O neoconstitucionalismo como instrumento de relativização da coisa julgada inconstitucional.

Segurança jurídica x supremacia constitucional

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O presente artigo estudará o neoconstitucionalismo como meio de relativização da coisa julgada inconstitucional, destacando-se o aparente conflito existente entre os Princípios da segurança jurídica e da supremacia constitucional.

RESUMO

O presente artigo estudará o neoconstitucionalismo como meio de relativização da coisa julgada inconstitucional, destacando-se o aparente conflito existente entre os Princípios da segurança jurídica e da supremacia constitucional. Se evidenciará, também, a importância da interpretação do magistrado para efetivação normativa do texto constitucional e de suas garantias. Posteriormente, se definirá os meios de controle de constitucionalidade e a necessidade de análise do caso concreto para que seja colocado em xeque o instituto da segurança jurídica, haja vista o interesse da manutenção da ordem constitucional.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Neoconstitucionalismo. Principio da Segurança Jurídica. Supremacia Constitucional. Coisa julgada inconstitucional.

1 INTRODUÇÃO

Após um longo e turbulento processo histórico marcado por ditaduras e injustiças, a Constituição brasileira de 1988 surge como um antídoto contra a intolerância e abuso de poder por parte das autoridades estatais. Trata-se, portanto, da efetivação da ideia de um verdadeiro Estado democrático de direito.

Com a Constituição promulgada em 1988, o Brasil sofreu uma transformação considerável em sua base ideológica. Os Direitos constitucionais passam a ser garantias coerentes com o modelo democrático, ocorrendo à constitucionalização de todo o Direito brasileiro. A Constituição ganhou força e promoveu um novo direito constitucional, ou seja, o neoconstitucionalismo, que traduz as diversas transformações ocorridas no cenário social e jurídico. A Carta Magna passa a ocupar o vértice do ordenamento jurídico e o juiz, por meio de uma necessária reaproximação interpretativa entre o Direito e a ética, tem o único objetivo de suprir os anseios de quem bate à porta do judiciário.

Diante de diversas indagações acerca das disposições do texto constitucional, verificou-se que muitas vezes a Constituição, por ser tão densa e prolixa, não apresenta soluções adequadas a determinados problemas, tornando imprescindível a interpretação das leis por parte da autoridade competente.

Dessa forma, o intérprete conta com a possibilidade de criar um direito aplicável ao caso concreto, uma vez que a nossa Constituição não consegue abranger normas para todos os casos possíveis. Surge, portanto, a necessidade de expandir a jurisdição constitucional, desenvolvendo uma nova dogmática: a interpretação do Texto Magno do Estado brasileiro por parte do poder legitimado.

A coisa julgada, título que encabeça o presente trabalho, conceitua-se como uma garantia constitucional que garante à sentença judicial a proteção contra ataques de recursos, tornando-a assim, imutável e indiscutível, conferindo a ela estabilidade e segurança jurídica.

Contudo, existem casos em que tal estabilidade e imutabilidade de uma sentença judicial torna-se questionável, uma vez que, no curso do processo, tal decisão acaba por ser prolatada em desacordo com os preceitos norteadores existentes na Constituição. A coisa julgada inconstitucional assombra o mundo jurídico uma vez que a própria segurança jurídica, estabilidade e imutabilidade de uma sentença judicial ficam abaladas e tornam-se questionáveis diante de tal impasse.

É sobre esse tema que discorreremos ao longo deste artigo, tratando de suas implicações no mundo jurídico e possíveis soluções para tal conflito, ressaltando por óbvio a atuação do intérprete da lei na solução dessa celeuma.

2 NEOCONSTITUCIONALISMO

Um novo movimento jurídico modificou e continua modificando a perspectiva dos juristas e da própria sociedade em relação ao Direito constitucional. Essa nova visão tem como objetivo analisar a Constituição e efetivá-la, de modo que tal diploma assuma sua posição de destaque no ordenamento estatal e garanta seu valor social e politico.

A partir do processo de democratização do Brasil, surgiu a necessidade de uma ordem constitucional que abrangesse direitos coletivos e difusos, garantindo uma organização social, digna a todos os cidadãos. O magistrado, intérprete da lei, passa a ter nesse contexto a função de produzir a norma não no sentido de fabricá-la, mas no sentido de reproduzi-la. O produto de sua interpretação passa a ser a norma expressada como tal. (GRAU, 2006).

O neoconstitucionalismo se refere as tentativas de descrição e compreensão dos sistemas jurídicos constitucionalizados, ou seja, a compreensão do papel de supremacia atribuída à Constituição como elemento integralizador da comunidade política. Portanto, a partir dessa nova era histórico-constitucional, como diz Kildare Carvalho (2008), a Constituição deve ser concebida por procedimentos democráticos e por consenso produzido pelo debate constitucional. Logo, toma a constituição, um papel central de toda a organização jurídica de um Estado.

Essa ideia de centralidade da constituição a coloca em uma posição de supremacia, efetivando, com isso, o valor normativo das regras constitucionais e garantindo uma posição elevada dentro de um sistema, que se estrutura de forma escalonada. (BARROSO, 2066).

O neoconstitucionalismo, ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser destacados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional (BARROSO, 2008).

A característica valorativa da constituição deve tomar um novo sentido a partir do neoconstitucionalismo, e o principal objetivo dessa mudança deve ser a promoção da constituição a um novo desenho, tornando-a mais segura de seus interesses e finalidades. As bases ideológicas dessa corrente colocam o papel da norma, enquanto regra e/ou princípio, entrelaçado ao papel do seu intérprete. O Poder Judiciário possui a função de efetivar a lei, portanto, cabe a ele o papel de fazer a interpretação do texto constitucional de maneira coerente com concepções e valores contemporâneos da sociedade.

A tese do neoconstitucionalismo autoriza o juiz a participar da criação do Direito, em casos de lacunas na lei. Logo, o papel do intérprete passa a ter, também, a função de realizar uma leitura moral do Direito, explicando a norma inspirado no conceito de justiça.

Maria Helena Diniz (1989) fala que “interpretar é descobrir o sentido e alcance da norma, procurando a significação dos conceitos jurídicos”. Essa hermenêutica jurídica tem por finalidade a atividade de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, fazendo-a incidir em um caso concreto. (BARROSO, 2001).

Essa interpretação, como diz Kildare (2008), é necessária para a sua aplicação, já que dependendo do contexto em que estiver inserida, a mesma palavra assume significados diferentes. A vista disso, a interpretação deve ser o meio utilizado para se dar sentido ao texto, aplicando-o de acordo com necessidades específicas de cada caso.

A interpretação constitucional exige um poder de abstração bem maior que o utilizado para leis comuns, já que a relação entre as normas constitucionais e a interpretação é intercalada por princípios de valor supremo e imodificável. Essas normas da Lei Maior apresentam características únicas, pois fazem parte do corpo do documento de maior hierarquia do ordenamento jurídico, tendo, por conseguinte uma natureza específica de linguagem e um conteúdo exclusivo, o que a torna um produto de caráter inestimável.

Os princípios constitucionais são a síntese dos valores mais relevantes da sociedade e do estado, sendo portanto as premissas básicas de uma dada ordem jurídica, que se alastra (ou deve se alastrar) por todo o sistema.

Principio é, por definição, mandamentos nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência. Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatentação ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais. (BOBBIO, 2006).

Esses princípios têm origem em diversas ordens, sendo fruto desde decisões políticas do Estado, até direitos subjetivos e naturais. Logo essa ordem constitucional tem por obrigação apresentar no seu texto, interesses de todo um grupo social, atribuindo direitos e deveres a todos os cidadãos e garantindo proteção a todo esses, que de uma forma única legitimam a superioridade da mesma.
 

2.1 Principio da Supremacia Constitucional

Visualizando o ordenamento jurídico como uma estrutura hierarquizada de normas, cuja base repousa na ficção da norma fundamental hipotética de que se utilizou Hans Kelsen para descrever a estática e a dinâmica jurídica, emerge, nitidamente, a supremacia da Constituição como ponto de apoio e condição de validade de todas as normas jurídicas, na medida em que é a partir dela, como dado de realidade, que se desencadeia o processo de produção normativa, a chamada nomogênese jurídica (PINHEIRO, 2012).

A Constituição confere à ordem estadual e aos atos dos poderes públicos medida e forma. Por esse motivo, a lei constitucional não é apenas uma simples lei incluída no sistema ou no complexo jurídico nacional. Trata-se de uma verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de supremacia. Do princípio da constitucionalidade e da supremacia da constituição deduzem-se vários outros elementos constitutivos do princípio do estado de direito. (CANOTILHO, 1999).

De acordo com o Princípio da Supremacia Constitucional, a Constituição Federal está no ápice do ordenamento jurídico-constitucional e nenhuma norma jurídica pode afrontá-la material ou formalmente, sob pena de inconstitucionalidade. Logo, não existe outra alternativa, em caso de confronto de uma norma constitucional e uma norma jurídica qualquer a não ser afastar-se a lei e aplicar-se a Constituição.

Segundo José Afonso da Silva (2008), é da rigidez constitucional que resulta a supremacia da Constituição. Assim, pelo fato da constituição ser uma norma rígida, mais estável de duração mais longa, ela se contrapõe às normas inferiores que podem ser mudadas com mais frequência e rapidez. Eis aí o motivo dela se posicionar no topo da pirâmide do ordenamento jurídico.

Outro aspecto da supremacia da constituição é traduzido em uma superlegalidade formal e material. Como superlegalidade formal, entende-se a Constituição como criadora das outras normas jurídicas. Já a material relaciona as demais normas e a Constituição, observando se aquelas estão de acordo com essa.

Além dessa superioridade hierárquica, a Constituição possui outras características peculiares, tais como: a natureza da linguagem, o conteúdo específico e seu caráter político, que fazem deste diploma um documento especial e que requer, portanto, uma interpretação especial, uma interpretação especificamente constitucional. Nisso consiste o princípio da supremacia constitucional, na ideia de que a constituição requer uma interpretação não ordinária, mais peculiar, diferenciada. (COSTA, 2008).

A linguagem constitucional dificulta sua interpretação, já que faz com que normas constitucionais tornem-se consideravelmente abstratas, haja vista os conceitos como função social da propriedade, bem comum, igualdade, entre outros explorados neste documento.

Contudo, apesar da necessidade de uma interpretação específica, a interpretação constitucional permanece no “âmbito da interpretação geral do direito”, pelo fato dela (a Constituição) encontrar-se dentro do ordenamento jurídico. (BRANCO; COELHO; MENDES, 2009).


 

3 A COISA JULGADA (INCONSTITUCIONAL) E O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA


 

A expressão coisa julgada deriva do latim res iudicadata, que significa bem julgado. Tal instituto tem como objetivo zelar pela segurança das relações jurídicas, garantindo a impossibilidade da existência de outra decisão sobre a mesma pretensão (MEDINA; WAMBIER, 2003).

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Prolatada a sentença e exauridos os recursos cabíveis ou transcorrido o prazo sem que o recurso admissível tenha sido interposto, a decisão judicial torna-se irrecorrível, e, por conseguinte, ocorre seu trânsito em julgado. Dessa forma, nasce a coisa julgada, situação jurídica objeto de nosso estudo. (CÂMARA, 2005).

Para Liebman, a coisa julgada não é um efeito da sentença, mas uma qualidade que se agrega aos efeitos da sentença. Ou seja, de acordo com o autor, a coisa julgada seria algo que se reúne aos efeitos da decisão, concedendo-lhe perenidade. (apud RAMOS, 2007).

A teoria de Liebman é vastamente predominante na doutrina brasileira. Assim, na mesma sintonia, Theodoro Júnior, define a coisa julgada como “a qualidade da sentença assumida em determinado momento processual. Não é efeito da sentença, mas a qualidade dela representada pela “imutabilidade” do julgado e de seus efeitos”. (THEODORO, 2007).

O instituto da coisa julgada se subdivide em coisa julgada formal e material. A primeira precede necessariamente da segunda, ou seja, não há como forma-se esta sem que haja aquela. A coisa julgada material traduz-se em um efeito especial da sentença que já transitou em julgado formalmente (NERY, 2007).

A coisa julgada formal impede que se reabra a discussão no mesmo processo. Contudo, não impossibilita que tal questão seja rediscutida em um novo processo. Já a coisa julgada material, depois de formada, impede que a mesma matéria seja rediscutida em outro processo, ou seja, produz efeitos externos. (CÂMARA, 2006).

Assim, pode-se dizer que a coisa julgada formal é endoprocessual, tendo em vista que impede a rediscussão do tema no mesmo processo em que a sentença foi proferida, ao passo que a coisa julgada material é extraprocessual, em razão dos seus efeitos refletirem fora da relação jurídica processual. (MARINONI, 2006).

O artigo 5º, da Constituição Federal, em seu inciso XXXVI, determina que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Essa garantia constitucional dirige-se primeiramente, ao legislador e, reflexamente, aos órgãos judiciários e administrativos, pois ela sendo imutável, não pode ser infringida nem pelos juízes nem pelo legislador. (FIDALGO, 2013).

O instituto da coisa julgada está calcado na segurança, estabilidade e certeza jurídica. E foi criado com o desígnio de atribuir às decisões jurisdicionais uma necessária estabilidade, consubstanciada na impossibilidade de mudança de seu conteúdo, definindo o instituto não como um efeito autônomo da sentença, mas sim, com uma característica diferenciada de que se revestem os seus efeitos, tornando-os imutáveis, em prol da estabilidade da tutela jurisdicional. (FIDALGO, 2013)

Outras legislações também definiram coisa julgada, como por exemplo o Código de Processo Civil que em seu artigo 467, arriscou uma definição dizendo, ainda que insuficientemente: “Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.”

Já no artigo 469, do mesmo diploma, o legislador se valeu da negativa, expondo o que não faz coisa julgada, sendo que se excluirmos os elementos citados nos incisos de tal artigo, chegaremos a conclusão de que será a parte dispositiva da sentença que se tornará imutável. Vejamos Segue artigo 469:

Não fazem coisa julgada:

I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença;

Il – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;

III – a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.

Historicamente, a doutrina clássica, pautada no princípio da segurança das relações jurídicas conferia à coisa julgada caráter dogmático, praticamente absoluto e sem exceções. Essa ideia da doutrina histórica extrapolou todos os limites. Scassia, citado por Eduardo Couture e registrado no livro de Câmara (2006) dizia: “A coisa julgada faz do branco preto; origina e cria as coisas; transforma o quadrado em redondo; altera os laços de sangue e transforma o falso em verdadeiro”.

Não há como negar que o princípio da segurança jurídica é de importância ímpar para estabelecer certa estabilidade às relações do particular para com o Estado e entre particulares. A importância dada ao princípio da segurança jurídica originou o fenômeno que chamamos de “santificação” da coisa julgada, no entanto, na doutrina atual, há certa aversão ao pensamento que afirma que uma coisa julgada é absolutamente imutável e intangível.

José Afonso da Silva no livro Constituição e segurança jurídica de Carmem Rocha (2005), explica que, simplesmente construir uma ordem jurídica estável não significa garantir uma ordem jurídica justa, porém, é sabido que um direito sem segurança não atinge os ideais de justiça, se fazendo necessário alcançar um ponto de equilíbrio entre esses valores.

Assim, diante de todas as mudanças tornou-se necessário o estudo da relativização da coisa julgada, pois a cada dia tem-se aumentado os casos em que a supremacia da Constituição Federal é ferida por decisões judiciais transitadas em julgada, configurando-se mais do que uma coisa julgada contrária à verdade real ou ao ideal de justiça, e sim ocasionando a existência da coisa julgada inconstitucional. (FIDALGO, 2013).

A regra no direito brasileiro é que um ato inconstitucional seja nulo, no entanto, a promulgação da Lei nº 9.868/99, que dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, e da Lei 9.882/99, que dispõe sobre arguição de descumprimento de preceito fundamental mudaram esse entendimento e possibilitaram ao ato inconstitucional ser ou não anulado. Trata-se, portanto, de uma exceção à regra da nulidade.
 

4 RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
 

Inicialmente, é importante deixarmos claro que não falaremos do embate entre “segurança e justiça”, mas sim entre o conflito da segurança jurídica e (in)constitucionalidade de uma decisão. Caso nos atesemos ao primeiro, estaríamos institucionalizando a insegurança jurídica e promovendo uma verdadeira perpetuação dos debates acerca das decisões, pois elas sempre serão injustas para uma das partes, a sucumbente.

Escreve Dinamarco (2001):

A aceitação, por grande parte da doutrina e de alguns julgados, da concepção de relatividade da coisa julgada resulta do fato de que, não deve prevalecer um caso julgado em desconforme com a Constituição, posto que a ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios.

Sobre esse ponto de equilíbrio entre a segurança jurídica e as demais garantias constitucionais, a fim da obtenção de um resultado justo, Dinamarco (2001) propõe:

[...] a interpretação sistemática e evolutiva dos princípios e garantias constitucionais do processo civil, dizendo que, nenhum princípio constitui um objetivo em si mesmo e todos eles, em seu conjunto, devem valer como meios de melhor proporcionar um sistema processual justo, capaz de efetivar a promessa constitucional de acesso à justiça (entendida está como obtenção de soluções justas – acesso à ordem jurídica justa).

Devemos ter a consciência de que os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual.

A Constituição, pilar de nosso sistema jurídico, não tolera a inconstitucionalidade de lei e muito menos deve tolerar a inconstitucionalidade de sentença, mesmo que transitada em julgado, pois, caso permitisse, comprometeria o berço de todo o sistema jurídico, além do mais, isso importaria em atribuir-se ao juiz poder igual ou superior ao da própria Constituição. (FIDALGO, 2013).

Dessa forma, constata-se que é muito importante manter a segurança jurídica, porém, frente ao princípio da concordância prática e da proporcionalidade, nos casos em que a inconstitucionalidade apresenta-se evidente, em caráter de exceção, é possível efetuar a quebra da coisa julgada em benefício da justiça, principalmente porque a eternização da injustiça acabaria por abalar a credibilidade da sociedade no Poder Judiciário e, por conseguinte, nos alicerces do Estado Democrático de Direito.

Amanda Cabral (2013), diz que:

As decisões judiciais devem estar em conformidade com a Constituição Federal, pois é através do juiz que ocorre o ato de manifestação de vontade do Estado, não sendo admissível que uma decisão que atente contra a Lei Maior seja eternizada sob o pretexto de manutenção da segurança jurídica, devendo de imediato ser considerada uma sentença inválida, inconstitucional.


 

Em consequência disso, quando uma decisão está eivada de vícios, ocasionada por uma mácula inconstitucional, ela sequer existe para o mundo jurídico, assim não existe a formação da coisa julgada e, em razão disso, não se pode anular o que jamais existiu.

Carlos Valder do Nascimento (2002) nos adverte que:

A coisa julgada somente será intocável se, na sua essência, não desbordar do vínculo que deve se estabelecer entre ela e o texto constitucional, numa relação de compatibilidade para que possa revestir-se de eficácia e, assim, existir sem que contra a mesma se oponha qualquer mácula de nulidade. Essa conformação de constitucionalidade tem pertinência, na medida em que não se pode descartar o controle do ato jurisdicional, sob pena de perpetuação de injustiças. Por esse motivo, nula é a sentença que não se adequa ao princípio da constitucionalidade, porquanto impregnada de carga lesiva à ordem jurídica. Impõe-se, desse modo, sua eliminação do universo processual com vistas a restabelecer o primado da legalidade. Assim, não havendo possibilidade de sua substituição do mundo dos fatos e das ideias, deve ser decretada sua irremediável nulidade.


 

Então, verifica-se que a coisa julgada é importante e tem de ser prestigiada, porém, é vulnerável a própria atividade do Poder Judiciário e não guarda, por conseguinte, o caráter de intangibilidade que por vezes lhe é emprestada. É tangível por meio de vários remédios jurídicos e deve ser muito mais quando estiver em confronto com norma ou princípio constitucional.

Em que pese haver bastante discussão doutrinaria a respeito do tema, a tese da flexibilização da coisa julgada tem ganhado cada vez mais aderentes; e isso decorre do fato de ser impossível a coexistência de dois princípios em situação de conflito.

Portanto, demonstra-se cada vez mais o caráter não absoluto da coisa julgada, a qual se admite o controle de sua constitucionalidade. Deste modo, analisaremos os meios em que se impugna em Juízo essa desconformidade.
 

4.1 Meios de controle de constitucionalidade da sentença.

Neste tópico, traremos a baila um rol disjuntivo apresentado por Amanda Cabral (2013) de alguns meios de controle de constitucionalidade da coisa julgada. Vejamos:

a) propositura de uma ação idêntica à anterior, como se esta não existisse;

b) resistência por meio de embargos de devedor (ou até exceção ou objeção de pré-executividade), quando proposta execução com base na decisão viciada;

c) ação rescisória, se ainda presente o prazo de dois anos a que alude o art. 495 do CPC (a ação rescisória tem por objetivo declarar a nulidade da sentença de mérito que transitou em julgado, com eventual rejulgamento da causa. Por se tratar de uma concessão feita pelo ordenamento ao princípio da segurança jurídica, visa desconstituir a sentença desde que atendidos os pressupostos estabelecidos em lei, quais sejam: existência de decisão de mérito transitada em julgado e configuração de uma das hipóteses de rescindibilidade, enumeradas no art. 485 do CPC);

d) ação rescisória, ainda que superado o referido prazo, ampliando-se assim as hipóteses de admissibilidade da ação rescisória (a decisão judicial transitada em julgado desconforme a Constituição padece de vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade, ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais);

e) ação autônoma declaratória desconstitutiva de coisa julgada inconstitucional (ou seja, uma ação comum de rito ordinário a ser ajuizada em 1º grau de jurisdição, através da qual se pede ao Poder Judiciário a desconstituição da coisa julgada violadora da Constituição Federal);

f) embargos à execução da sentença que contém o citado vício da inconstitucionalidade;

g) a clássica querela nulitatis, cujo meio de impugnação seria uma ação autônoma para delatar-se a nulidade absoluta de um outro processo em razão de vício insanável de citação;

h) o uso da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) para tal fim, quando viola a sentença preceito fundamental da Carta Política.

No entanto, há aqueles que defendem a necessidade de uma reforma legislativa a fim de que se consagre, de lege ferenda, as hipóteses e o modo de relativização da coisa julgada. Dentre eles podemos destacar Gisele Goés e Nelson Nery, ambos citados no livro a relativização da coisa julgada, de Fredie Didier Jr. (2006).

4.2 Conflitos de princípios constitucionais.

O neoconstitucionalismo reconhece que nenhum direito, por mais relevante que seja, é absoluto, tendo em vista que todos se deparam com limites fixados por outros direitos igualmente previstos pelo texto constitucional.

A colisão de direitos pode se dar em sentido estrito (colisão autêntica) ou em sentido amplo (colisão imprópria). A primeira acontece entre conflito de direitos fundamentais diversos, ao passo que a segunda ocorre entre direitos fundamentais e outros valores constitucionalmente relevantes. (BRANCO; COELHO; MENDES, 2009).

Existe no nosso ordenamento jurídico um princípio de interpretação constitucional denominado Princípio da concordância prática ou da harmonização, segundo o qual o intérprete, ao se deparar com a disputa entre bens constitucionalmente protegidos, deve adotar uma solução que otimize a realização de todos eles, através de concessões recíprocas, buscando sempre a preservação máxima de cada um dos interesses em conflito, de modo que a aplicação de um não cause o sacrifício total do outro. (NOVELINO, 2008).

Assim, alguns doutrinadores defendem que, apesar do princípio da unidade da constituição afirmar que todas as normas constitucionais estão no mesmo plano, não havendo, portanto, hierarquia, não há como negar a existência de uma hierarquia axiológica entre elas. (CUNHA JR, 2008).

A sistematização visa impedir que sejam perpetuados os efeitos da chamada “coisa julgada inconstitucional”, ou seja, evitar que uma decisão contra a qual não caiba mais qualquer recurso ou ação rescisória possa ferir, sob o pretexto de ser preservada a segurança jurídica, outros valores constitucionalmente protegidos. (FIDALGO, 2013).

Dentro deste raciocínio, e do que vem apontando a recente doutrina brasileira, a coisa julgada não deve prevalecer diante dos valores absolutos da legalidade, moralidade, justiça e dignidade humana, porque vícia, de modo absoluto, a vontade jurisdicional.

Defendemos a existência de hierarquia entre normas constitucionais. No entanto, entendemos não haver hierarquia entre princípios fundamentais, logo, quando estes colidem, necessitam de um meio de resolução do confronto. Sendo assim, nos posicionamos no sentido de que a teoria da ponderação de Alexy (1997) é a mais adequada para solucionar a colisão entre princípios, e, afastamos, assim, a tese da resposta correta de Dworkin. (2002).

Desse modo, enquadrando a colisão entre o princípio da segurança jurídica e a justiça na teoria da ponderação de Robert Alexy, podemos concluir que apenas diante do caso concreto e somente em algumas hipóteses a Justiça deverá prevalecer em detrimento da Segurança jurídica, o que ocasionará o rompimento das res iudicata, dando origem ao fenômeno da relativização (ou flexibilização) da coisa julgada.

Obviamente, a mitigação da coisa julgada, pela impossibilidade jurídico-constitucional antes referida é situação excepcional e, portanto, não pode ter seu uso banalizado. Se pudéssemos desconstituir a coisa julgada a qualquer tempo, teríamos processos judiciais intermináveis e uma insegurança jurídica instaurada, o que não se coaduna com o estado democrático de direito. Assim, a coisa julgada só será desfeita nos casos de decisões incontestavelmente injustas a ponto de violarem frontalmente os direitos fundamentais ligados diretamente ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Do exposto, a conclusão a que se chega é que a flexibilização da coisa julgada não pode ocorrer em todos os casos de inconstitucionalidade, muito menos sem critérios pré-definidos para sua realização. Sendo assim, o presente trabalho propõe que a relativização seja possível apenas nos casos de inconstitucionalidade por violação direta ao princípio da dignidade humana.

Neste rumo, cada vez mais nossos tribunais têm decidido utilizando-se da dignidade da pessoa humana como fundamento para resolução de controvérsias e, é com base neste princípio e nos direitos fundamentais a ela diretamente ligados que se deve relativizar a coisa julgada inconstitucional.1

Em razão do princípio da supremacia da Constituição consideramos insuscetível a existência de qualquer sentença tida por inconstitucional, no entanto, a medida da relativização da coisa julgada é excepcional e só pode ser invocada em situações extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição. A regra, portanto, continua sendo a do respeito à coisa julgada material.

5 CONCLUSÃO

O neoconstitucionalismo é uma corrente que inicia-se com um debate acerca da função social do Direito. A constituição de 1988 assume um papel de extrema importância para o desenvolvimento e aplicação desse novo movimento.

A efetividade da constituição dependerá profundamente da interpretação feita pelo magistrado, que, por sua vez garantirá a eficácia normativa do texto constitucional. Logo, essa interpretação necessitará de cuidados e análises profundas feitas sob a égide dos princípios do Direito Constitucional.

Ao longo deste trabalho, salientamos os conceitos, funções e implicações do instituto da coisa julgada. Viu-se que a imutabilidade em uma sentença gera segurança jurídica ao jurisdicionado e ao sistema jurídico como um todo, sendo importante e basilar para a sociedade a certeza da criação de sentenças que, após esgotadas as possibilidades de recursos, serão tratadas como lei entre as partes de um processo.

O ordenamento jurídico brasileiro, ao longo da história, conquistou institutos que hoje são essenciais para a sociedade, como os princípios consagrados constitucionalmente, sejam eles o da moralidade, legalidade, isonomia, o princípio democrático, a separação de poderes, da dignidade humana, que diante de uma comparação a outros institutos importantes, como o da coisa julgada, devem ser levados e respeitados com consideração maior que estes, no caso de conflito entre tais institutos.

Não deve ser tolerado no ordenamento jurídico vigente, decisões as quais, mesmo estando transitadas em julgado, desrespeitem princípios vitais conquistados e necessários à sociedade como um todo em nome da segurança jurídica gerada pela coisa julgada, ainda que tal segurança jurídica seja também necessária. É importante que seja avaliado se vale a pena pôr em cheque institutos como a dignidade da pessoa humana ou o princípio da vida em nome da segurança jurídica trazida pela coisa julgada. Somente diante do caso concreto essas respostas podem ser dadas.

A relativização da coisa julgada é um bom caminho para evitar que preceitos basilares constitucionais sejam desrespeitados, contudo tal relativização deve ser estudada e analisada para que seja usada com responsabilidade.

A visão que se deve ter da coisa julgada inconstitucional deve ser outra. Jamais se poderá dispensar o mesmo tratamento a um caso julgado que se coaduna com a Constituição, com um ou outro que afronta a Carta Magna. Neste último caso, a relativização da coisa julgada se faz necessária para o alcance da ordem e paz social e preservação da supremacia constitucional.

REFERÊNCIAS

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BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Compiladas por Nello Morra; tradução e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. Ícone, São Paulo. 2006. p. 212,213.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. rev. E atual. - São Paulo : Saraiva. 2009. p. 14 a 16/331.

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Sobre o autor
Marcus Alexandre Marinho Assaiante

Advogado. Servidor Público. Pós Graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-MG.

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