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Do Estado liberal ao Estado regulador

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CAPÍTULO III – ESTADO PROVIDÊNCIA

Nada obstante o quadro jurídico trabalhista representar uma mudança econômica, no pensamento liberal clássico - que praticava o truck system, a baixa de salários, o aumento da jornada e o trabalho infantil sem restrições[48] como algo natural à economia -, as chamadas conquistas trabalhistas foram tidas pelos capitalistas como custos necessários à produção, para que a classe trabalhadora aceitasse a economia de mercado.

Além do fator trabalho, o pensamento político dominante no período do Estado Liberal sempre teve o fator tributário (política tributária) como algo comum, praticado, em especial, para garantir a defesa externa e a segurança interna e, em razão do modelo francês, marcado por um certo dirigismo estatal, sobretudo no que se refere às obras públicas, fundamentais para a produção, o que já era algo comum em França desde o absolutismo. Com os passos históricos dados em direção ao Estado Social, a política tributária também passou a ser amplamente praticada para o atendimento das demandas sociais, com uma forte menção à diminuição de desigualdades.

Ademais, o século XIX e o início do XX assistiram ao arranque econômico dos Estados Unidos da América, que já era a maior potência econômica mundial desde 1900. A marca da economia america, em que pese o forte liberalismo interno e propugnado às nações, era o protecionismo econômico. A economia americana também era caracterizada pelos grandes conglomerados empresariais e pela grande empresa, que superara, em tamanho dos parques e em número de trabalhadores, as indústrias europeias. Com o forte desenvolvimento econômico experimentado, os Estados Unidos disseminaram sua política industrial. As ideias de Taylor de organização do trabalho e a prática de Ford estavam em voga e esse método seria adotado em muitos locais do mundo ocidental, onde houve industrialização, e imposto por lei, no modelo soviético, em empresas estatais.

Ao término da Primeira Guerra Mundial, assistiu-se, também, como já se disse, à edição de cartas (Constituições) e declarações de cunho social e à universalização do modelo do Estado Social, com a adoção institucional do quadro trabalhista em várias partes do mundo. Contudo, as nações vencedoras da guerra imprimiram um amplo leque de obrigações draconianas à Alemanha, que passou por graves problemas econômicos e sociais. Antes mesmo da Seguranda Grande Guerra, Keynes já havia alertado para isso, acentuando a injustiça das restrições e imposições econômicas ao povo germânico.

Com efeito, política tributária, política de obras públicas, política industrial, protecionismo e quadro jurídico trabalhista e social eram práticas comuns no ocidente desenvolvido naquela altura, que conviveram e se intenssificaram até o final da década de 1920. Contudo, a crise econômica alemã, que já contaminava toda a Europa e, sobretudo, o crash da bolsa americana lançaram a economia mundial em uma grande depressão. A década de 1930 é marcada pela quebra de muitas empresas e pelo desemprego em massa, nunca visto antes no capitalismo.

A crise social foi muito grande e se via a necessidade de desenvolvimento econômico para o alcance de metas sociais. Contudo, no ocidente, o pensamento econômico clássico continuava dominante e representava algo sagrado. Mesmo com tanta miséria, os liberais puros, maioria política da época, não admitiam maiores incurssões do Estado. A chamada lei de Say era um dogma: a oferta naturalmente cria a sua própria demanda. O pensamento de Ricardo sobre poupança também. Ocorre que, na análise de Keynes, a resposta natural da economia, se é que existia, para o desenvolvimento econômico, era muito lenta. E a situação de desemprego exigia o debruçar teórico sobre o assunto, para que a prática fosse, então, alterada. Keynes entendia que o capital é trazido à existência não pela propensão de poupar, mas como resposta à procura resultante do consumo real[49]. Por outro lado, para ele, o pleno emprego traz um aumento do rendimento da empresa em geral[50]. Poupar demais é contra o pleno emprego[51] e, portanto, contra o desenvolvimento. Há, assim, uma lei entre consumir e o pleno emprego[52]. A poupança exagerada estava impedindo o desenvolvimento, sendo necessária, talvez, a eutanásia do rentier, ou seja, do “opressivo poder cumulativo capitalista”[53].

  Do mesmo modo que as ideias de Smith foram fundamentais para o Esado Liberal e as de Marx[54], para o alcance do Estado Social, Keynes aparece como o idealizador de um novo modelo de Estado. As ideias de Smith penetraram no pensamento do industrial inglês (pensamento de produzir) e o ideário marxista, com sua crítica às condições de vida e de trabalho do proletariado, repercutiu na liderança trabalhadora e de toda a classe política na segunda metade do século XIX e primeiros vinte anos do século XX. Com Keynes, o mesmo aconteceu. Economista e professor de Cambridge, era um profundo conhecedor e, até uma certa altura, defensor do pensamento econômico clássico. Era alguém ouvido no meio do pensamento econômico dominante.

Segundo ele, para a superação dos entraves e o alcance do pleno emprego e do desenvolvimento econômico, não seria necessária qualquer revolução, mas, sim, estímilos e certos controlos sobre determinadas atividades confiadas essencialmente à iniciativa privada. Trata-se de uma influência orientadora sobre a propensão de consumir, através do sistema tributário, da taxa de juros e outros meios. Necessário se faz a socilização abrangente do investimento – único meio para assegurar o pleno emprego. Essa socialização do investimento não exclui outros tipos de compromisso e dispositivos para cooperação entre o Estado e a iniciativa privada e isso não é, nem justifica, o socialismo de Estado, não importando, para este, em assumir os meios de produção. O Estado deve adotar as medidas de socialização necessárias gradualmente, “sem afetar as tradições gerais da sociedade”[55]. Keynes acentua que “a economia clássica se mostra incapaz de resolver os problemas econômicos do mundo real”. Para ele, se os controles centrais da economia conseguirem estabelecer um volume de produção adequado, “a teroria clássica retomará os seus direitos”. Assim, em reazão de serem inaceitáveis os níveis de desemprego, o que demonstra que o modelo econômico é falho, o Estado deve intervir, o que exige “uma considerável extensão das funções tradicionais do governo”, mas ainda irá restar grande espaço para o exercício da iniciativa privada, uma vez que, para Keynes, o individualismo continua sendo vantajoso, especialmente pela eficiência, e por ser, a seu ver, a melhor salvaguarda da liberdade pessoal. O Estado homogêneo e totalitário não permite essa eficiência, sendo necessario que a variedade preserve as tradições que incorporem “escolhas mais seguras e bem sucedidas das gerações passadas” [56].

Keynes susteta que o seu pensamento é “o único meio exequível para evitar a destruição total das instituições econômicas atuais e como condição de um bem sucedido exercício da iniciativa individual”[57]. A presença de Keynes nos altos círculos de poder, com a adotação de seu ideário na Inglaterra, em face, sobretudo, de sua assessoria a Churchill, fez com que o seu pensamento fosse adotado no ocidente desenvolvido, especialmente na Europa ocidental. Assim, para haver desenvolvimento, o Estado deve intervir na economia. O problema do pensamento econômico anterior se relacionava com a ausência de combate eficiente ao desemprego, através da intervenção.

A causa da Primeira Grande Guerra, para Keynes, foi a luta pelo mercado externo, pois este era fundamental para o equilíbrio econômico de uma nação e seu desenvolvimento. Ao impor vendas externas, mantém-se o emprego interno. Olhava-se mais para isso e não para o desemprego crônico e persistente, por suas causas internas. A economia mundial, na altura em que Keynes escreveu a sua teoria geral, sofria de redução do mercado externo. Para Keynes, a ação estatal e o seu repertório poderia ser variado. O que importava era alavancar o emprego e alcançar o pleno emprego. Em situações de grande desemprego, Keynes defendia a realização de obras públicas, mesmo as de “duvidosa utilidade”, uma vez que o grande emprego de homens em obras públicas produzirá um efeito correspondente sobre o emprego agregado, inclusive a reduzir gastos com a assitência social. Depois, com o desenvolvimento e o atingimento do pleno emprego, recomeça-se o cilho, com a diminuição das obras públicas[58].

O pensamento Keynesiano impactou o mundo ocidental desenvolvido de um modo ainda maior, sob o ponto de vista das ações econômicas do Estado. Este passou a ser um Estado intervencionista, não apenas no sentido de ser um Estado que incentiva, que faz ajustes, mas um Estado Providência, um Estado Serviço Público, que é responsável pela prestação de atividades econômicas, que são tidas, em um conceito mais lato, como serviço público.

O Estado Interventor tem diversas obrigações e passou, institucionalmente, a partir das Constituições (alteradas ou editadas novamente), a ter responsabilidade por tarefas que se tornaram fundamentais, incumbências consideradas prioritárias no âmbito econômico. Tal quadro jurídico, em princípio, foi adotado até mesmo no Reino Unido, mas sobretudo na Europa Continental, em especial pelas contingências políticas que conduziram à proliferação de um fenômeno chamado em muitos locais como Estado Novo, que se espalhou, inclusive, pela América Latina. Em que pese o decréscimo democrático em alguns países ocidentais, o intervencionismo vem como doutrina e fórmula institucional de modelo de Estado, que agora tem a obrigação de coordenar e regular superiormente a vida econômica, como previsto na Constituição da primeira República Portuguesa, em seu art. 31º.

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Em França, o modelo se aperfeiçoa, com as definições de serviço público, administração pública direta e indireta, bem atualizadas às situações da época (necessária intervenção do Estado), em que o Estado europeu ocidental começa a prestar intenssivamente serviços públicos, através de empresas. E não só, o Estado ocidental passa a explorar diretamente atividades econômicas típicas, em setores tidos como estratratégicos ou essenciais, como exemplo, as atividades econômicas que foram consideradas como monopólio do Estado. Na América Latina, também por exemplo, passa a ser muito comum o monopólio do petróleo e da indústria de outros bens, como de aviões, no Brasil, que, por muito tempo, foi monopolizada pela estatal EMBRAER. São os serviços industriais e comerciais do Estado. Ao lado desse esquema jurídico representativo da interveção direta - no conceito econômico; indireta na terminologia administrativista: por terceira pessoa criada pelo Estado, não a Administração central -, por pessoas jurídicas pertencentes ao Estado, mesmo, em geral, com personalidade jurídica de direito privado, como as sociedades de economia mista e as empresas públicas, o Estado também adotava o sistema das concessões de serviço público, através do qual trespassava para interposta pessoa, em geral, da iniciativa privada, a prestação do serviço considerado público[59].

O Estado Providência terminou por se caracterizar como o Estado que procura atender às reinvidicações sociais, providenciando os bens e serviços, inclusive culturais, almejados pela sociedade, não produzidos ou não prestados suficientemente pela iniciativa privada[60], ao lado dos monopólios estatais de setores estratégicos. Há o congestionamento do Estado, que, no intuito de atender a tudo, procura ajustar-se às exigências sociais, criando fórmulas jurídicas, sobretudo pessoas jurídicas, para o atendimento dessas demandas.

Não obstante, a visão keynesiana foi fundamental, para quebrar uma barreira ideológica, o que era necessário para uma maior atuação estatal no domínio econômico, a permitir a reconstrução da Europa, em especial após a Segunda Grande Guerra. O intervencionismo estatal na economia passou a ser uma tônica na sociedade capitalista ocidental. O indivíduo passa a ter, em princípio, direito à determinadas prestações ou fornecimento de determinados bens e passa a ser dever do Estado, para o regular e equilibrado funcionamento das atividades essenciais a essas prestações, intervir na economia, auxiliando ou prestando diretamente determinados serviços e bens[61].

Ao Estado cabe, então, em princípio, intervir, livremente, na economia, estatizando, nacionalizando e criando atividades econômicas, bem como agindo para impulsinor a economia através de contratos de obras públicas, ou através de concessões a particulares de serviços que considera público. A supremacia do interesse público sobre o interesse privado é a tônica. O poder regulamentar é utilizado diretamente pela Administração Pública, através de seus órgãos centrais, como os ministérios ou por corporações, como se verá a seguir.          

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Sobre o autor
Raimundo Itamar Lemos Fernandes Júnior

Juiz Titular da 16ª Vara do Trabalho de Belém. Professor da Especialização em Direito Processual e do Trabalho da UNAMA. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UNAMA. Ex-juiz Cooperador do TRT da 8ª Região (Rede Nacional de Cooperação Judiciária do CNJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Raimundo Itamar Lemos Fernandes. Do Estado liberal ao Estado regulador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4592, 27 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46140. Acesso em: 28 mar. 2024.

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