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Do Estado liberal ao Estado regulador

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CAPÍTULO IV – ESTADO REGULADOR

Para Keynes, com o desenvolvimento econômico, deixaria de haver a necessidade de “socializar a vida econômica”[62], nos limites que ele mencionou e acima sintetizados. Contudo, houve um movimento mais intensso do que por ele preconizado, embora os defensores dessa coorente se entitulem como adeptos do pensamento intervencionista keynesiano. É a vertente, sobretudo política, que encaminhou o pensamento intervencionista no sentido da estatização de parte ou grande parte dos meios de produção e de planificação ou semiplanificação da economia no mundo ocidental, mesmo nos países democráticos, como Holanda e França[63], sem limite temporal para acabar. O estatismo passaria a ser algo normal da economia. Esta corrente predominou por décadas no domínio político, mesmo quando a economia atingiu níveis satisfatórios de crescimento. Por outro lado, grande parte do mundo ocidental foi influenciado pelo modelo orgânico alemão, ou modelo corporativista de Estado – totalitário, que permaneceu vigente, em grande parte dele, mesmo depois da Segunda Grande Guerra Mundial[64].

Ao analisar a Constituição protuguesa de 1933 (art. 5º), sobre o sentido jurídico do Estado Corporativo, Marcelo Caetano ensina que, no seio do povo, existem comunidades e associações, a realizar “tarefas coletivas parcelares”, inclusive econômicas, sendo certo que cabe ao Estado “respeitar e sancionar o direito disciplinar brotado desses grupos primários”. O pluralismo jurídico seria, então, natural da sociedade, contudo, o Estado tem primazia sobre o direito corporativo, devendo regulá-lo, condicioná-lo e limitá-lo[65].

Ademais, foram criadas, em Portugal, corporações no domínio econômico (coordenação econômica), segundo o Decreto-Lei nº 26.757, de 8 de julho de 1936: “organismos destinados a coordenar e regular superiormente a vida econômica e social nas actividades diretamente ligadas aos produtos de importação e de exportação” (art. 1º), com “funções oficiais, funcionamento e administração autónomos e...personalidade jurídica”. Segundo Marcelo Caetano, “pessoas coletivas de direito público”. Outras foram criadas exercendo funções de autoridade e com poder regulamentar sobre: lavoura, indústria, comércio, transportes e turismo, crédito e seguros, pesca e conservas, imprensa e artes gráficas e espetáculos. Todavia, os regulamentos eram aprovados “mediante proposta formulada ao Governo ou com o assentimento deste” [66].

O modelo de estatização de parte dos meios de produção e de criação de corporações para regulamentação econômica controladas pelo Estado, comum no mundo europeu ocidental, expandiu-se até a década de 1970, em princípio como resposta, a adotar a proposta keynesiana, de intervenção no domínio econômico, para combater o desemprego e atender às necessidades sociais de consumo de determinados bens e serviços.

Contudo, a partir da crise do petóleo, em 1973, houve uma crítica generalizada à estatização na Europa Ocidental, iniciando-se um movimento de privatizações, sobretudo com Tatcher, na Grã-Bretanha, que chegou ao poder em 1979. A crítica também foi grande quanto ao welfare state, a pretender-se a diminuição das políticas sociais, com a alegação de que o défice público era insustentável. Assim, iniciou-se um programa de liberalização econômica (privatizações), com a reestruturação do setor minerio no Reino Unido e o regresso ao setor privado de empresas como: British Aerospace, Cable & Wireless, British Rail, British Telecom, British Airways e empresas estatais de gás, petróleo, alojamento e muitas outras[67]. 

Por outro lado, a crise econômica no Leste Europeu foi se agravando em toda a década de 1980, com a ruína do sistema econômico comunista na Europa, mediante o seguinte roteiro em síntese apertada: Gorbachov inicia as reformas na URSS em 1983; em 1989, a fronteira da Hungria é aberta para a Áustria; são realizadas as primeiras eleições livres e Lech Walesa chega ao poder na Polônia; cai o muro de Berlim; surgem os países democráticos do Leste da Europa; e a doutrina liberal é, de um modo geral, com o fim da Guerra Fria, considerada vitoriosa, concluindo-se por se fazer necessário o recolhimento do Estado.

Não obstante o processo de privatizações ter continuado gradativamente e até hoje prosseguir e ter se pensado, com Tatcher, inicialmente, no desmonte do welfare state, com a redução das políticas sociais, isto não se consumou[68]. Em grande parte, pelo fato de, mesmo com a grande redução da apropriação estatal dos meios de produção, o Estado ter continuado a intervir na economia através da regulação que se aperfeiçou e se intenssificou.

Em verdade, a regulação do modelo corporativista, com controle pelos órgãos da administração pública central do poder regulamentar, ou mesmo por Ministérios diretamente, sofreu uma retração nesse período, a partir da década de 1970, o que se intenssificou nos anos seguintes, sobretuto na década de 1990. Embora com um inicial titubeio em se deixar tudo sem qualquer regulação, concluiu-se que o Estado precisava intervir, mas o método corporativista, a estatização e a regulação por órgãos da administração pública central se revelaram falhos e inadequados.

A visão adotada foi a de que o mercado, em princípio, é livre e de que as políticas sociais devem permanecer e até ser incrementadas. São conquistas do Estado Liberal e do Estado Social, que representam um avanço da sociedade ocidental e significam um verdadeiro contratao social, necessário para a paz e estabilização das nações. Por outro lado, a intervenção econômica deve continuar, de modo a garantir o consumo, o que atende ao conceito do Estado Providência, quanto ao fornecimento de bens e serviços ao público a preços acessíveis, mas não através de empresas do Estado, porém por intermédio de uma regulamentação que permita a boa realização desse desiderato através dos privados. O Estado Providência, do pós-Guerra até o fim da Guerra Fria, permanece hoje, contudo, o seu alcance é através de uma ferramenta, a regulação. Não se descarta, no entanto, a figura da intervenção direta, por exploração do Estado de atividade econômica de interesse geral, contudo, esta deve ser excepcional, em princípio quando a iniciativa privada não puder ou não estiver a atender adequadamente a demanda, o que se afeiçoa ao modelo anglo-saxão.

Com efeito, a regulação da atividade econômica pelo Estado tem sido desenvolvida, de um modo mais visível, nos EUA, sempre no intuito de permitir mais livre concorrência, contrária ao sentido corporativista ou estatizante. Desde o Século XIX, os tribunais, ao interpretarem a Constituição, autorizaram o governo federal a regular o comérico entre os Estados, no intuito de favorecer a concorrência[69]. Em 1890, com o Sherman Act, previram-se duras coimas a qualquer membro de uma aliança formulada para restringir o comércio. Em 1914, com a criação, nos EUA, da Federal Trade Comission, a fim de fazer respeitar a concorrência e definir práticas de lealdade nas transações, tentou-se, através de autoridades locais, controlar os consórcios. O impulso ao movimento regulador deu-se, todavia, com o reforço do Hepburn Act, já sob a presidência de Roosevelt, um lutador incansável pela efetivação do princípio da livre concorrência. Em 1911, Roosevelt obteve vitória em ações judiciais, movidas desde 1903, através das quais, por decisão da Suprema Corte, dissolveu-se a Standard Oil (gigante petroleira americana) em 34 companhias independentes, cessando esse monopólio nos Estados Unidos. Nesse diapasão, durante a presidência de Woodrow Willson, foi aprovado o Clayton Antitrust Act, para impedir fusões e concentrações de preços.

Ao lado da regulação da concorrência, que principiara na parte final do século XIX, também se desenvolveu nos EUA a noção de public utilities[70]. Com o crescimento tecnológico, muitas atividades estavam vinculadas indispensavelmente ao crescimento industrial - abastecimento de água, gás e eletricidade – e, pela incapacidade da iniciativa privada em prestá-las, o Estado se responsabilizava por elas, o que também ocorria com os serviços postais, administrados pelo governo federal.

Ao mesmo tempo, ao se contemplar uma public utilitie já prestada pela iniciativa privada, viu-se a necessidade de regulá-la. O caso símbolo foi o da A&T. Formou-se o primeiro monopólio privado, em torno das telecomunicações, através da Bell Telephone Company, dirigida por Alexander Graham Bell, o inventor do telefone (1876), o qual detinha a patente. Em 1884, expirou a patente e foi estabelecida a concorrência no setor, com o ingresso de outras operadoras no mercado, o que fez a empresa de Bell passar por instabilidade. Com a nacionalização dos serviços de telefonia no Reino Unido em 1912, o mesmo aconteceu nos Estados Unidos, como parte dos esforços de guerra, de modo provisório. Contudo, após a guerra, por receio de trust, fixou-se o complexo de tarifas do serviço pelo Estado, o que dominou o modelo norte-americano de regulação das public utilities a partir de então, as quais foram subordinadas à administração pública, que resguardava o serviço universal. Em 1934, a regulação dos serviços telefônicos de longa distância saiu das mãos do Congresso americano e passou para a competência da Federal Comunications Comission[71]. 

Na altura da Grande Depressão, o setor público americano representava apenas 8% da economia do país. Não resta dúvida que Roosevelt criou empresa estatal (Tenessee Valley Authority – empresa pública de ordenação do território e  e de construção de infraestruturas) pontual, iniciou inúmeras grandes obras públicas no país e editou medidas sociais (Social Security Act, estabelecendo seguro para os assalariados), todavia, os pontos marcantes de seu New Deal foi, por um lado, desregulamentar a economia - suspensão da lei antitrust (NIRA – National Industrial Recovery Act[72]), sob a condição de que os salários subissem e medidas sociais fossem adotadas pelas empresas -, e regulamentá-la por outro – proibição das fusões e filiações entre bancos e sociedades de investimento, com a compartimentação das atividades bancárias, para evitar que o pânico da bolsa implicasse no colapso de todo o sistema bancário, e garantia de depósitos (Banking Act)[73]. Nessa toada, através do Agricultural Adjustment Act (1930), regulamentou o pagamento de incentivos a agricultores que aceitassem reduzir a superfície explorada ou diminuir a respectiva produção, para causar uma baixa da oferta.

Por óbvio, muitas ferramentas podem ser utilizadas pelo Estado, como feito por Roosevelt, que tornou a economia americana capaz de alavancar a reconstrução da Europa (Plano Marshall) e do Japão. Contudo, a ferramenta da regulação/desregulação vem a se revelar como a mais usada e eficiente - o modelo americano. Em regra, somente em situações excepcionais (incapacidade ou insuficiência da iniciativa privada; segurança nacional), de crise e de guerra se utiliza do modelo da prestação direta pelo Estado do serviço de natureza econômica. A fórmula norte-americana da regulação vai ganhar o mundo a partir da década de 1990 somente. Até então, na Europa continental, imperava o pensamento do Estado Serviço Público, como o mecanismo fundamental para alcançar o pleno emprego, melhorar a renda e desenvolver a economia: o próprio Estado presta o serviço econômico – serviços públicos econômicos, que açambarcavam os antigos serviços industriais e comerciais do Estado. O alargamento do significado de serviço público, com base na Escola Francesa de Direito Administrativo – service public à la française -, veio a nortear a prática da maioria dos Estados no mundo ocidental na era anterior à do Estado Regulador. Segundo Léon Duguit, o serviço público é a atividade indispensável, cujo cumprimento, pela sua natureza, há de ser “regulado, assegurado e controlado” pelos governantes, exigindo a intervenção do Estado. Dentre as atividades consideradas serviço público, estavam os serviços públicos concedidos[74], o que incluía os industriais e comerciais do Estado - econômicos.

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Com a privatização, o Estado passou a regulamentar a economia, em dois sentidos: (1) regular a concorrência (regulação de base ou transversal)[75], que abrange todos os operadores econômicos, inclusive os serviços, anteriormente às privatizações, prestados diretamente pelo Estado; (2) e regular setores, sobretudo os que têm a responsabilidade pelos antigos serviços industriais e comerciais do Estado, agora, na linguagem comum europeia, os serviços de interesse econômico geral[76]. Não se considera mais, em princípio, que o Estado tem a titularidade (publicatio) desses serviços de interesse econômico geral que foram trespassados para o setor privado (despublicatio – despublicação material de atividade)[77]. E mesmo quando venha a desempenhá-los diretamente, em geral, deve suscitar a concorrência, a não ter, o Estado, privilégios em relação aos privados. Excepcionalmente, quando houver monopólio, a atividade deve ser ainda mais regulada, mesmo que o serviço de interesse econômico geral venha a ser prestado por órgão da administração pública central ou por entidade criada pelo Estado, para que seja bem prestado e, se possível, permitir sua abertura concorrencial futura.

Assim, a intervenção do Estado na economia, em geral, hoje, analisando a experiência europeia e americana, dá-se, sobretudo, através da realização de grandes obras de infraestrutura (que também são reguladas, sendo que muitas delas realizadas por privados, mediante contratos com a Administração ou Parcerias) e, principalmente, pela regulação da economia, através da qual o Estado edita e aplica normas que permitam o alcance do objetivo econômico estatal – a livre concorrência para a produção adequada de bens e serviços e a correta prestação de serviços de interesse econômico geral (public utilities), a saber: setores de água, transportes, energia, serviços postais, telefonia, dentre outros (internet, por exemplo).

A livre concorrência é regulada quanto a todo o mercado e em relação a cada setor, com as suas especificidades, exatamente para que não deixe de existir e para incrementá-la. E os setores dos serviços de interesse econômico geral são regulados com mais cuidado, ante a sua utilização universal e essencialidade coletiva, e em face da sua prestação em rede. Através de tarefas públicas, como as de supervisão e regulação de atividades[78], o Estado garante a realização dos serviços de interesse econômico geral e a concorrência. Para a efetividade da regulação, há a necessidade de instrumentos jurídicos eficazes de controle (inclusive quanto ao acesso ao mercado para prestar os serviços), acompanhamento e fiscalização dos regulados, bem como de punição dos infratores das medidas de regulação[79].

Para isso, foi desenvolvido o mecanismo das agências reguladoras independentes, que realizam atuações administrativas públicas de regulação e supervisão, contudo, distinguem-se dos demais órgãos da administração pública, por sua independência em relação ao governo. Funcionam de forma colegiada e, em geral, com um quadro de profissionais de alta competência e preparação técnica (aptidão, experiência profissional e formação adequada) na atividade do setor regulado. Em Portugal, a lei nº 67/2013 (Lei-Quadro das Entidades Reguladoras) definiu, como princípio, em seu art. 3º, 1, que as entidades reguladoras são pessoas coletivas de direito público, com natureza de entidade administrativa independente, em matéria de regulação[80] da atividade econômica e de promoção e defesa da concorrência.

Pedro Gonçalves traz à baila as chamadas obrigações de serviço público, que são “as constrições a que um serviço de interesse económico geral ou serviço universal deve obedecer”[81]. Estas obrigações estão sintetizadas por Marcelo Fontana, como sendo as seguintes: serviço universal (disponibilidade, não discriminação e amplo acesso, embora sem se permitir o consumo excessivo); continuidade do serviço; segurança no aprovisionamento (medidas que o assegurem); fornecimento de informações ao regulador; separação contábil relativa às atividades financiáveis (para o cumprimento de obrigação de serviço público); proteção ambiental; garantir acesso à infraestruturas (os operadores que as detêm); adoção de padrões técnicos; obrigações relativas ao preço (acessível ao utente, recompensador do prestador e possibilitador de investimentos) e à qualidade dos serviços (eficiência, segurança e mutabilidade)[82]. Além dessas, acrescenta-se a obrigação de respeitar às normas regulamentares de segurança, saúde e higiene no trabalho, que podem ser classificadas como normas de proteção ao ambiente – meio ambiente de trabalho. Ademais, devem os operadores econômicos observar as obrigações relativas às normas de proteção ao consumidor. A esse respeito, Vieira de Andrade alerta da necessidade de “defesa das pessoas contra entidades poderosas que possam provocar-lhes lesões e, em última análise, afectar o livre desenvolvimento de sua personalidade”[83]. Nesse sentido, a lei nº 67/2013 define que a entidade reguladora regulará a atividade econômica e também a proteção de direitos e interesses dos consumidores – art. 3º, 1. Ao regular a atividade econômica, tem como uma de suas finalidades a proteção de direitos e interesses dos consumidores, matéria essa também objeto de sua regulação.

  A par de todas essas obrigações que são atribuídas aos operadores econômicos, as agências reguladoras devem, além de ser independentes do governo – fundametal para a sua legitimação -, estar calcadas em um aspecto basilar que lhes acrescenta mais legitimação democrática, manter um relacionamento institucional com Governo, consumidores e operadores econômicos, o que não hostiliza a sua independência. Em verdade, propugna-se uma “visão consensual da atitidade regulatória”, sobretudo na obtenção das regras impostas ao setor da economia regulado, através da adoção de instrumental até certo ponto contratual, como, por exemplo, “o ato administrativo de aceitação de compromissos”[84].

A crise financeira de 2008 – crise dos subprimes (créditos hipotecários ou empréstimos imobiliários de alto risco – subprime mortage), com uma recessão subsequente em várias localidades do mundo, mais sensível na Europa e nos EUA – tem trazido à tona a discussão sobre suas causas, inclusive aquelas que gizam em torno do poder regulador da economia – excesso de regulação ou falta de regulação. Seria a crise do Estado Regulador[85]. Há  quem propugne haver a crise do Estado ocidental – sua democracia e seu capitalismo[86]. Contudo, ao que parece, a capacidade regulatória (ex post), mesmo deficiente, fez com que a crise não chegasse a ter o poder devastador a ponto de causar uma grande depressão, como a de 1929.

Nesse sentido, o Estado regulador parece ser a fórmula para a garantia dos aspectos proeminentes nos três modelos de Estado estudados do primeiro capítulo até o terceiro deste trabalho. É o Estado que assegura: (1) a propriedade privada, baseando-se na livre iniciativa particular e tem nessa o principal fator econônico; (3) os direitos sociais: trabalho, saúde, educação, previdência e assistência social; (3) as prestações dos serviços econômicos necessários para todos os indivíduos, de maneira universal, e, também, para os próprios operadores econômicos. 

O Estado regulador não é a antítese do Estado liberal. Ao contrário. Ele veio aprimorar o liberalismo, em especial ao definir-lhe balizas, pois os interesses de um indivíduo não devem invadir a esfera dos de outro; os interesses individuais não devem malferir o interesse público – a vontade geral; e o Estado não deve desrespeitar a esfera individual. As balizas desses interesses são definidas no Estado de Direito, que também engendra o modo de resolução dos conflitos, de maneira segura, bem articulando a função jurisdicional, de forma independente e adequada ao matiz conflitual. Em verdade, a regulação vem para garantir o direito do outro também concorrer no mercado. Ao mesmo tempo, garante o interesse público, que se consubstancia na concretização de interesses gerais, sociais e coletivos. A tributação e o quadro legal trabalhista, por sua vez, vêm no intuito de atender aos reclamos sociais por trabalho, educação, saúde, previdência e assistência social. Estas definições encontram-se presentes no Estado Regulador, que tem como objetivo, também, a concretização dos direitos sociais.

Em verdade, a regulação tem um amplo espectro de alcance social, que transcende à regulação meramente econômica. As regulações sociais são uma nuance significativa da regulação moderna e mostra que Estado Regulador e Estado Social andam juntos. Assim, obrigar um prestador de um serviço econômico de interesse geral ao fornecimento do serviço a todos os potenciais utentes; a disponibilizar equipamentos especiais para acesso ao serviço de interesse econômico por pessoas deficientes; adequados aos idosos; com transparência quanto à qualidade e aos preços; a regras de proteção a setores vulneráveis – baixa renda[87]; a regras de higiene, segurança e medicina no trabalho; a regras de proteção e de segurança dos consumidores, significa o Estado Regulador como Estado Regulador Social[88].

O Estado Regulador também anda junto com o Estado Providência. Os fins dos dois modelos são os mesmos: o consumo de bens necessários, imprescindíveis. Ao providenciar, o Estado, os serviços de interesse econômico geral, os meios são diferentes nesses modelos: os do Estado Providência, através da prestação direta do serviço pelo Estado, em regra; no Estado Regulador, a prestação do serviço alcançada pela regulação econômica. O cidadão do Estado Regulador também tem direito à prestação desses serviços e, em condições excepcionais, de recebê-lo mesmo sem o pagamento, quanto a certos serviços, em determinadas situações excepcionais, ou mediante o pagamento parcial do preço pelo serviço prestado, também em razão de requisitos extraordinários. Ademais, as condições de eficiência, qualidade, disponibilidade, acessibilidade e preço são muito melhores em um sistema mais dinâmico e eficaz, quanto ao controle (mais controlável) e prestação. Nos tempos do Estado Serviço Público (Prestador), a mutabilidade deixava a desejar. As acomodações (estática) conduziam a uma prestação inadequada. O Estado regulador, por isso, pretende alcançar a universalidade dos utentes e a uma boa prestação dos serviços, tendo em vista a solidariedade social. É o alcance da fraternidade, através do financiamento de todos os que podem pagar, seja pela quitação de tarifias ou do subsídio público, para que todos, quem quer que sejam e de onde estejam, tenham acesso a esses serviços, considerados de interesse geral.

Assim, os aspetos (1) livre iniciativa, (2) direitos sociais e (3) direito à prestações de bens e serviços de interesse econômico geral continuam presentes no Estado Regulador e o caracterizam. O Estado Regulador, pontanto, congrega e dinamiza os principais elementos finalísticos de cada um dos modelos anteriores – Estado Liberal; Estado Social e Estado Providência.

 Contudo, em face da crise de 2008, as críticas ao Estado Regulador, em função das suas suscetibilidades, são grandes. Há um risco de contágio muito grande da economia global, em crises que se sucedem imprevisivelmente.

 Para Keynes, como acima mencionado, uma causa da Primeira Grande Guerra foi econômica – guerra por mercados externos, sendo certo que a Primeira Guerra foi, em última instância, a causadora da Segunda, em razão, principalmente, do grande rancor alemão pelos pesados encargos a que se submetera em face do término da Primeira. Nesse ponto, mesmo sem conhecer o pensamento de Keynes, Roosevelt[89] fez uma mea culpa, ao dizer que o protecionismo causou problemas para o mundo. Assim, hoje, há uma tendência global para a abertura da economia e para a adoção da economia de mercado, o que traz riscos. Joseph Stigliz diz que “a rápida liberalização dos mercados de capitais sem ser acompanhada da respectiva regulamentação pode ser perigosa”[90], a propugnar por um certo padrão de governança global.

Ao mostrar que nem a mão invisível do mercado, nem a mão pública foram suficientes para resolver os problemas econômico-sociais, Suzana Tavares preleciona que há a necessidade de adoção de sistema econômico dinâmico, capaz de gerar progresso social e calcado no dinamismo das liberdades econômicas, a atuar disciplinado “pela regulação pública setorial e num quadro compromissório” de economia global[91]. Para isso, faz-se necessário um esquema de multinível normativo, semelhante ao já vigente na União Europeia, no sentido de uma smart regulation[92], que considere os serviços de interesse econômico geral como instrumentos de promoção da coesão social, no espaço de integração econômica, como um regime com pretensões de constituir uma cidadania social, com derrogações ao sistema de concorrência pura e de distanciamento do Estado[93].

A expansão do Estado regulador para a arena global, através de uma regulação plástica (adaptável a cada parte do território terrestre, pelas suas condições de desenvolvimento) e com fórmulas flexíveis de regulação (contratos, parcerias) por organismos internacionais (públicos ou privados – com funções administrativas de regulação), com o estabelecimento do livre mercado e regulação social, dando-se créditos às nações que abrirem mercados e cumprirem metas sociais – proteção do meio ambiente; extinção do trabalho infantil, trabalho escravo contemporâneo (degradante), do duping social etc., pode redundar, salutarmente, na aplicação de fundos internacionais para a garantia de efetivação de serviços de interesse econômico geral em países subdesenvolvidos, a trazer benefícios sociais e econômicos substanciais a toda humanidade.

Desse modo, a good regulation[94] certamente ultrapassará fronteiras nacionais e não significará uma light regulation[95], mas, por óbvio, deve considerar liberdade de iniciativa, livre concorrência e direito do trabalho; propriedade privada e responsabilidade social; utilização de recursos naturais e preservação do meio ambiente; acúmulo de riqueza e distribuição da renda; suprimento das necessidades dos habitantes da terra, respeito aos direitos humanos, pluralismo e olhar voltado às gerações futuras; regulação, adaptação e desregulação, quando necessária.

Certamente, o Estado liberal garantiu direitos humanos individuais, a permitir o exercício das liberdades individuais e políticas. O Estado Social, por sua vez, reconheceu que o homem tem direito ao trabalho, à educação, à saúde, à previdência e à assistência social. O Estado providência, por sua banda, multiplicou os direitos do cidadão, obrigando o Estado às prestações universais coletivas (água, eletricidade, comunicação) e difusas (ações de proteção ao meio ambiente). O Estado Regulador, por fim, contempla todos os plexos normativos anteriores e procura dinamizá-los de modo a ultrapassar as etapas históricas de consolidação dos direitos anteriores, de manerira a respeitar, também, a pluralidade social e humana.

O Estado Regulador atua na pluralidade. A pluralidade jurídica é a sua tônica, consubstanciada nos núcleos variados de edição de normas jurídicas, sem totalitarismos jurídicos. Ao mesmo tempo em que estas fontes têm vários centros de produção e se dirigem a vários setores, estes (centros) não vêm apenas de dentro de pessoas jurídicas estatais, mas advêm também da sociedade, através de organismos sociais que normatizam, inclusive, setores da vida econômica. Ademais, centros de normatização conduzem à edição de normas jurídicas protetivas de segmentos sociais plurais, com reflexo na atuação do Estado. Deste modo, regras jurídicas são aplicáveis às minorias ou grupos sociais, de maneira que estatutos jurídicos plurais surgem na proteção do ser humano, na sua pluralidade, para solucionar problemas econômicos, v.g. Nesse sentido, o Estado Regulador revela-se como Estado Regulador Garantidor da existência dos serviços de interesse econômico geral, com acesso aos cidadãos, em condições de universalidade[96].

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Sobre o autor
Raimundo Itamar Lemos Fernandes Júnior

Juiz Titular da 16ª Vara do Trabalho de Belém. Professor da Especialização em Direito Processual e do Trabalho da UNAMA. Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito pela UNAMA. Ex-juiz Cooperador do TRT da 8ª Região (Rede Nacional de Cooperação Judiciária do CNJ).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

JÚNIOR, Raimundo Itamar Lemos Fernandes. Do Estado liberal ao Estado regulador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4592, 27 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46140. Acesso em: 22 nov. 2024.

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