Como muito se tem divulgado, a comemorada aprovação do Novo Código de Processo Civil alterou substancialmente tanto a forma de condução do processo, quanto as relações pré-processuais. No âmbito das relações contratuais entre empresas, a fase de negociação será profundamente alterada, pois, dentre as novidades, talvez a principal delas seja a possibilidade de as partes negociarem previamente regras que orientarão eventual processo judicial.
Essa negociação é possível por conta do artigo 190 da nova lei:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
Nesse sentido, o novo código permite o seguinte:
Que as partes podem estipular mudanças no procedimento com relação a:
- Especificidade da causa
- Ônus
- Poderes
- Faculdades
- Deveres
Notem que não se trata apenas da negociação sobre a cláusula de foro, ou seja, sobre o local em que as partes deverão propor a ação para discutir os problemas da relação comercial. Há a criação de um novo sistema, vez que a lei antiga não previa tal possibilidade, ao qual todos deverão se adaptar. Nesse sentido:
Com efeito, nos contratos mais complexos não bastará a eleição do foro. As partes já poderão fixar algumas regras que deverão ser aplicadas ao futuro litígio judicial e, nesse novo cenário, o advogado que elaborar o contrato precisará ter vivência na advocacia de contencioso ou se socorrer de um colega que tenha tal experiência. Essa medida poderá ser extremamente útil para trazer mais segurança, celeridade aos futuros litígios judiciais e, principalmente, para adequar o futuro procedimento às peculiaridades do assunto objeto do contrato.[i]
Dessa maneira, por exemplo, as empresas poderiam firmar um calendário processual, conforme artigo 191 do mesmo diploma, fixar quais pontos seriam objeto de discussão judicial, definir qual parte teria o dever de provar determinada questão, determinar as provas às quais estariam submetidas no processo, escolher o perito que atuaria no processo, entre outros.
Quanto ao calendário processual, que pode ter algumas regras previamente fixadas no contrato, importante destacar o seguinte:
As partes, juntamente com o juiz, podem calendarizar o procedimento, fixando datas para a realização dos atos processuais, que ficam todos agendados. Trata-se de um negócio processual plurilateral típico, celebrando entre juiz, autor e réu, bem como, se houver, intervenientes. Estabelecido o calendário, dispensa-se a intimação das partes para a prática dos atos processuais que já foram agendados. Também não é mais necessária qualquer intimação para as audiências cujas datas tiverem sido agendadas no calendário. O calendário vincula as partes e o juiz. Os prazos nele previstos só podem ser alterados em casos excepcionais, devidamente justificados.[ii]
Ressalta-se, ainda, que o negócio processual não precisa ser necessariamente firmado antes do início do processo, tendo as partes liberdade para negociar após o início do litígio processual.
A liberdade para discussão sobre o procedimento em caso de processo judicial demonstra clara semelhança com o procedimento arbitral (regulado pela Lei nº 9.307/96), vez que neste procedimento é natural que as partes tenham liberdade para decidir como será conduzida a arbitragem (objeto da arbitragem, provas, prazos etc.).
Essa aproximação com a arbitragem é positiva, na medida em que nem todas as empresas têm condições financeiras de custear um procedimento arbitral, ou mesmo interesse em submeter o conflito ao procedimento arbitral, até pelo próprio valor envolvido no contrato, mas podem negociar partes do procedimento, de maneira semelhante à arbitragem.
Frise-se que a possibilidade de negociar o procedimento não é irrestrita, mas está limitado pelo próprio artigo e, evidentemente, pelos princípios que norteiam os contratos. São requisitos essenciais para que o negócio processual seja firmado:
- Partes capazes
- Direitos disponíveis[iii]
- Ausência de abusos em contrato de adesão ou situação de manifesta vulnerabilidade
Quanto a esse último ponto é necessário um destaque: a coibição de abusos em contratos de adesão, ou com uma das partes em manifesta vulnerabilidade em relação à outra, já é amplamente prevista na legislação consumerista[iv]. Contudo, em consonância ao artigo 423 do Código Civil[v], caso a relação entre os particulares seja claramente desproporcional, o negócio processual pode sofrer intervenção judicial, pois é dever do juiz recusar sua aplicação nos casos de “inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade”.
É inegável que o artigo 190 do Novo Código de Processo Civil afetará principalmente as negociações entre empresas, vez que, na expressiva maioria das vezes, na relação entre consumidor-fornecedor e fornecedor-Estado, a margem para negociação das cláusulas é deveras limitada (quando existente!), pois são contratos impostos (contratos de adesão).
Dessa forma, percebe-se que as relações contratuais, especialmente no âmbito da negociação entre empresas, o que é mais comum, serão drasticamente alteradas. Surge uma nova dinâmica negocial, pois as empresas deverão ficar atentas à mudança na lei para evitar prejuízos posteriores com a má negociação de uma cláusula processual.
Para encerrar, resta um conselho: com a possibilidade de formação de negócio processual, cláusulas negociando o procedimento serão inseridas em praticamente todos os contratos, de modo que tanto a empresa como os demais colegas advogados deverão estar preparados para a mudança no modus operandi das negociações contratuais para antever problemas futuros e evitar perdas desnecessárias.
nOTAS
[i] LIMA, Flávio Pereira. Reflexões sobre o novo cpc e o negócio jurídico pré-processual. Disponível em: <http://jota.info/reflexoes-sobre-o-novo-cpc-o-negocio-juridico-processual-pre-processual - 06-01-16>. Acesso em 06 jan. 2016.
[ii] CUNHA, Leonardo Carneiro da. NEGÓCIOS JURÍDICOS PROCESSUAIS NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO. Disponível em: <https://www.academia.edu/10270224/Neg%C3%B3cios_jur%C3%ADdicos_processuais_no_processo_civil_brasileiro>. Acesso em 06 jan. 2016, p. 22.
[iii] Direitos disponíveis são “bens que podem ser negociados ou alienados, ou porque se encontrem livres e desembaraçados e porque pode o alienante dispor deles a seu bel-prazer” (SILVA, De Plácido. Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro, 2003, p. 481).
[iv] Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;
[v] Art. 423. Quando houver no contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente