

“O que aconteceu, ao longo do tempo, foi uma inversão da realidade histórica. As gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como ‘regras’ e ‘padrões’ as manifestações linguísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma espécie de fonte mística invisível da qual emana a língua ‘bonita’, ‘correta’ e ‘pur’. A língua passou a ser subordinada e dependente da gramática. O que não está na gramática normativa ‘não é português’. E os compêndios gramaticais se transformaram em livros sagrados, cujos dogmas e cânones têm de ser obedecidos à risca para não se cometer nenhuma ‘heresia’”.

A riquíssima informação não deixa qualquer dúvida sobre os preconceitos e a formação do narcisismo. Certa vez fiz uma pesquisa, em 2009, em quatro bairros próximos ao meu. Sei que os dados são poucos, mas diante dos ataques racistas às celebridades negras brasileira, e recentemente ao filme Guerra Nas Estrelas, por ter um negro protagonista, não é difícil mensurar a importância de minha pesquisa. Pedi uma médica que escrevesse — como tivesse normalmente atendendo os pacientes — um pequeno texto. Depois percorri os bairros abordando os pedestres.

1) Senhora, branca, de classe média:

“Que caligrafia horrível. Deve ser um analfabeto. Aposto que jamais quis ‘queimar as pestanas’.”;

“Não senhora, é letra de médico!”;

“Ah! Atende muitos pacientes, por isso tem que escrever rápido!”.

2) Homem branco, 72 anos de idade e professor aposentado:

“Um analfabeto e preguiçoso que sobrevive de Bolsa Família!”.

— E se o cidadão fosse médico? — perguntei-lhe.

“Por isso as cotas raciais representam uma vergonha para o país. Formam analfabetos. Imagine operando uma pessoa?”.

3) Rapaz branco, 21 anos de idade e estudante universitário:

“Não vi nenhum erro gramatical. Parece que escreveu rápido... Mas, afinal, existe uma padronização para se escrever?”.

4) Mulher negra, formada em engenharia mecânica — não perguntei idade por educação:

“Infelizmente vivemos num país de analfabetos. A culpa é dos governantes. Essa pessoa deve sofrer muitos preconceitos. Coitada!”.


EUA e Finlândia contra as regras seculares

Enquanto no Brasil, e em muitos outros países, exige-se a “sagrada” caligrafia, nas instituições de ensino e até para as entrevistas de emprego, nos EUA e na Finlândia, há uma “conspiração” se formando. Nos dois países não se exigem mais a escrita à letra cursiva e os professores são desencorajados. Os teclados, sim, são exigidos na nova educação. Num planeta cada vez mais tecnológico — até as crianças sabem usar melhor do que eu as tecnologias digitais; é só ver os invasores de sites etc. — a letra cursiva não possui tanta preeminência. Alguém escreve alguma carta e a coloca nas caixas dos Correios? Acredito que sim, pois o Brasil ainda é atrasado no quesito globalização da internet dentro do próprio território. Contudo, até por força externa quanto à materialização da liberdade de expressão e de pensamento, o acesso à rede mundial de computadores deve, a cada década, ser priorizado no Brasil.

A tendência mundial, pelo visto, é cada vez mais a letra cursiva ser menos usual. Pensando no Brasil, a letra cursiva é sinônimo de “segregação”. Outro dia, acreditem, escutei uma educadora dizer que “Agora tudo é dislexia!”, como justificar o injustificável, de que as crianças brasileiras são aprovadas sem o devido conhecimento, como ocorreram, e ainda ocorrem, de forma velada, as aprovações automáticas. Concordo com a educadora, até certo momento. Existem crianças disléxicas, mas muitas não são diagnosticadas por precariedade — infraestrutura física e material — nas instituições de ensino. Ainda há professores sem um mínimo de conhecimento sobre transtornos específicos de aprendizagem (TEA). Infraestrutura precária, como cadeiras quebradas etc., salas de aulas superlotadas, salários que ferem a dignidade humana dos professores, violência dentro e fora das instituições de ensino, o caos é o ar sorvido pelos alunos e professores.

Além disso, profissionais da área das Ciências Humanas — psicólogos, psiquiatras, pedagogos — são unânimes quanto às exigências do mundo moderno: cobranças aquém dos limites das crianças e dos adolescentes; o que dirá aos adultos, e tome muito ansiolíticos. Os genitores, por pressão social, exigem demasiadamente de suas proles a “excelência” e “perfeição” no que fazem. Muitos genitores transferem para suas proles os seus fracassos pessoais, as suas dúvidas agoniantes, incertezas etc. Os filhos devem ser o que os pais acham correto. Não há nada demais ensinar às proles a conduta humanística, o escolher da alimentação correta, sem ser os alimentos industrializados, o equilíbrio entre sedentarismo e práticas esportivas, e também o equilíbrio entre estudos e lazer. Infelizmente, a Era do Super-Homem está mais do que presente neste século.

Tempos Moderno, de Charles Chaplin, continua contemporâneo. Cada vez mais o ser humano é escravizado pelas políticas de desenvolvimento tecnológico e econômico [consumismo]. O consumismo perverso faz com que as pessoas vivam mais pelos prazeres, como no filme Matrix. E sair dessa hipnótica situação causa neuroses. O jeito é manter-se no torpor da zona de conforto. Ora, o American way of life — livre mercado e competição sem limites — se mostrou perigoso à humanidade e à própria Terra. Competição sem limites [American way of life] implica numa ausência total do Estado nas relações entre particulares. Em rápida explicação, imagine se o Estado brasileiro, por exemplo, não defendesse os interesses dos consumidores. As concessionárias de serviços públicos, principalmente, iriam enterrar, literalmente, os consumidores queixosos. E o que dizer dos desastres ambientais? Samarco, sem a atuação do Estado [Ministério Público de Minas Gerais], possivelmente deixaria as vítimas a deus-dará — e já as deixam, imagine sem o MP-MG.


MEC ensina errado

O volume Por uma vida melhor, da coleção Viver, aprender, foi repudiado na época por ensinar os jovens como escrever e falar errado. Na época, os autores defenderam a “língua viva”, isto é, o dia a dia dos brasileiros, e não a cartilha da norma culta. Ainda afirmaram que a norma culta cria “preconceito linguístico”. Controverso e delicado o tema. Acredito que uma padronização mínima no símbolo escrito deve existir para que as pessoas possam se comunicar.

Por exemplo, na internet há símbolos totalmente diferentes do mundo não virtual. A pessoa que ingressa, pela primeira vez, no mundo virtual, e numa sala de chat, com certeza, se não familiarizado com os símbolos digitais, não entenderá nada. Será um analfabeto digital. Por sua vez, o alfabetizado digital também será considerado um analfabeto quando fora do mundo virtual. Eis o dilema.

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Se analisarmos, por exemplo, o uso do Latim, quantos analfabetos existiam na Idade Média? E o que dizer da década de 1980, no Brasil, onde minorias tinham conhecimento da língua inglesa? Quem não sabia era considerado analfabeto, mesmo que soubesse escrever e falar o bom português [brasileiro]. Concordo com os autores sobre “preconceito linguístico”. E o que dizer das gírias e sotaques comuns em cada região do Brasil? Afinal, o falar corretamente deve subjugar as “línguas vivas” regionais? Não seria um tipo de “genocídio” linguístico? E quem decretaria este genocídio? Por quê?


Padronização versus liberdade de expressão e de pensamento

Quando falei em padronização mínima no símbolo escrito, ou até digitado, não quis dizer escolher única forma considerada “correta”, porque não existe uma correta. Símbolos escritos existem pelo ânimo humano de cada época, conforme a sua capacidade de interpretar sons, imagens. A evolução humana também tem a ver com o aperfeiçoamento do aparelho fonador, cognitivo. Entretanto, estamos numa época em que a liberdade de expressão e de pensamento não pode ser mais impedida por conceitos anacrônicos de “superioridade” e “inferioridade”. A “língua viva” pertence a cada população, com suas características culturais. Dizer que o Brasil possui somente única cultura é dizer que não houve miscigenação.

Ainda vejo jovens, adultos e idosos sorrindo de outras pessoas que falam fora da norma culta. Ora, o que soa feio não pode ser justificado para calar a voz de outra pessoa sob gravíssimas consequências para o conhecimento. Sem liberdade de expressão e de pensamento, os conhecimentos se perdem no tempo. Dizer que um analfabeto não tem a mínima condição de dialogar e transmitir conhecimentos é condizer com as concepções teóricas anti-humanísticas. Antes da escrita, o conhecimento era transmitido oralmente. O aprendizado não acontece, somente, entre as paredes das instituições de ensino, mas no convívio social. Negar a “língua viva” é fazer o que os colonizadores darwinistas sociais fizeram no passado: exterminaram pessoas e, em alguns casos, exterminaram conhecimentos culturais de outros povos.

Quando falei em “padronização mínima”, eu me referi, por exemplo, ao Esperanto. Esperanto foi criado pelo médico e estudioso de línguas polonês Ludwig Lazar, como forma de se ter uma língua universal a unir os povos. A ideia é boa, mas se verificarmos a tecnologia atual, e a que virá, inevitavelmente, futuramente, qualquer padronização será dispendiosa demais — e sem necessidade. Como exemplo temos aplicativos de traduções nos celulares. Será necessário, então, aprender alguma nova língua para poder se comunicar? Pelo visto, não. Nos sites de pesquisas há mecanismos de traduções. Apesar de não serem totalmente confiáveis, têm ajudado muitas pessoas — desde um estudante até um docente — a conhecer culturas, inovações tecnológicas etc.


Falando de tecnologia e desenvolvimento humanístico

Exatamente, a tecnologia está findando concepções teóricas anacrônicas de “reis e plebeus”, “reis e servos”, no tocante à liberdade de expressão e de pensamento, apesar das tentativas de cerceá-la. Infaustamente, o progresso tecnológico, em outros segmentos da humanidade, não tem servido para a diminuição das desigualdades sociais, para alicerçar a dignidade da pessoa humana, para o desenvolvimento sustentável. Revolução Industrial, Primeira e Segunda Guerras Mundiais, Crise de 1929 e a Bolha Imobiliária de 2008, nos EUA, alguns exemplos de que a tecnologia não tem sido empregada para melhorias na qualidade de vida de todos os seres humanos.

A globalização tem servido para expansão de interesses econômicos dos próprios países, não ao bem comum à humanidade. Transnacionais se instalam, preferencialmente, em países cujas leis internas favorecem a violação dos Direitos Humanos. Por exemplo, o caso do menino indonésio que fumava 40 (quarenta) cigarros por dia. A indonésia é uma potência manufatureira de tabaco, graças à complacência do Estado, isto é, dos governantes com os lobistas do tabaco. A concupiscência, com toda certeza, dos governantes é tamanha que em 2009 o lobby do tabaco conseguiu mudar a Lei de Saúde: tabaco não faz mal à saúde. [1]

O lobby das bebidas alcoólicas é outro que causa horrores sociais e econômicos. No Brasil, por exemplo — as publicidades são criadas a partir do pensar e comportamento cultural de cada país:

  • As mulheres não passam de objetos sexuais — explica-se pelo seguinte motivo: o Brasil ainda é machista;
  • Beber é para “adultos”, numa conotação de liberdade, ousadia, determinação;
  • Quem consome bebida alcoólica é “superestrela”.

E o que dizer das publicidades de cervejas que colocaram animaizinhos engraçados? O público? As crianças.

Dizer que o Estado não deve agir [acepção negativa] nas relações entre particulares é perigosíssimo. A ganância não tem limites, mesmo que custem vidas humanas. Alguém tem dúvidas sobre a Operação Lava Jato?


Nota:

[1] — Pouco controle faz nº de fumantes na Indonésia subir anualmente. Disponível em:http://noticias.terra.com.br/mundo/asia/pouco-controle-faznde-fumantes-na-indonesia-subir-anualmen...


Referência:

BARNHILL, John W. Casos clínicos do DSM-5. Editora: Artmed. Ano: 2015.

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Sobre o autor
Sérgio Henrique da Silva Pereira

Articulista/colunista nos sites: Academia Brasileira de Direito (ABDIR), Âmbito Jurídico, Conteúdo Jurídico, Editora JC, Governet Editora [Revista Governet – A Revista do Administrador Público], JusBrasil, JusNavigandi, JurisWay, Portal Educação, Revista do Portal Jurídico Investidura. Participação na Rádio Justiça. Podcast SHSPJORNAL

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

HENRIQUE, Sérgio Silva Pereira. Um Brasil quase esquecido:a caligrafia como comprovação da intelectualidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4979, 17 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45527. Acesso em: 19 nov. 2024.

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