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A inconstitucionalidade em se coibir o porte legal de arma de fogo

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A criminalização de condutas não deve servir de máscara para esconder as mazelas sociais que ocorrem no Brasil. A maioria dos delitos é realizado com armas de uso restrito das forças armadas que adentram clandestinamente em nosso país e dão substrato os "estados paralelos".

Sumário: 1. Introdução; 1.1. O direito fundamental à vida; 1.2. O direito à segurança pessoal; 2. Sociedade e Crime; 3. Inconstitucionalidade em se proibir o porte de armas .


1. INTRODUÇÃO

Anteriormente apontamos: "Na eleição de bens merecedores do amparo penal, podemos verificar que muitas vezes, a ponderação dos bens é realizada de forma inadequada, pois acabamos por verificar a ocorrência de um Direito Penal Simbólico, que atua como ´´terapeuta social´´ com aumento das penas e não fazendo uma reflexão acerca da necessidade dos tipos penais e uma readequação das condutas a serem incriminadas" 1.

1.1. O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA

O Estado, como representação da vontade popular, deve zelar pelo leal cumprimento de sua função assegurando o cumprimento das normas constitucionais, de modo a assegurar o mínimo de segurança aos cidadãos, mantendo assim o mínimo de condições para proporcionar uma existência digna a todos.

O substrato mínimo dos direitos naturais, necessários à tutela da ordem pública, são, na doutrina constitucionalista, chamadas de normas pré-constitucionais, pois existem independentemente da formulação do Estado, se fundamentando na demanda do respeito às mínimas condições de vida evitando-se o estado de guerra de todos contra todos, como lembra Thomas Hobbes.

Dentre essas normas ressalta o direito à vida que para Alexandre de Moraes: "A Constituição Federal, proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência" 2. Ou como prefere José Afonso da Silva: "Consiste no direito de estar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa razão que se considera legítima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade da salvação da própria" 3.

Então, ao estado incumbe, em regra, permitir o nascimento, o desenvolvimento mental e físico, bem como permitir a sobrevivência dentro de patamares mínimos que não lesem as demais normas constitucionais, por fim, deve ele permitir também a prática de atos tendentes a consecução da vida com dignidade e tais condutas variam de pessoa para pessoa.

1.2. O DIREITO À SEGURANÇA PESSOAL:

A segurança pública é o estado de permanência, preservação, estabelecimento da convivência pacífica entre os integrantes do corpo social, de modo a permitir a vida em sociedade e a interação entre as pessoas.

Nossa Carta Magna estabelece em seu artigo 144: "...segurança é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos", portanto o estado reparte a atribuição para assegurar um melhor alcance de proteção e tutela maior aos membros da sociedade.

Responsabilidade é responder pelos seus atos, assumir os atos.

Dessa forma, o cidadão tem o direito de zelar pela incolumidade própria em situações excepcionais.


2. SOCIEDADE E CRIME

Em um Estado sucateado, onde a marginalidade aumenta espantosamente e a polícia não recebe condições mínimas de resistir aos criminosos, embora se esforce, urge lembrarmos que a marginalidade crescente se dá por diversas razões, mas a maioria delas coligada com a falta de engajamento dos governos em assegurar a existência da dignidade da pessoa humana, onde nos deparamos, de um lado, com o desenvolvimento científico e doutro a pobreza, a fome, o desemprego, as drogas, enfim, inúmeros males sociais.

O Estado não apresenta políticas implementadoras dos direitos fundamentais, em especial, de 1ª e 2ª gerações, como à vida, à liberdade, à igualdade, o emprego, à saúde e o principal, o alimento. Alimento esse material e cultural, pois como deseja uma nação prosperar se seus filhos se encontram ao álveo do infortúnio. Fenômenos negativos como o tráfico de entorpecentes, a lavagem de dinheiro, o desrespeito constante à vida, em prol da ganância e outros interesses mesquinhos faz com que a crença no estado paire no seio social.

Tudo isso desemboca nos meios de aplicação da violência que será, por intermédio do contrabando de armas de fogo, como submetralhadoras, pistolas semi-automáticas, e até, pasmem, granadas e lança foguetes.

A ONU em seu Marco Estratégico para Programa de Desenvolvimento do Brasil 2003/2006, elaborado pelo Escritório contra Drogas e Crime aponta: "As taxas de assassinato estão aumentando, especialmente entre jovens do sexo masculino. O crescimento da violência é atribuído à proliferação de armas de fogo ilegais, que são destinadas ao tráfico de drogas, e aos crimes domésticos. O crime organizado abrange o tráfico de drogas, armas de fogo, seres humanos, ouro, animais ameaçados de extinção e lavagem de dinheiro, envolvendo organizações criminosas locais e internacionais" 4.

O Deputado Federal Vicente Caropreso aponta em artigo publicado: "Mas, como nos demais Estados, o cidadão se preocupa com as conseqüências que as alterações na lei podem trazer à sua segurança pessoal. Pergunto: proibida a venda e devolvidas as armas legais para as autoridades, reduziremos a violência? É bom que se esclareça a opinião pública. Não para que mude de idéia a respeito da proposta, mas para que não espere fórmulas milagrosas. O maior índice de homicídios por 100 mil habitantes registra-se no Rio de Janeiro, 59,9%. Mas o Estado é o que apresenta menor índice de pessoas que dizem ter arma de fogo, 5%, sendo a média nacional de 8%.Santa Catarina, por sua vez, registra uma das menores taxas de homicídios do País: 8,3 por 100 mil habitantes. No entanto, contabiliza a maior incidência de pessoas que admitem possuir arma de fogo, 10% ( o dobro do Rio e acima da média nacional). E mais: 22% das pessoas com renda familiar mensal superior a 20 salários mínimos têm armas, contra apenas 6% entre os mais pobres. Ou seja, só compra arma quem tem dinheiro... E prossegue dizendo: "Bandido também compra arma, é verdade, mas no contrabando. Segundo a Polícia Federal, a fronteira entre Paraguai e Brasil (Mato Grosso do Sul) é caminho livre para as armas e munições contrabandeadas. Sem contar que mensalmente os vigilantes das empresas de seguranças perdem, em assaltos, pelo menos 40 armas para os bandidos" 5 (g.n).


3. A INCONSTITUCIONALIDADE DE SE PROIBIR O PORTE LEGAL DE ARMA DE FOGO

A criminalização de condutas não deve servir de máscara para esconder as mazelas sociais que ocorrem no Brasil. Uma legislação no susto não valerá a pena ser realizada, pois como lembra Renato Flávio Marcão: "Também não é novidade para os que se afinam com o Direito que as leis devem ser mutáveis, porém, para a garantia e segurança da sociedade e enquanto produto de inteligência devem ser feitas para durar, e para tanto, no processo de sua elaboração o legislador deve olhar para o passado, presente e futuro. É preciso que investigue no passado o foco de que irá cuidar; analise o presente e tenha os olhos voltados para uma perspectiva futura" 6.

Existem diversos estudos e pesquisas realizadas por diversos entes sociológicos que asseveram que a maioria dos delitos é realizado com armas de uso restrito das forças armadas que adentram, em nosso país, clandestinamente e dão substrato os "estados paralelos", ao tráfico de entorpecentes, enfim, a criminalidade como um todo.

As armas ilegais geram muitas vítimas e a arma lícita quase nenhuma, então qual seria a razão maior de cercear o direito do indivíduo à segurança. A Nova Lei de Armas pode representar um tolhimento nesse direito, então, por cercear o direito à segurança do cidadão e, ao nosso ver, isso seria inconstitucional por contrariar os artigos 5º, caput, c.c 144, da CR.

Por fim, como lembra o Ministro do Superior Tribunal Militar Flávio Flores da Cunha Bierrenbach: "Ninguém questiona o direito-dever que o Poder Público tem de restringir e limitar o alcance das armas de fogo às pessoas, estabelecendo regras para a aquisição, o porte e o uso das armas. Qualquer política séria de combate à criminalidade deveria estabelecer normas penais que instituíssem circunstâncias agravantes drásticas para o uso criminoso das armas de fogo. Todo crime cometido com a simples exibição de uma arma deveria ter sua pena agravada em um terço. Se disparar, aumenta a metade. Se ferir, aumenta em dois terços e se matar dobra a pena. Por outro lado, o simples porte de armas de ataque (granadas, bazucas e metralhadoras) deveria constituir crime inafiançável. Todavia, com a impunidade característica do Brasil, é claro que nada disso adianta, pois só a certeza de punição inibe a criminalidade.

Nenhum governo tem a prerrogativa de interferir na esfera privada do cidadão para transformar um direito em crime. Sobretudo, ao arrepio da Constituição, dos direitos humanos, de usos e costumes milenares, que asseguram a igualdade de todos perante a lei, a incolumidade da pessoa, o sagrado direito de defesa, e protegem a casa como abrigo inviolável do cidadão.

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Aliás, convém lembrar que a primeira lei de controle total de armas de fogo surgiu na França, em 1940, logo depois da invasão alemã, no governo títere de Pétain e Laval. Se toda a França houvesse obedecido à lei iníqua, não teria havido a Resistência. Custa a crer que, mais de meio século depois, o Brasil esteja prestes a imitar os nazistas. Com uma lei dessas, o pracinha brasileiro que morreu lá na Itália morreu mesmo em vão.

Se o Governo não tem condições de assegurar à sociedade que todos os assaltantes assaltarão desarmados, não tem como proibir aos cidadãos honestos o exercício do direito de defesa. Desarmar as vítimas é apenas dar mais segurança aos facínoras" 7.


NOTAS

1 SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. O novo tratamento penal ao porte de arma de fogo: (a tendência de transformação do porte de arma em crime hediondo). Disponível na internet: https://www.ibccrim.org.br, 28.08.2003.

2 MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 8ª Ed. Atlas. São Paulo. 2000. p. 62.

3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.12ª Ed. Malheiros. 1996. p.195.

4 ONU. Marco Estratégico para Programa de Desenvolvimento do Brasil 2003/2006. Escritório contra Drogas e Crime. Disponível na internet em: <https://www.unodc.org/pdf/brazil/brasil_spf_port_01_07_03.pdf> p.8/9

5 CAROPRESO, Vicente. Bandido não compra arma no balcão. A notícia. Joinville. Artigo disponível na internet em:

6 MARCÃO, Renato Flávio. O porte de arma e seu tratamento penal. Disponível na internet: <www.ibccrim.org.br>, Disponível na internet: 07.07.2003.

7 BIERRENBACH, Flavio Flores da Cunha. Armas de fogo e Cidadania. Disponível na internet: https://www.ibccrim.org.br, 29.10.2003.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BIERRENBACH, Flavio Flores da Cunha. Armas de fogo e Cidadania. Disponível na internet: https://www.ibccrim.org.br, 29.10.2003.

CAROPRESO, Vicente. Bandido não compra arma no balcão. A notícia. Joinville. Artigo disponível na internet em: https://an.uol.com.br/1999/jul/05/0opi.htm

MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 8ª Ed. Atlas. São Paulo. 2000.

ONU. Marco Estratégico para Programa de Desenvolvimento do Brasil 2003/2006. Escritório contra Drogas e Crime. Disponível na internet em: <https://www.unodc.org/pdf/brazil/brasil_spf_port_01_07_03.pdf>.

MARCÃO, Renato Flávio. O porte de arma e seu tratamento penal. Disponível na internet: <www.ibccrim.org.br>, Disponível na internet: 07.07.2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo.12ª Ed. Malheiros. 1996.

SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti. O novo tratamento penal ao porte de arma de fogo: (a tendência de transformação do porte de arma em crime hediondo). Disponível na internet: https://www.ibccrim.org.br, 28.08.2003.


NOTA DE ATUALIZAÇÃO

O referido projeto de lei deu origem à Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. A redação final não faz menção à Lei de Crimes Hediondos, mas prevê tipos penais não sujeitos a fiança. A Lei nº 9.437/97 é revogada expressamente pela nova legislação.

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Sobre o autor
Flávio Augusto Maretti Sgrilli Siqueira

Defensor Público Substituto em Minas Gerais Mestrando em Direito Penal e Tutela dos Interesses Supra-Individuais na UEM; Especialista em Direito e Processo Penal pela UEL; Professor de Direito Constitucional e Direito do Consumidor na Faculdade de Direito de São Sebastião do Paraíso (FECOM); Professor de Direito da UNIFENAS (Câmpus São Sebastião do Paraíso).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Flávio Augusto Maretti Sgrilli. A inconstitucionalidade em se coibir o porte legal de arma de fogo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 162, 11 dez. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4577. Acesso em: 24 abr. 2024.

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